2009-11-23

O Prof Costa Andrade as escutas e a "Face Oculta"


por Manuel da Costa Andrade - Público online 18.11.2009
(As cores e sublinhados são do autor do post)

1. O país vem sendo sacudido por um terramoto jurídico-político, com epicentro nos problemas normativos e semânticos suscitados pelo regime das escutas telefónicas. Uma discussão em que se fez ouvir um coro incontável de vozes, vindas de todos os azimutes. E todas a oferecer vias hermenêuticas de superação dos problemas. E a reivindicar para si o fio de Ariana capaz de nos fazer sair do labirinto. Foi como se, de repente, Portugal se tivesse convertido numa imensa Escola de Direito.
Mas o lastro que as ondas vão deixando na praia está longe de ser gratificante. Mais do que uma experiência de academia, fica-nos a sensação de um regresso a Babel: se é certo que quase todos falam do mesmo, quase ninguém diz a mesma coisa. Não sendo possível referenciar uma gramática comum, capaz de emprestar racionalidade ao debate e sugerir pontes de convergência intersubjectiva.
Se bem vemos as coisas, uma das causas deste “desastre hermenêutico”, com réplicas tão profundas como perturbadoras no plano político, ter-se-á ficado a dever ao facto de se terem perdido de vista as coisas mais simples. Que, por serem as mais lineares e aproblemáticas, poderiam valer como apoios seguros, a partir dos quais se lograria a progressão nas áreas mais minadas pelas dificuldades e desencontros.
É um exercício neste sentido, feito sobre a margem das coisas simples, que valerá a pena ensaiar.

2. Manda a verdade que se comece por sinalizar um primeiro dado: o problema ficou em grande medida a dever-se a uma pequena intervenção no Código de Processo Penal, operada em 2007. Que introduziu no diploma um preceito, filho espúrio do caso “Casa Pia”. E, por sobre tudo, um preceito atrabiliário, obscuro, desnecessário e absurdo. Logo porquanto, a considerar-se merecida e adequada uma certa margem de prerrogativa processual para titulares de órgãos de soberania, então nada justificaria que ela se circunscrevesse às escutas. E se silenciassem outros meios, nomeadamente outros meios ocultos de investigação, reconhecidamente mais invasivos e com maior potencial de devassa (vg. gravações de conversas cara a cara, acções encobertas, etc.). A desnecessidade resulta do facto de, já antes de 2007, a lei portuguesa conter um equilibrado regime de privilégio para aquelas altas instâncias políticas. Já então se prescrevia que as funções de juiz de instrução fossem, em relação a elas, exercidas por um conselheiro do STJ.
Assim, a Reforma de 2007 deixou atrás de si um exemplar quadro de complexidade. Nos processos instaurados contra aquelas altas figuras de Estado, há agora um normal juiz de instrução: um conselheiro que cumpre todas as funções de juiz de instrução, menos uma, precisamente a autorização e o controlo das escutas. Ao lado dele intervém um segundo e complementar juiz de instrução, o presidente do STJ, entrincheirado num círculo circunscrito de competência: só se ocupa das escutas. Isto não obstante os problemas das escutas serem, paradigmaticamente, actos de instrução; e, pior do que isso, não obstante aquele primeiro juiz de instrução ter competência para todos os demais actos de instrução, inclusivamente daqueles que contendem com os mais devastadores meios de devassa que podem atingir os mais eminentes representantes da soberania.
Manifestamente, o legislador (de 2007) não quis ajudar. Mesmo assim, nem tudo são sombras no quadro normativo ao nosso dispor. Importa, para tanto, tentar alcançar uma visão sistémica das coisas. E agarrar os tópicos mais consolidados e inquestionáveis, convertendo-os em premissas incontornáveis do discurso. E, por vias disso, fazer deles pontos de partida, lugares obrigatórios de passagem e de regresso, sempre que pareça que as sombras se adensam e as luzes se apagam.

3. A começar, uma escuta, autorizada por um juiz de instrução no respeito dos pressupostos materiais e procedimentais prescritos na lei, é, em definitivo e para todos os efeitos, uma escuta válida. Não há no céu — no céu talvez haja! — nem na terra, qualquer possibilidade jurídica de a converter em escuta inválida ou nula. Pode, naturalmente, ser mandada destruir, já que sobra sempre o poder dos factos ou o facto de os poderes poderem avançar à margem da lei ou contra a lei. Mas ela persistirá, irreversível e “irritantemente”, válida!
Sendo válida, o que pode e deve questionar-se é — coisa radicalmente distinta — o respectivo âmbito de valoração ou utilização. Aqui assoma uma outra e irredutível evidência: para além do processo de origem, ela pode ser utilizada em todos os demais processos, instaurados ou a instaurar e relativos aos factos que ela permitiu pôr a descoberto, embora não directamente procurados (“conhecimentos fortuitos”). Isto se — e só se — estes conhecimentos fortuitos se reportarem a crimes em relação aos quais também se poderiam empreender escutas. Sejam, noutros termos, “crimes do catálogo”.
De qualquer forma, e com isto se assinala uma outra evidência, a utilização/valoração das escutas no contexto e a título de conhecimentos fortuitos não depende da prévia autorização do juiz de instrução: nem do comum juiz de instrução que a lei oferece ao cidadão comum, nem do qualificado juiz de instrução que a mesma lei dispensa — em condições de total igualdade, descontada esta diferença no plano orgânico-institucional — aos titulares de órgãos de soberania. De forma sincopada: em matéria de conhecimentos fortuitos, cidadão comum e órgãos de soberania estão, rigorosamente, na mesma situação. Nem um, nem outro gozam do potencial de garantia própria da intervenção prévia de um juiz de instrução, a autorizar as escutas.

4. Uma outra e complementar evidência soa assim: as escutas podem configurar, no contexto do processo para o qual foram autorizadas e levadas a cabo, um decisivo e insuprível meio de prova. E só por isso é que elas foram tempestivamente autorizadas e realizadas. Mas elas podem também configurar um poderoso e definitivo meio de defesa. Por isso é que, sem prejuízo de algumas situações aqui negligenciáveis, a lei impõe a sua conservação até ao trânsito em julgado.
Nesta precisa medida e neste preciso campo, o domínio sobre as escutas pertence, por inteiro e em exclusivo, ao juiz de instrução do localizado processo de origem. Que, naturalmente, continua a correr os seus termos algures numa qualquer Pasárgada, mais ou menos distante de Lisboa. Um domínio que não é minimamente posto em causa pelas vicissitudes que, em Lisboa, venham a ocorrer ao nível de processos, instaurados ou não, aos titulares da soberania. Não se imagina — horribile dictum — ver as autoridades superiores da organização judiciária a decretar a destruição de meios de prova que podem ser essenciais para a descoberta da verdade. Pior ainda se a destruição tiver também o efeito perverso de privar a defesa de decisivos meios de defesa.
Por ser assim, uma vez recebidas as certidões ou cópias, falece àquelas superiores autoridades judiciárias, e nomeadamente ao presidente do STJ, legitimidade e competência para questionar a validade de escutas que, a seu tempo, foram validamente concebidas, geradas e dadas à luz. Não podem decretar retrospectivamente a sua nulidade. O que lhes cabe é tão-só sindicar se elas sustentam ou reforçam a consistência da suspeita de um eventual crime do catálogo imputável a um titular de órgão de soberania. E, nesse sentido e para esse efeito, questionar o seu âmbito de valoração ou utilização legítimas. E agir em conformidade. O que não podem é decretar a nulidade das escutas: porque nem as escutas são nulas, nem eles são taumaturgos. O que, no limite e em definitivo, não podem é tomar decisões (sobre as escutas) que projectem os seus efeitos sobre o processo originário, sediado, por hipótese, em Pasárgada, e sobre o qual não detêm competência.

5. É o que, de forma muito concentrada, nos propomos, por ora, sublinhar. Quisemos fazê-lo com distanciação e objectividade, sine ira et studio. Mantendo a linha, o tom e a atitude de anos de investigação e ensino votados à matéria. E sem outro interesse que não o de um contributo, seguramente modesto, para a reafirmação e o triunfo da lei. Pela qual devemos bater-nos “como pelas muralhas da cidade” (Heraclito). E certos de que, também por esta via, se pode contribuir para o triunfo das instituições. E, reflexamente, para salvaguardar e reforçar o prestígio e a confiança nos titulares dos órgãos de soberania cujos caminhos possam, em qualquer lugar, cruzar-se com os da marcha da Justiça.

Professor de Direito Penal na Universidade de Coimbra

Proença de Carvalho sobre as escutas da "Face Oculta"

Agentes da lei fora da lei?


Diário Económico 21/11/09 00:02
Daniel Proença de Carvalho, Advogado.

Tinha para comigo assumido o compromisso de resistir à tentação de expressar publicamente o que penso sobre o episódio das escutas em que interveio o primeiro-ministro...

Tinha para comigo assumido o compromisso de resistir à tentação de expressar publicamente o que penso sobre o episódio das escutas em que interveio o primeiro-ministro; patrocinando eu como advogado o eng. José Sócrates em processos por ele instaurados por abuso de liberdade de imprensa, e nunca tendo comentado publicamente esses casos, entendi, até hoje, manter essa postura de prudente reserva.

Quebro-a hoje, escrevendo o que penso sobre o episódio das escutas, obviamente sem o conhecimento e mesmo à revelia do primeiro-ministro, e tendo consciência dos riscos que corro. Acreditem ou não, faço-o por imperativo de consciência, como jurista e cidadão que se orgulha de sempre, desde muito jovem, antes e depois do 25 de Abril, ter lutado pela democracia, pelo respeito dos direitos humanos e pelo Estado de Direito.

Faço-o porque não me é mais possível silenciar o desgosto com que assisto à total descredibilização do sistema de justiça - que vem de longe - pelo veneno da política que nele se instalou e que está a conduzir à sua italianização, com resultados devastadores para o nosso futuro.

A verdade é que a polícia, o Ministério Público e o juiz de Instrução que participaram na intercepção, gravação e transcrição das escutas em que interveio o primeiro-ministro, agiram e continuam a agir na violação reiterada da Lei e contra os princípios do Estado de Direito. Deixemo-nos de rodriguinhos jurídicos com que alguns juristas disfarçam a sua militância política, citando a Lei: "Compete ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça... autorizar a intercepção, a gravação e a transcrição de conversações ou comunicações em que intervenham o Presidente da República, o presidente da Assembleia da República ou o primeiro-ministro e determinar a respectiva destruição..." (artigo 11º do Código de Processo Penal)

Qualquer cidadão dotado de literacia mediana não terá dúvidas quanto ao sentido da lei, tão clara é a sua expressão: não é apenas a colocação em escuta dos telefones dos titulares dos órgãos de soberania visados na lei que exige autorização do presidente do STJ. Essa autorização é exigida quanto à "intercepção, gravação e transcrição" de conversas em que "intervenham" o Presidente da República, o presidente da Assembleia da República e o primeiro-ministro. E não se pense que só estes titulares de órgãos de soberania estão sujeitos a regras especiais. Estão-no também os próprios magistrados.

Resulta, portanto, da Lei, que logo que uma conversa em que intervenha o primeiro-ministro seja interceptada, não pode a mesma ser mantida, sendo proibida a sua transcrição, sem autorização do presidente do Supremo. Sendo também este magistrado o único competente para apreciar em definitivo se a conversa contém prova de crime imputável ao primeiro-ministro. Ora, as autoridades que dirigem o Inquérito, usurpando a competência do presidente do Supremo, permitiram-se manter em seu poder escutas em que interveio o primeiro-ministro, durante vários meses, continuando a gravá-las, sem o consentimento da autoridade competente. A lei é também clara ao considerar como crime a intercepção, gravação ou mera tomada de conhecimento do conteúdo de conversas telefónicas sem consentimento. (artº 194º Nº 2 do Código Penal).

Tarde e a más horas, as escutas chegaram ao PGR e ao presidente do Supremo; ambos consideraram que não existem indícios de crime e o segundo considerou-as nulas e ordenou a sua destruição. Ao que diz a comunicação social, a ordem do presidente do Supremo continua por cumprir. Não é isto a subversão do Estado de Direito? Polícias, agentes do M.P. e um juiz que actuam contra a lei e não cumprem uma decisão do presidente do Supremo?

É claro que a prática destas ilegalidades conduziu a outro crime que diariamente é praticado na mais absoluta impunidade: o crime de violação do segredo de justiça. Os jornalistas cúmplices neste tipo de criminalidade já divulgaram alegados tópicos das conversas criminosamente guardadas e não tardará que apareçam as suas transcrições, obviamente por motivos de ordem política. O sistema de justiça afunda-se neste lamaçal arrastando na enxurrada a já pouca credibilidade do regime.

Isto foi possível em resultado da opacidade do sistema de justiça. Todos nós conhecemos os actores políticos, os seus percursos, as ideias que professam, os seus comportamentos políticos; e, muito importante, exercem o poder com base no voto popular, que é a regra da democracia. Que sabemos nós dos detentores do poder judiciário? Por onde andaram, que ideias políticas professam? E a pergunta fatal: qual a raiz do seu poder soberano? Com que legitimidade o exercem? Esta é a questão crucial com que, mais dia, menos dia, teremos de confrontar-nos.

Comunicado do PGR em 21 de Nov de 2009 sobre as escutas da "Face Oculta"

O texto com o timbre da PGR foi obtido no Público online num link "escondido" no fim de uma notícia com o título "PCP quer manter escutas para "processos futuros”" à qual se pode aceder por aqui.
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Procuradoria-Geral da República
(Gabinete do Procurador-Geral da República)


COMUNICADO


As notícias divulgadas pela Comunicação Social, a inexactidão de muitas delas e a relevância social que o chamado caso “Face Oculta” adquiriu, impõe que se proceda à seguinte clarificação:

- 1º -

O Procurador-Geral da República, em 23 de Julho de 2009, proferiu um despacho considerando que nas duas certidões remetidas pelo Departamento de Investigação e Acção Penal de Aveiro, extraídas do processo conhecido por “Face Oculta” e acompanhadas por vinte e três CDs contendo escutas, não existiam indícios probatórios que levassem à instauração de procedimento criminal e remeteu ao Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, os elementos em causa, suscitando a questão da validade dos actos processuais relativos à intercepção, gravação e transcrição das referidas seis conversações/comunicações em que intervinha o Senhor Primeiro-Ministro;

- 2º -

Por despacho de 3 de Setembro de 2009 o Senhor Presidente do STJ, no exercício de competência própria e exclusiva, julgou nulo o despacho do Juiz de Instrução Criminal que autorizou e validou a extracção de cópias das gravações relativas aos produtos em causa e não validou a gravação e transcrição de tais produtos, ordenando a destruição de todos os suportes a eles respeitantes, decisão com a qual concordou o Procurador-Geral da República, razão por que não foi interposto recurso;

- 3º -

A decisão do Senhor Presidente do STJ não foi desde logo remetida ao Procurador-Geral Distrital de Coimbra, porque o recebimento de novas certidões, enviadas pelo DIAP de Aveiro (duas em 24 de Julho, com dez CDs, duas em 10 de Setembro, com cinco CDs e uma em 9 de Outubro com dois CDs), referentes a escutas que não existiam aquando da remessa das primeiras certidões, impôs a necessidade de uma análise global;

- 4º -

Em 30 de Outubro, o Procurador-Geral da República proferiu um despacho em que:

a) Solicitou ao Senhor Procurador-Geral Distrital de Coimbra a remessa de informações e elementos complementares em relação às certidões recebidas;

b) Remeteu certidão da decisão do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, solicitando-se a promoção de diligências para o cumprimento do despacho por ele proferido;

- 5º -

Posteriormente foram recebidas na Procuradoria-Geral da República, em 2 de Novembro, cinco certidões, com cento e quarenta e seis CDs, sendo que quatro delas não respeitam à matéria aqui em causa e ainda, em 13 de Novembro, os elementos complementares que tinham sido solicitados, contendo relatórios de quarenta e seis conversações/comunicações, sendo cinco delas respeitantes ao Senhor Primeiro-Ministro;

- 6º -

Após cuidadosa e exaustiva análise de todos os elementos remetidos à Procuradoria-Geral da República, foi proferido pelo Procurador-Geral da República, com data de hoje, 21.11.2009, um despacho onde se considera que não existem elementos probatórios que justifiquem a instauração de procedimento criminal contra o Senhor Primeiro-Ministro ou contra qualquer outro dos indivíduos mencionados nas certidões, pela prática de crime de atentado contra o Estado de Direito, que vinha referido nas mesmas certidões, pelo que ordenou o arquivamento do conjunto dos documentos recebidos;

- 7º -

Os produtos em que interveio o Senhor Primeiro-Ministro foram entregues ao Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça para apreciação dos actos relativos à intercepção, gravação e transcrição das conversações e comunicações referidas;

- 8º -

O conteúdo desses cinco produtos, se, por hipótese, não vier a ser declarado nulo, em nada alterará o sentido da decisão já proferida, atenta a irrelevância criminal dos mesmos (e é só isto, saliente-se, que compete ao Procurador-Geral da República apreciar);

- 9º -

A decisão hoje proferida não colide em nada com o processo “Face Oculta”, já que os factos referidos nas certidões analisadas não respeitam à matéria que está na origem do processo e aí se investiga;

- 10º -

O processo “Face Oculta” prosseguirá com todo o empenho e rigor, estando o Procurador-Geral da República solidário com o DIAP de Aveiro e os Órgãos de Polícia Criminal que com ele colaboram, considerando-se extremamente relevante para o saudável funcionamento das instituições democráticas que sejam apurados todos os factos a que respeita a investigação por forma a poderem ser sancionados os eventuais responsáveis.

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Como nota final esclarece-se que as quatro certidões recebidas em 02.11.2009 e que contêm factos que não respeitam à matéria aqui em causa, vão ter o seguinte destino:

. DIAP de Lisboa (duas), por conterem elementos relacionados com factos que já estavam a ser investigados;

. DCIAP (uma), por conter elementos relacionados com factos já participados;

. Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça (uma) por, alegadamente, conter elementos imputáveis a Magistrados Judiciais de um Tribunal da Relação.

Lisboa, 21 de Novembro de 2009

O Procurador-Geral da República

(Fernando José Matos Pinto Monteiro)

2009-11-22

BCP e as remunerações dos administradores em 2005



O Banco Comercial Português (BCP) vai distribuir este ano 33,36 milhões de euros pelos seus trabalhadores, referentes aos prémios de desempenho. Um valor que corresponde a 4,43% dos lucros totais obtidos pelo grupo em 2005 (753,5 milhões de euros, incluindo extraordinários). As compensações pagas no ano passado tinham totalizado 17 milhões de euros, o equivalente a 2,85% dos resultados de 2004 (606 milhões), de acordo com os dados disponibilizados, na segunda-feira, no relatório e contas do BCP.
Em média, cada um dos 11 510 colaboradores do grupo em Portugal receberá quase 2900 euros. No entanto, nem todos os trabalhadores terão direito a prémio, uma vez que este é atribuído em função do cumprimento de objectivos. Assim, em muitos casos, a compensação extraordinária superará aquele montante médio.
Ao contrário do que acontecia até 2004, os prémios a pagar aos colaboradores não vão sair directamente dos resultados. Isto porque, de acordo com as novas normas internacionais de contabilidade (NIC), as compensações referentes a um determinado ano têm de ser consideradas como custo de pessoal desse exercício. Assim, os 33,36 milhões de euros que o BCP vai entregar este ano aos seus trabalhadores estão incluídos naquela rubrica, correspondendo a 3,5% dos custos consolidados com pessoal contabilizados pelo banco em 2005 (952,1 milhões).
Administração arrecada 4,16% dos resultados
A equipa de gestão do grupo auferiu, no ano passado, 31,34 milhões de euros de salário total. Um valor praticamente igual aos 31,32 milhões recebidos em 2004. Em termos percentuais, o peso da remuneração dos administradores do BCP nos resultados da instituição caiu de 5,16% para 4,16%. Em média, cada um dos nove gestores arrecadou um bolo de 3,48 milhões de euros.
Além do salário fixo (5,34 milhões de euros, mais 25% do que em 2004) e da remuneração variável (26 milhões de euros, menos 3,88% do que no exercício anterior), o BCP teve ainda que suportar um custo de 9,07 milhões de euros, relativo a encargos com dotações para fundos de pensões e apólices de seguros de complemento de reforma dos seus administradores.

O salário total arrecadado pela gestão do BCP já foi definido em função da nova política fixada pela Comissão de Remunerações e Previdência e cujo objectivo é "potenciar a criação e a sustentação do valor accionista, pelo que se prevê uma componente ligada à performance anual e uma outra ao desempenho plurianual indexada aos objectivos estratégicos fixados para o mandato do conselho de administração", como consta do relatório sobre o governo das sociedades do banco.

O salário fixo dos gestores é determinado em função da remuneração do presidente (85% a 60% para os vice-presidentes e de 60% a 40% para os restantes. A compensação variável anual é paga de uma só vez, no mês em que o grupo distribui dividendos, e não pode ultrapassar 350% do valor do salário fixo. A remuneração variável plurianual está limitada, anualmente, a 250% do salário fixo. O gestor deixa de ter direito a esta compensação se não cumprir um mínimo de 80% dos objectivos que lhe foram fixados, se a Comissão de Remunerações e Previdência encontrar motivos que o justifiquem (que lhe serão comunicados), se perder o mandato ou este não for renovado (excepto em caso de velhice ou invalidez).

2009-10-30

Saramago e a insustentável leveza da ignorância

Artigo de Richard Zimler Público online de 27 de Outubro de 2009
http://ipsilon.publico.pt/livros/texto.aspx?id=243802
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Os comentários de Saramago não são nem chocantes nem novos, defende neste texto o escritorRichard Zimler. São unicamente banalidades superficiais
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Quando José Saramago decidiu espevitar o interesse pelo seu último livro afirmando que "a Bíblia é um manual de maus costumes", a minha primeira reacção - como escritor e como alguém de há muito tempo dedicado aos estudos de religião comparada - foi rir-me para comigo e murmurar "e depois?".

São várias e de ordem vária as razões por que desvalorizei os comentários de Saramago. O Antigo Testamento, praticamente na sua totalidade, nunca teve como propósito constituir qualquer coisa de parecido com um manual de boas ou más maneiras. Ao ler a Bíblia, pouco que seja, ninguém pretende encontrar um modelo para o seu comportamento nos actos do Rei David, de Betsabé, de Noé, de Adão, de Eva ou de quaisquer outras pessoas referidas nas histórias bíblicas. Na tradição judaica, tal atitude pura e simplesmente nunca existiu. Nem o mais ortodoxo dos rabinos obedece hoje à maioria das regras de conduta doDeuteronómio, mais que não fosse por estarem de tal modo datadas que seriam irrelevantes para a vida dos nossos dias. Assim como ninguém no mundo judeu modela o seu comportamento pelo de Deus. Fazê-lo seria considerado ingénuo na melhor das hipóteses ou herético na pior. O Antigo Testamento é formado em grande parte por uma compilação de histórias, muito à semelhança de um romance. E o seu tema principal é a difícil e por vezes tumultuosa relação entre Deus e Israel, entre o criador transcendente de um universo e o seu povo escolhido. É uma história de sobrevivência, de como os israelitas usaram de todos os meios à sua disposição - incluindo a guerra - para defender aquilo que consideravam a sua particular aliança com o Senhor. Como qualquer romance ou outra forma de narrativa que intente descrever todos os cambiantes da conduta humana, dela fazem parte tanto a opressão intolerável, os crimes de guerra e os assassinatos, como também o amor, a dedicação e o heroísmo. Trata de seres humanos tal como eles são, e não como eles deveriam ser. Pegar no Antigo Testamento para criticar a brutalidade dos hebreus ou de outros povos da antiguidade é o mesmo que criticar Dostoievsky por escrever sobre um assassinato premeditado emCrime e Castigo ou criticar Anne Frank por descrever como a crueldade nazi afectou a sua família.

Inclinava-me a pensar que qualquer escritor haveria de olhar como vital, tanto para ficcionistas como para ensaístas, a exploração de toda a gama das emoções e acções humanas, mas ao que parece enganava-me, pelo menos no caso particular de Saramago.

Confesso que as palavras de Saramago me deixaram perplexo de um modo muito pessoal ao implicarem que não deveríamos escrever sobre os horrendos crimes cometidos por seres humanos, pois uma boa parte do que faço nos meus romances é explorar as vidas de pessoas cujas vozes têm sido sistematicamente silenciadas por ditadores, generais e inquisidores religiosos. Penso que escrever sobre a repressão violenta e sobre os tratamentos cruéis é essencial, sobretudo quando se busca a criação de um mundo de mais justiça e humanidade. E uma das coisas que mais respeito e valorizo no Antigo Testamento - apesar de não crer num Deus pessoal e de não praticar nenhuma forma de fé, nem sequer a religião dos meus pais, o judaísmo - é o facto de aí nada ser escamoteado ou escondido. Quem quer que deseje conhecer até onde pode chegar a abominação e a crueldade humanas e até que ponto Deus - ou o Destino - pode ser impiedoso bastar-lhe-á abrir o Antigo Testamento. Para quem nunca o fez, sugeriria que lessem o tratamento dado pelo Rei David a Urias, narrado no Segundo Livro de Samuel. Será difícil encontrar descrição mais poderosa da traição e da brutalidade humanas.

Por outro lado, considerei que no fundo não valia a pena dar importância aos comentários de Saramago, pela ingenuidade e infantilidade da interpretação literal que ele (juntamente com os fundamentalistas religiosos) faz das histórias do Antigo Testamento. Uma das mais importantes lições que retirei do estudo da história das religiões e da mitologia é que as narrativas mitológicas são - na sua maior parte - poesia e não prosa. A história de Adão e Eva é poesia. Ou será que haverá alguém que acredite que Eva foi feita de uma costela de Adão? O autor desta narrativa do Antigo Testamento está a recorrer a uma linguagem simbólica - tal como poetas muito posteriores, como Shakespeare ou Camões, recorreram à linguagem simbólica para criarem as suas obras-primas. Ou será que algum leitor de Os Lusíadas pensa que os navegadores portugueses depararam com um temível gigante chamado Adamastor nas suas viagens da época das Descobertas? Ou, quando a narrativa bíblica conta que Moisés separou as águas do Mar Vermelho no Livro do Êxodo para que o seu povo pudesse fugir do Egipto, será que alguém com mais de dez anos acredita que ele possa ter murmurado algum abracadabra hebraico e produzido tal milagre? Espero bem que não. O Antigo Testamento pode ter como referência um acontecimento histórico - a libertação do povo hebraico -, mas a linguagem utilizada é poética e simbólica. Por assim ser, está aberto a diferentes interpretações. Pode acontecer que o que aqui se pretende é falar da viagem espiritual que cada um de nós pode fazer ao longo das nossas vidas, da escravidão para a liberdade. Nesse caso, a história de Moisés será sobre a nossa aspiração - como indivíduos e como povo - à segurança, a uma vida realizada e com sentido.

Tomar à letra estas histórias é simplesmente não entender o Antigo Testamento e ignorar por completo dois mil anos da tradição poética ocidental.

As palavras de Saramago pareceram-me ainda como o "much ado about nothing", o muito barulho para nada, com que soa qualquer coisa que nem remotamente é novidade. Há cerca de dois mil anos que os filósofos judeus vêm debatendo a brutalidade de Deus e da humanidade no Antigo Testamento, em tons bastante mais emocionados do que os usados no debate em causa. Talvez a história mais criticada do Antigo Testamento seja narrada no livro deJob. Depois de um Satanás céptico dizer a Deus que a piedade de Job se deve apenas à prosperidade de que goza, Deus põe à prova a fé e a dedicação de Job arruinando-lhe a vida da forma mais horrível. Podemos encontrar comentários sobre a interpretação a dar a esta história - assim como de qualquer outra história bíblica - em centenas de livros escritos por filósofos judeus - e também alguns cristãos - ao longo dos últimos dois mil anos. Como é possível que alguém que se considera instruído não tenha consciência desta herança cultural?

As primeiras obras escritas analisando a natureza de Deus, tal como é descrita no Antigo Testamento, são o Talmude, um compêndio dos textos rabínicos sobre ética e cultura compilados entre os anos 200 e 500 da era cristã. Mais tarde, na época medieval, o tema da natureza de Deus foi explorado por dezenas de talentosos filósofos medievais, incluindo pensadores magníficos como Maimónides e Moisés de Leão, autor do século XIII, que escreveu o livro mais influente do misticismo judaico, oZohar. Mais recentemente, estudiosos como Walter Benjamin e Martin Buber acrescentaram facetas modernas ao debate. A natureza da relação de Deus com o homem - a Sua crueldade e, em particular, a Sua "surdez" face ao sofrimento humano - tornou-se num dos mais importantes tópicos de discussão no mundo judaico desde o Holocausto, pelo mais óbvio e terrível dos motivos. Simultaneamente, este debate filosófico foi sendo reflectido na literatura judaica desde os meados do século XIX, na obra de muitos escritores, de Sholem Aleichem e Shmuel Yosef Agnon - que recebeu o Prémio Nobel em 1966 - a Philip Roth.

Concluindo, custa-me compreender como é que alguém, ainda que vagamente familiarizado com a filosofia e a literatura ocidentais, pode acreditar que erguer-se em 2009 contra a crueldade contida no Antigo Testamento tem alguma coisa de novo ou de chocante. Ou sequer interessante.

O que é interessante é perguntarmo-nos por que razão exige Deus uma tão absoluta fidelidade aos israelitas e os castiga tão brutalmente por Lhe desobedecerem. Por que são outros povos, como os cananitas, olhados com tanto desprezo. O que diz tudo isto sobre as condições políticas e sociais em Israel em 500 a.C. E o que diz a relação de Deus com Israel sobre a "natureza tribal" das religiões da antiguidade.

Estes, sim, são temas importantes a merecer respostas sérias dos estudiosos.

Mas, naturalmente, nada disto mereceu a atenção de Saramago nem dos que reagiram às suas críticas ao Antigo Testamento. O que me traz ao aspecto mais perturbador e alarmante de toda esta tola controvérsia. Os jornalistas e os responsáveis religiosos portugueses de um modo geral trataram os comentários de Saramago como importantes! Graças a eles, os meios de comunicação deram-lhe mais tempo na televisão e mais espaço nos jornais do que a outras questões muito mais importantes. E alguns representantes da Igreja Católica atacaram-no com uma ferocidade emocional que revela bem que consideram tais opiniões sobre o Antigo Testamento como um obstáculo à fé. Mais uma vez, tal como salientei mais atrás, os comentários de Saramago não são nem chocantes nem novos. E apenas representam um obstáculo à fé para quem não tenha a menor ideia do que é e do que pretendia ser o Antigo Testamento. As críticas de Saramago são unicamente banalidades superficiais, que revelam uma profunda ignorância da filosofia e da religião ocidentais e uma total incompreensão da linguagem poética e narrativa de desde há mais de três mil anos. Só quem ignora tal herança, jornalistas e responsáveis religiosos incluídos, poderia tornar o patético desabafo do romancista numa tal polémica. E, para mim, essa foi a parte mais desanimadora e mais perturbante de toda esta "inventada" notícia: descobrir que na sociedade onde vivemos, entre os seus membros mais ilustres e cultivados, possa prolongar-se tão lastimosa ignorância de uma parte importantíssima do legado civilizacional da filosofia e da cultura ocidentais.

Tradução de José Lima

Exegese de Saramago

Artigo de João Maria de Freitas Branco no Público de 28 de Outubro de 2009.
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Espero que o meu caro José Saramago, autor aclamado nos vários cantos do mundo, me perdoe o atrevimento que este escrito consubstancia. No calor da viva polémíca suscitada pelo lançamento de Caim tem-me parecido não ter ele conseguido ainda explicar de modo claro o central motivo da sua apoquentação, bem como o consequente objectivo visado pelo discurso seu em torno da Bíblia e das leituras que dela se fizeram (fazem) na suposição de ser texto sagrado.


E com esse sentir que me atrevo a descer à liça, mesmo sabendo correr o risco de aparentar soberba ou pedantaria, pois o nosso Nobel, claro está, não precisa de advogado.

Mesmo assim, arrisco o gesto, não porque Saramago dele necessite, repito, senão que por ser eu seu confrade no combate à confusão, no apego à lucidez. Digamos que venho como advogado da racionalidade anticonfusão, num modesto esforço de dilucidação; não como dispensável defensor do autor de Caim.

Quando, referindo-se á Bíblia, o escritor a classificou de “manual de maus costumes”, ou quando disse “Deus não é de fiar”, em virtude da crueldade, das violências, das imoralidades contidas no relato bíblico, parece-me evidente ter querido acentuar apenas uma vertente, e não estar a dizer que a isso se reduziam todos os textos que compõem a Bíblia. Mas assim não foi entendido por alguns. Admitem esses, portanto, ser Saramago um pobre de espírito, alguém intelectualmente indigente que nem sequer reconheceu a evidente grandeza moral e estética de certas partes do Livro. Mas para que havia ele de insistir numa tecla tantas vezes premida? Num óbvio por outros continuamente apregoado neste torrão tão saturado de catolicismo? Interessa-lhe sim atrair a atenção para o que é ocultado, disfarçado, não dito, mas que contém gravíssimos riscos. No fundo, se bem en tendo, ele quer alertar para o facto da grande maioria dos crentes continuar refém da literalidade na leitura de texto nada isento de obscenidades ético-morais. Contém isso, objectivamente, graves perigos para o viver concreto dos humanos, bem como para a saúde do corpo societal.

Quando falam ao seu rebanho, os prelados da Igreja não se distinguem por avisar que o sr. Abel, o seu irmão assassino, a sra Eva ou a serpente loquaz nunca existiram. Não dizem: - é tudo fantasia simbólica; não devem por isso acreditar no que está literalmente afirmado. Ou seja, não endereçam ao rebanho a mesma recomendação dada a Saramago. Sábia prudência?

Quando hoje assistimos a uma missa não é de simbolismos que ouvimos falar. Não é a leitura simbólica de respeitáveis teólogos exegetas a que ecoa no templo. Nos pastores do rebanho, também não se lhes vê entusiasmo no sistemático combate à incultura, à insciência, assumindo, p.e., a defesa da teoria da evolução. Não se nota haver preocupação face aos dados estatísticos reveladores de assustadora ignorância criacionista. Esses factores de obscurantismo não parecem apoquentar os senhores da Igreja. Mas apoquentam, e muito, outros espíritos. Tal é o meu caso e o do romancista agora acusado de desrespeitosos dizeres, Porque aí reconhecemos imensa ameaça. É preocupação fundada na história, fácil é de ver. Quantas atrocidades de bíblica inspiração, meu deus!

O crente comum lê a Bíblia como sendo o mais valioso e referencial escrito, pois transporta a palavra de Deus. Aí, mais do que em qualquer outro lado, espera ele encontrar a Verdade, os princípios morais, as orientações fundamentais para uma vida sã. E terá que interpretar com base na informação de que dispõe. Onde pode ele ir descortinar simbolismos complexos que nem entre os sábios teólogos exegetas reúnem consenso? Que mensagem divina vai ele então assimilar? Que práticas vão resultar dessa assimilação? Aqui reside o problema.

Urge colher os ensinamentos da história, para não ficar mos prisioneiros de limitações pretéritas. Impõe-se oferecer permanente resistência à ameaça do obscurantismo que a ignorância alimenta. Se muito não erro, é isso que move Saramago, assim como, já gora o confesso, este modesto escriba da confraria dos amigos da Razão. Filósofo

2009-10-17

"O desafio é garantir que nenhuma criança é hoje abusada na sociedade irlandesa"

Por PATRÍCIA VIEGAS

Diário de Notícias 2009-10-17

Entrevista com Marianne O'Conno directora-geral da Conferência de Religiosos da Irlanda (CORI).

18 das 138 congregações representadas pela Conferência de Religiosos da Irlanda, CORI, são referidas no relatório Ryan.Como explica os abusos que aconteceram contra crianças que frequentavam escolas geridas por essas congregações religiosas durante o século XX?

Ainda estamos a tentar responder a isso e consideramos que essa é uma questão que temos que enfrentar. O facto de a Irlanda ser um Estado emergente, à altura dos factos; a pobreza generalizada; a compreensão psicológica da infância, que hoje é comum, mas não existia então; a falta de formação dos que trabalhavam nessas instituições e a teologia prevalecente à época. Estas são apenas algumas das explicações que têm sido adiantadas. Também deve ser levado em conta que, na sociedade irlandesa, em geral, nos lares e nas escolas, havia uma abordagem de disciplinar as crianças e isso, lamentavelmente, envolvia castigos corporais. Muito bem foi feito pelos religiosos na Irlanda, nesta altura, em termos de educação e saúde - mas a questão de saber porque tudo passou despercebido e sem inspecção permanece.
As vítimas de abusos físicos e sexuais querem que a Igreja lhes pague, directamente, 600 milhões de euros. Acha que a Igreja deve pagar?
Ao abrigo do acordo, de 2002, entre as 18 congregações e o Governo, baseado numa estimativa dos custos de compensação que provavelmente iriam ter lugar, os religiosos envolvidos na gestão das instituições do Estado transferiram 128 milhões de euros para as vítimas. Isto era baseado em dinheiro e em propriedades. 12,5 milhões de euros foram para um fundo de educação e formação. 10 milhões para aconselhamento. 6,5 milhões adicionais foram dispensados para serviços de aconselhamento. É agora sabido que o número de pessoas elegíveis para receber compensação do Conselho de Indemnizações [que junta dinheiro do Estado e da Igreja] ultrapassou todas as previsões e a estimativa dos custos é agora de mil milhões de euros. As congregações envolvidas com as instituições analisadas pela comissão Ryan, foram instadas pelo Governo a fazer uma avaliação dos seus bens. O Governo estabeleceu um painel independente para analisar os bens de cada uma. O desafio não é só arranjar dinheiro, embora isso deva ser feito. O desafio é encontrar formas de trazer conforto, assistência continuada aos que foram abusados. Os fundos adicionais, quando fixados, poderão ir para iniciativas nas áreas da habitação, educação, literacia, vícios, aconselhamento, cuidados de saúde. É preciso ver também que muitas congregações já providenciaram alojamento, formação, aconselhamento e apoio para os seus antigos alunos e continuam a fazê-lo. E é também preciso ver que cada uma das congregações tem autonomia dentro da estrutura CORI.
Que parte tem o Estado na culpa do que aconteceu?
A culpa não reside apenas na Igreja, mas também no Estado, que falhou no seu papel de regulador, no sistema judicial e na sociedade irlandesa, em geral, que fechou os olhos e nunca questionou o sistema. Acho que é difícil para alguém com menos de 40 anos perceber o que aconteceu. E para os que são mais velhos isso revela que não questionávamos a nossa vida e os nossos tempos.
Como podem os responsáveis pelos abusos ser punidos?
Nos casos em que possa ser provado que ocorreram actos criminosos a lei deve ser aplicada da forma mais rigorosa e, nalgumas ocasiões, tem sido.
Acha que ainda se vai a tempo de fazer justiça, tendo em conta que muita gente, vítimas e abusadores, já morreu?
Nós devemos sempre lutar por fazer justiça. Esse é um imperativo do Evangelho. Como religiosos, temos que continuar a tentar viver de forma autêntica o evangelho de Jesus Cristo. Também temos que procurar o perdão. Mas perdoar não é esquecer. Também precisamos de dizer a verdade e ajudar os nossos próprios membros a lidar com a realidade que agora emergiu. Não estamos onde estávamos há 40 anos. Foram pedidas desculpas públicas aos sobreviventes por todas as congregações religiosas envolvidas.
Como podem ser evitadas, no futuro, situações semelhantes?
Para evitar este tipo de abusos, no futuro, precisamos, a nível estatal, de uma legislação efectiva e de um acompanhamento rigoroso da implementação dos procedimentos de salvaguarda das crianças. Ao nível da Igreja, os bispos, a CORI e a União de Missionários Irlandesa, juntos, estabeleceram um organismo independente, o Conselho Nacional de Salvaguarda das Crianças, o qual já está a ser reconhecido a nível nacional pelas suas medidas. O desafio de todos nós é garantir que nenhuma criança é hoje abusada em nenhum sector da sociedade irlandesa e que o mesmo nunca mais vai acontecer.
Alguma vez esteve numa das escolas onde havia abusos?
Enquanto criança, até aos 11 anos, frequentei uma escola primária num convento, que tinha um orfanato agregado. Os órfãos eram educados em separado e o sentimento que eu tinha, enquanto criança, era o de que eles eram "diferentes". E embora houvesse muita gente pobre na minha escola, de alguma forma eu tinha a ideia de que "eles" eram ainda mais pobres do que nós. Nunca visitei nenhuma das suas salas de aula ou residências porque éramos desencorajados a ter algum tipo de comunicação com eles.

Uma "Casa Pia" monstruosa na Irlanda, todo o século XX

Grande reportagem do DN de 17 de outubro de 2009 com o título benigno de Má Educção

Marie-Therese, Tom Hayes e Paddy Doyle estão entre os milhares de vítimas de abusos nas escolas industriais geridas por religiosos na Irlanda do século XX e exigem mais 600 milhões em indemnizações das congregações da Igreja. Isto numa altura em que o país se prepara para um segundo relatório sobre abusos a crianças, depois da divulgação, em Maio, do relatório Ryan.


A capa impermeável azul escura às bolinhas brancas trava-lhe o passo apressado. Ansiosa por alcançar a escola, como uma criança da primária, Marie-Therese O'Loughlin chega ligeiramente atrasada à aula de Matemática para adultos na Larkin Community College de Dublim. Aos 58 anos, está a aprender a fazer contas e a tentar recuperar o tempo perdido. Os anos que passou na escola industrial de Goldenbridge, durante a infância, não foram dedicados ao estudo. "As crianças passavam os dias a fabricar rosários que depois eram vendidos em locais de culto. Além disso éramos obrigados a lavar pilhas de roupa suja, lençóis, as fardas das freiras. Os que nunca tinham visitas, como eu, eram crianças prisioneiras. Havia outros, com mais sorte, que eram autorizados a frequentar a escola nacional. Eu tentava ler os placardes de publicidade que via nos edifícios, mas quando saí de lá praticamente não sabia ler nem escrever", conta, com visível mágoa e marca psicológica por tudo o que passou. Marie- -Therese está entre os milhares de pessoas que sofreram agressões físicas e abusos sexuais em estabelecimentos de ensino estatais geridos por congregações religiosas na Irlanda do século XX. Não aceita, por isso, que o relatório Ryan, divulgado em Maio, após nove anos de investigação, sobre um período de seis décadas, "classifique como trabalho infantil aquilo que mais não era do que escravatura".

As escolas reformatórias e industriais acolheram, até fecharem, nos anos 90, mais de 30 mil crianças ditas malcomportadas ou vindas de famílias disfuncionais, o que muitas vezes poderia simplesmente significar que eram filhas de mãe solteira. Este era o caso de Marie--Therese, cuja mãe, Johanne Karma, vinda de uma zona rural, em Wexford, decidira dar à luz a criança na capital irlandesa para não ser apontada na sua terra natal. A Irlanda era e continua a ser um dos mais fervorosos países da Europa. A bebé nasceu na maternidade Regina Coeli, onde, aos 18 meses, caiu dentro de uma lareira, ficando com marcas na pele que ainda hoje são visíveis. Aos quatro anos, foi entregue a Goldenbridge, por ordem do tribunal. Ali foi--lhe dito que a mãe morrera. E ela acreditou. "Ainda cheguei a sair uma vez, na primeira comunhão, com uma família de acolhimento, que depois me abandonou. Entre os nove anos e os 16, quando saí dali, nunca mais vi o mundo exterior. Éramos obrigadas a fabricar seis dezenas de contas de rosário por dia porque senão batiam-nos. Todas as manhãs havia uma irmã que obrigava todos a levantarem-se e, se alguém fizera xixi na cama, levava", explica, descrevendo um quotidiano de horrores na escola gerida pelas irmãs da Misericórdia.

Habitualmente mal vestidas, higienizadas, alimentadas, as crianças estavam sempre impecáveis no dia em que o inspector visitava o estabelecimento de ensino. "Ele não falava connosco, nós também não tentávamos falar com ele, não sabíamos que tínhamos direitos e vivíamos no medo", precisa, acrescentando que, quando os homens que trabalhavam lá abusavam sexualmente dela, atrás do palco, a troco de doces, "também achava divertido porque era pequena e não sabia que estava errado".

Tom Hayes, que foi entregue pelo tribunal aos dois anos e meio de idade, também viveu tempo na crença de que a mãe morrera. "Eles diziam isso que era para ninguém fazer perguntas, escrever cartas, era mais simples. Os órfãos eram os mais agredidos de todos porque não tinham ninguém a quem se queixar", conta, enquanto bebe um café misturado com coca-cola num dos hotéis mais antigos de Dublim. E exibe uma cópia da sua ordem de internamento, primeiro na escola St. Joseph, em Killarney, depois noutra com o mesmo nome, mas em Glin, Limerick. Ao longo de décadas de desconfiança, secretismo, cumplicidade entre Estado, Igreja e sociedade, Tom, de 63 anos, ganhou a mania de comprovar com documentos tudo o que diz.

"Na segunda escola em que estive, gerida pelos irmãos Cristãos, tínhamos algumas aulas, trabalhávamos na quinta, os mais crescidos na loja de sapatos. Éramos 200 rapazes, dormíamos 30 a 40 no mesmo dormitório e, aí, à noite, era frequente os monitores e vigias, mais velhos, abusarem dos outros. Noutras ocasiões isso acontecia quando estávamos a brincar no jardim. Às vezes havia um, dois ou três rapazes a tentarem abusar sexualmente de uma outra criança, éramos enconrajados a fazer parte de gangues e a aceitar ser violados."

Entre 1954 e 1962, dos oito aos 16 anos, nunca saiu da escola para fora e das vezes em que fez queixa dos abusos aos religiosos ainda recebeu mais ameaças dos colegas. Nada foi feito. "Quando saí não sabia ler, nem usar um telefone, lia devagar, não tinha capacidade de relacionamento social. Mais tarde tive seguimento médico, ajuda de um psicólogo, mas aquilo nunca desapareceu. Os abusos continuam connosco, a assustar-nos, a aparecer nos pesadelos. Não há volta a dar: uma vez abusado, é-se marcado para toda a vida", desabafa, enquanto o olhar longínquo e lacrimoso denuncia que foi subitamente transportado para o passado.

Tom Hayes e Marie-Therese vieram a descobrir, posteriormente, que as suas mães não tinham morrido e que, apesar de nunca receberem visitas, tinham família. "Quando saí da escola andei, durante muito tempo, numa vida sem sentido. Até cheguei a usar nomes falsos, a inventar referências para ir trabalhar como au pair na Suíça, mas depois de ter sido descoberta fui internada num hospital psiquiátrico e deportada. Nessa altura, porém, já não tinha medo das ameaças das irmãs de Goldenbridge e fugi, viajando, à boleia por toda a Europa. A certa altura, quando vivia em Londres, numa pensão, fui ajudada por um padre, que me levou a um psicólogo", recorda, dizendo que começou a rir quando este lhe pediu para falar de si e da mãe.

"Eu não sabia quem eu era e muito menos o que era uma mãe." A única coisa de que tinha memória era a casa da família de acolhimento que em tempos a rejeitara. "Voltei à Irlanda e fui bater à porta deles. Pedi explicações e eles, então, levaram-me até um bar em Wexford. Fui apresentada a um homem que era meu tio, que não sabia que eu existia e ficou em estado de choque. Ele contou que a minha mãe casara com outro homem e vivia em Birmingham. Eu passei-me por saber isso e voltei a ir-me embora para Londres." Quando lá estava, na pensão, recebeu um telefonema da mãe a pedir- -lhe perdão. "Foi em Agosto de 1979", diz, acrescentando que "ela morreu em 1990".

Mais recentemente, em 2007, enquanto dormia à porta do Parlamento irlandês, Dáil, para exigir que lhe seja paga também uma indemnização pelo que lhe fizeram na maternidade Regina Ceoli, descobriu que tinha uma irmã. "A mulher ficava ali, a olhar, mas não dizia nada. A seguir mandou-me um e-mail a dizer que também ela era filha de Johanne Karma, mas que, ao contrário de mim, tinha sido adoptada. Agora tem quat-ro filhos. E eu não tenho nada, nunca estudei nem trabalhei, fui declarada inválida e sofro de stress pós-traumático", exclama, confessando que, até agora, ainda não arranjou coragem para se encontrar com a meia-irmã.

Tom, pelo contrário, já conheceu a família que tem do lado da mãe, em 2003. A Alliance Victim Support Group, de que faz parte, recebeu uma carta de um primo a perguntar por ele. "A família sempre soube que a irmã da mãe dele tivera um filho, mas não sabiam onde ele estava. Foi assim que descobri que a minha mãe fora viver para Inglaterra e tivera mais dois filhos e duas filhas. Conheci-os todos, há seis anos, tenho tios e tias, sobrinhos, em Limerick, Cork, Liverpool, até nos EUA", explica. Sobre o seu pai nunca descobriu nada.

Casado e com dois filhos, Tom vive actualmente em Armagh, na Irlanda do Norte. É reformado do Exército britânico, a tábua de salvação que encontrou depois de um passado errante em hotéis irlandeses, onde trabalhou depois de deixar a escola gerida pelos irmãos Cristãos. Agora prepara-se para ir ao Supremo Tribunal, com as suas próprias provas, porque o relatório Ryan não serve de prova. Apesar de tirar conclusões contundentes, a comissão do juiz Sean Ryan, que ouviu 1090 testemunhas, atribuiu pseudónimos a todos os alegados culpados de abusos.

Noutra ponta de Dublim, Paddy Doyle, que aos 58 anos tem que lidar não só com as memórias de agressões físicas e abusos sexuais, mas também com a deficiência a que uma operação malfeita o votou, explica que é indecente ser o dinheiro dos contribuintes a pagar a maior parte das indemnizações que têm sido atribuídas às vítimas. Activista de direitos humanos e defensor do uso da marijuana para fins terapêuticos, Doyle está numa cadeira de rodas desde os dez anos. Nessa altura, as freiras da escola St. Michael em Cappoquim, que lhe batiam a torto e a direito, fosse por ele urinar na cama, por dizer que vira um homem enforcado ou por não ter polido bem o chão, levaram-no ao hospital porque ele arrastava um dos pés. "Algum médico decidiu que o que tinha nos pés estava relacionado com o sistema neurológico e operaram-me, 11 vezes, ao cérebro. Eu conseguia andar antes da primeira operação, mas, depois dela, as minhas pernas começaram a fazer coisas que eu não queria e, de um momento para o outro, já nada funcionava", conta, explicando que, dos oito aos 18 anos, a sua vida foi passada em hospitais. "Nunca mais recebi a visita das freiras, elas deviam fazer o papel dos pais, mas os pais não fariam isso", lamenta, durante uma conversa no jardim do hotel que fica perto de sua casa.

Mas eis que, ao atingir a maioridade, um anjo apareceu na sua vida. "Fui adoptado por uma mulher viúva, que já tinha sete filhos dela, mas não se importou com a minha deficiência. Ela encorajou-me a fazer coisas que não fazia, por medo dos outros, como estudar, andar de autocarro. Foi então que passei a fazer tudo como os outros adolescentes: bebia, fumava, saía à noite, cortejava raparigas." E numa dessas noites de borga, quando tentava entrar numa discoteca, conheceu a futura mulher, uma enfermeira. "O dono da discoteca não me deixou entrar e eu fiquei à por- ta a protestar durante três noites. No final, já com os media lá, obriguei-o a dizer que nunca mais discriminaria ninguém pela deficiência", conta o activista, hoje com três filhos e dois netos.

O único parente mais próximo dos pais que conheceu, há 20 anos, foi um tio. "Eu andava a dar entrevistas na televisão por causa do livro que escrevi, alguém viu e ligou-me a dizer para ir visitá-lo, porque ele estava no hospital muito mal. Não consegui muita informação dele, pois era velhote, doente, só chorava. Mais tarde descobri que o homem enforcado de que me lembrava era o meu pai, que cometeu suicídio depois de a minha mãe ter falecido de cancro na mama. Mas, curiosamente, até hoje não consegui descobrir onde estão enterrados, porque na terra, em Longford, ninguém me diz."

Paddy é uma das vítimas de abusos que sobreviveram e ultrapassaram os obstáculos com muita coragem, diz Mary Raftery, jornalista freelancer, cujos documentários, States of Fear, em 1999, destaparam publicamente o escândalo de que muitos falavam em surdina. O seu trabalho obrigou o então primeiro--ministro irlandês, Bertie Ahern, mais as congregações religiosas, a pedir desculpas. Foi estabelecido um sistema de indemnizações, de apoio às vítimas, mais uma comissão de inquérito. O problema é que o Governo pagou, com dinheiro dos contribuintes, a maior parte dos 1,3 mil milhões de euros de indemnizações e as congregações só pagaram, até agora, 128 milhões. As vítimas exigem, por isso, que elas lhes paguem directamente metade do que o Governo pagou, ou seja, mais 600 milhões de euros. "Julgo que a educação que não tiveram foi aquilo que fez maior mossa. O departamento da Educação sabia que existiam queixas e também nunca fez nada. Quando investiguei, passei meses a tentar que as pessoas falassem comigo e, nalgumas aldeias, muitas admitiram que ouviam as crianças a gritar à noite. Quando perguntei porque não fizeram nada, essas pessoas responderam que não sabiam o que fazer, o que dizer, pois a Igreja era o poder", conta Raftery, considerando que tanto cidadãos como governantes tiveram, durante muitos anos, uma posição pró-católica. "A sociedade irlandesa colocou a Igreja num pedestal e achou que ela não podia fazer mal a ninguém."

2009-10-10

O QUE FAREMOS COM ESTE PRESIDENTE?

Artigo de Victor Malheiro no Público de 3ª feira 6 de Outubro de 2009
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«Na terça-feira passada passei a integrar as fileiras, em termos políticos, de uma imensa maioria. Essa maioria é constituída pelos portugueses que ficaram estarrecidos depois de ouvir a declaração do Presidente do República sobre a questão das escutas. Estarrecidos não porque o Presidente tenha feito quaisquer revelações bombásticas (que não fez), não porque o Presidente tenha deixado “muitas coisas por esclarecer”, como disseram com inexcedível benevolência vários analistas, mas simplesmente porque o discurso do Presidente não fazia qualquer sentido.


Não estou a dizer que discordo do ponto de vista, da análise, da intenção, da estratégia do estilo ou do timing do presidente ou de qualquer outra coisa. O que digo é mais simples: seja qual for a análise que se faça da situação política do momento, da intenção do Presidente ou da sua estratégia, o discurso não fazia sentido. O texto não fazia sentido em termos de lógica formal, em termos retóricos ou em termos políticos - e está na Internet para quem o queira comprovar.

Se se tivesse tratado de uma declaração de improviso, à saída de casa, a incoerência e a incongruência seriam aceitáveis - poderiam desiludir-nos, porque todos gostaríamos de ter um Presidente com o pensamento organizado e um discurso articulado, mas seriam compreensíveis.

Num discurso anunciado repetidamente com dramatismo, que abordava urna questão que parecia tão momentosa como o “watergate”, ansiosamente esperado, que não pode deixar de ter sido escrito com enorme cuidado e analisado com o maior rigor, o facto é não só inaceitável como bizarro .

Um discurso presidencial não costuma ser fruto de um esforço individual e a explicação seria fácil se o Presidente se tivesse rodeado, em Belém de um staff escolhido entre as pessoas menos aptas do país (tanto em termos de retórica como o de puro raciocínio, como de análise política), mas esse não parece ser o caso. A explicação restante é que o texto foi de facto discutido com os seus assessores, mas estes não tiveram coragem, de lhe dizer que o discurso não fazia sentido, que não se pode dizer a mesma coisa e o seu contrário, etc.

Todos os Presidentes, e todos os políticos têm momentos infelizes e deslizes patéticos. É mais raro que planeiem cuidadosamente, um momento totalmente patético (o adjectivo, usado, por Ana Gomes, é rigoroso)

O discurso de Cavaco Silva levanta questões de grande relevância política para além das que têm sido abordadas. Pessoalmente, é-me indiferente se o Presidente e o primeiro-ministro se sentem mais ou menos constrangidos nos seus encontros semanais e se está ou não em causa uma “cooperação institucional” que nunca existiu.

O que é mais importante é que Cavaco Silva, antes das eleições, estava obviamente encantado consigo mesmo e antecipava com deleite a resposta que tinha preparado para dar a Sócrates (repare-se no seu sorriso nas televisões, quando repete que não falará, com ar de quem garante que o primeiro-ministro não espera pela demora).

Como é possível que o Presidente, garante do normal funcionamento das instituições democráticas e chefe supremo das Forças Armadas, manifeste um tão grande desfasamento com a realidade? Como é possível que alguém a quem se pede que consiga mediar e solucionar os problemas mais graves de relacionamento institucional que se revelem no pais faça uma intervenção tão trapalhona, tão tonta e tão contente consigo como o presidente fez na semana passada? Cavaco Silva parece bafejado pelos deuses: conseguiu criar uma imagem de rigor por ser hirto, uma imagem de seriedade politica por não ter sentido de humor e uma imagem de prudência por se exprimir como laconismo de um jogador de futebol. Mas de que maneira poderá capitalizar o facto, que agora se tornou ululantemente óbvio, de que não possui um mínimo de bom senso? E quanto tempo, em nome do sectarismo político, vão os seus apoiantes levar a admiti-lo»
José Vítor Malheiros
jvmalheiros@gmail.com

2009-10-05

Democracia sob avaliação

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Artigo de João de Freitas Branco no Público de 2009-10-03:
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«...Muito estimaria ver provada a inocência de quem deixou obra de mérito em Oeiras. Mas na situação actual, o voto em Isaltino é voto cúmplice de um alegado crime. É obscenidade política. Com tal voto, o eleitor confessa-se: se eu lá estivesse, teria feito o mesmo; teria prevaricado....»
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«A singularidade de que se revestem as próximas eleições autárquicas em Oeiras confere a um acto político de incidência local dimensão não local. Estamos perante um teste à democracia real que se repercutirá a nível nacional.
«A situação é grave.
«Supunha-se que em nome do mais elementar bom senso e respeito pela dignidade, Isaltino de Morais faria o que muito sensatamente dissera ser sua intenção. Não aceitar exercer cargos políticos enquanto não fosse provada a sua inocência. Pertenço ao grupo daqueles que de forma sincera desejou ver provada em tribunal a inocência de quem deixou obra no Concelho. Porém, o que aconteceu foi o contrário. Não só a inocência não foi provada, como o tribunal condenou o arguido a pena de prisão. O colectivo de juízes considerou provados crimes cometidos no exercício das funções autárquicas. Já não estamos perante uma acusação. Estamos sim perante uma condenação. A ser eleito, o prevaricador manter-se-ia assim no lugar onde prevaricou, até ser cumprida uma decisão judicial vexatória da imagem do município, caso o recurso que interpôs seja considerado improcedente. A exuberância da campanha eleitoral de Isaltino, superando a dos candidatos apoiados por partidos, gera novas suspeitas e legitima apreensões. Quem está a pagar tão luxuosa campanha? E porquê?

«Num país com outra compleição ético-política, com tradição de alta cultura, nomeadamente de cultura política democrática, o problema estaria resolvido de raiz por legislação impediente do despautério, bem como também pelo instintivo repúdio do eleitor informado. Mas por cá reina ainda o nacional porreirismo; persiste a inclinação para admirar o bom burlão, estima-se o esperto ludibriante, oportunista crónico, que mostra saber governar-se. Neste torrão, o hábito de fraudar colhe aplauso e, como alguém disse, a esperteza é moeda sempre valorizada. A isto se junta o respeito pelos tesos que já António Sérgio denunciava como perigoso defeito da gente lusa. Como se tudo isto não bastasse, vivemos em terra onde, como se acabou de ver, a Cultura está ausente do debate eleitoral, e em que essa falta nem sequer é notada por um único dos ilustres comentadores de serviço.

«Muito estimaria ver provada a inocência de quem deixou obra de mérito em Oeiras. Mas na situação actual, o voto em Isaltino é voto cúmplice de um alegado crime. É obscenidade política. Com tal voto, o eleitor confessa-se: se eu lá estivesse, teria feito o mesmo; teria prevaricado.

«Se o voto popular legitima a imoralidade e a política sem ética, então é porque o povo não presta. Assim sendo, a democracia faliu. Sim, porque a democracia é, por definição, o governo do povo. Se o poder está na mão de quem não exibe excelência, senão que menoridade moral e intelectual, então esse poder só pode ser um péssimo poder.

«É o valor da democracia real que vai a votos em Oeiras.

«Não faltam alternativas credíveis. Mas mesmo que faltassem, nada justificaria o voto cúmplice. As alternativas vão de um Amílcar Campos (CDU), com notável currículo de autarca exemplar, com vasto passado de obra feita no concelho, até Marcos Perestrello (PS), sem passado oeirense mas transportando juvenilidade forte e vontade de renovação que trazem à memória o primeiro Isaltino, jovem de trinta e tantos anos (como agora Perestrello) a que todos reconheceram qualidade. Marcos Perestrello reúne as melhores condições para atrair os votos do antigo eleitorado de Isaltino. Talvez para esses seja o voto útil mais útil. Mas todos os votos são úteis desde que ética e cognitivamente fundamentados de acordo com a consciência do votante.

«Como Shakespeare genialmente deu a ver, o poder semeia vícios, corrompe. E quando se mantém por muito tempo, ainda mais balda semeia. Por maiores que sejam as qualidades exibidas, não é desejável nem saudável que alguém se perpetue no mando. A história já o demonstrou.
Urge pôr fim a um ciclo que teve grandeza e misérias e já não tem futuro.»
João Maria de Freitas Branco

2009-10-03

Voto útil mais útil


«Quem me conhece e tem acompanhado o meu percurso político-ideológico sabe do meu desafecto à tese do voto útil. Cada voto deve expressar aquilo que, em consciência, o cidadão eleitor considera ser a forma de melhorar o estado de coisas. A aposta no mal menor, em nome dum suposto “voto útil”, representa perda de autenticidade e raramente satisfaz os interesses do votante. Quando um político declara só existirem dois votos úteis, o voto em A (ele próprio), e o voto em B (o alegado adversário principal) está despudoradamente a insultar o eleitorado e a democracia. Todo o voto é útil desde que consciente, fundamentado e bem informado, cognitivamente alicerçado. Por isso, sempre entendi e entendo ser bem útil o voto nas forças políticas que, mesmo não ganhando, se opõem ao sistema vigente, o capitalismo gerador de desigualdades crescentes, e que procuram edificar novo sistema alternativo que inverta o processo, reduzindo as desigualdades e a injustiça social, e cumprindo o esplêndido programa iluminista da Igualdade.

Sem pôr em causa nada do que antes afirmei, a verdade é que a realidade sempre se mostra mais rica do que o nosso pensamento, superando até a nossa fértil imaginação. Temos agora em Oeiras uma singularíssima conjuntura que confere às próximas autárquicas dimensão inaudita. A situação é grave. As implicações do próximo voto dos oeirenses extravasam o espaço local: são um teste à democracia.

É o voto para a presidência da Câmara que está em causa – é deste e só deste que falo, e não do voto para as Freguesias ou para a Assembleia Municipal.

Supunha-se que em nome do mais elementar bom senso e respeito pela dignidade, Isaltino de Morais(IM) faria aquilo que muito sensatamente dissera ser sua intenção. Não aceitar exercer nenhum cargo político enquanto não fosse provada a sua inocência. Pertenço ao grupo daqueles que de forma sincera desejou ver provada em tribunal a inocência de quem deixou obra no Concelho. Porém, o que aconteceu foi o contrário. Não só a inocência não foi provada, como o tribunal que julgou o caso condenou o arguido a uma pena de prisão exemplar. Houve, portanto, um colectivo de juízes que considerou provados crimes cometidos por IM no exercício das funções de Presidente da CMO. Já não estamos perante um arguido e uma acusação. Estamos sim perante uma condenação. A ser eleito, o prevaricador manter-se-ia assim no lugar onde prevaricou, até ser cumprida a decisão do tribunal, caso o recurso que interpôs seja considerado improcedente.

Quem votar IM ofende a democracia e declara-se potencial cúmplice de um acto de corrupção. Se o voto, elemento fundamental do sistema, passar a estar ao serviço da imoralidade e da política sem ética então a democracia desmorona-se. Perde as qualidades que lhe conferem superioridade.

Para onde se vão deslocar os votos do antigo eleitorado de IM? Se não existissem legítimas convicções ideológicas e interesses, filiações partidárias, inclinações subjectivas, preconceitos, sectarismo, e se prevalecesse apenas o juízo objectivo com base no critério do trabalho realizado no Município, Amílcar Silva Campos seria eleito Presidente. Mas um comunista ainda apavora muitas almas.

As condições excepcionais em que as próximas eleições autárquicas vão ser disputadas, a urgência de encerrar um ciclo político, a ameaça de maior decaimento ético, os graves riscos que se perfilam caso não seja eleito um novo presidente são elementos que tornam este acto eleitoral diferente de todos os anteriores.

Nesta circunstância muito singular, sou levado a reconhecer que a candidatura de Marcos Perestrello, aposta do PS num quadro político da nova geração, é a que está em melhores condições de chamar a si os votos de milhares de eleitores que agora já não admitem votar Isaltino. Nesse sentido, o voto em Marcos Perestrello é um voto útil mais útil para impedir uma obscenidade política. Um apelo que endereço a ex-apoiantes de IM assim como aos indecisos, e que, procurando dar resposta a uma situação de excepção, em nada contraria a minha tese sobre o voto útil.

Oeiras e os seus munícipes não merecem passar pelo vexame – se não certo, pelo menos provável ou possível – de ficarem sem Presidente a meio do mandato, por efeito de uma determinação judicial, e verem ascender ao lugar um “segundo” sem condições para o exercer, precipitando assim a autarquia num vazio causador de elevados prejuízos.

A história demonstra não ser desejável nem saudável que alguém, por maiores que sejam as suas qualidades, se perpetue no poder. Estas eleições devem, também por isso, encerrar um ciclo e inaugurar uma nova era da vida do nosso Concelho.»

João Maria de Freitas Branco

2009-09-26

A deontologia e as suas "fontes"

Artigo de opinião do director do DN, JoãoMarcelino, em 2009-09-26


“A obrigação de guardar sigilo é sempre uma relação “daquele” jornalista com a “fonte”. Essa obrigação não se estende a terceiros, mesmo que igualmente jornalistas”
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«Durante uma semana, como prometi aos leitores do Diário de Notícias, não me pronunciei sobre nenhuma das questões laterais à polémica das escutas. Não quis, apesar dos inúmeros reptos, contribuir para desfocar a questão de fundo com discussões sobre o umbigo da corporação jornalística.

Hoje, tendo a notícia central feito o seu caminho e sido adoptada por todas as pessoas que não são fanatizadas pela argumentação partidária, creio que chegou o tempo para participar de forma construtiva numa reflexão que os jornalistas devem fazer a propósito deste caso. E vou fazê-lo sem responder aos insultos de que tanto eu como a Direcção do DN e os jornalistas que assinaram a notícia fomos alvo só porque entendemos dever lealdade aos leitores e não à protecção de um ou outro elemento da classe.

1.  Uma notícia é uma notícia. A obrigação primeira de um jornal é cumprir o dever de divulgar todos os factos relevantes que cheguem ao seu conhecimento. Chama-se a isto o dever de informação. Não podia, pois, o DN deixar de divulgar um facto relevantíssimo: era Fernando Lima, o principal assessor de comunicação de Cavaco Silva, quem alegando agir em nome do PR, abordara o jornal Público para que este publicasse a história das alegadas escutas/espionagem sobre Belém que o PR estaria (ou ainda estará, não se sabe) convencido existirem por parte de alguém do gabinete do primeiro-ministro.

O DN publicou a história quando dela teve conhecimento e logo que conseguiu comprovar a autenticidade do e-mail. Não esperou um minuto. Fez exactamente o mesmo uns meses antes com a divulgação de outro documento relevante: a carta rogatória da justiça inglesa sobre o caso Freeport, com referências explícitas ao primeiro-ministro, José Sócrates. Então como agora, no momento em que conhecemos a história, e confirmámos a sua autenticidade, levámo-la aos leitores. Factos são factos. E o DN foi o único jornal a avançar com a notícia do documento nesse dia (todos os outros fizeram-no 24 horas depois), o que muito agradou na altura ao PSD e desagradou ao PS.

Relembro esse outro caso apenas para que os leitores se situem melhor perante as insinuações malévolas de que o DN tem sido alvo e fiquem tranquilos quanto à linha editorial do jornal: informar sem olhar às necessidades temporais de interesses particulares.

2.  Ao contrário do que foi por alguns apressadamente afirmado, a divulgação do nome de Fernando Lima não constitui uma divulgação de uma fonte jornalística.

Cito aos leitores o que diz o artigo 6 do Código Deontológico da profissão (já que os jornalistas deviam conhecê-lo melhor): “O jornalista deve usar como critério fundamental a identificação das fontes. O jornalista não deve revelar, mesmo em juízo, as suas fontes confidenciais de informação, nem desrespeitar os compromissos assumidos, excepto se o tentarem usar para canalizar informações falsas. As opiniões devem ser sempre atribuídas.”

Só aqui já há muita matéria para reflexão, mas fica claro, pelo menos, que cada jornalista deve cuidar das suas fontes. Se há algo deontologicamente anormal neste caso é que um jornalista, depois de um contacto importante, chegue ao jornal e faça uma “acta” de uma reunião com uma “fonte” divulgando-a a terceiros e pedindo a fabricação de uma notícia a partir da Madeira…

3.  Neste caso, o nosso objectivo era precisamente chegar a saber quem era a fonte da PR que falara ao Público (num processo que merecera críticas públicas e contundentes de Joaquim Vieira, Provedor dos Leitores desse mesmo jornal).

Relembro, a este propósito, um bom exemplo, e mundial. A partir de Junho de 1972, Mark Felt, importante responsável do FBI, foi o “Garganta Funda” que deu as informações aos repórteres do Washington Post, Bob Woodward e Carl Bernstein, sobre o que viria ser o caso Watergate. Só em 2005, três anos antes de morrer, Felt revelou publicamente ser o “Garganta Funda” – até lá, nem Woodward nem Bernstein quebraram o sigilo. Mas, dada a relevância e a importância do caso (que acabou por destituir o Presidente Nixon), identificar a fonte de Woodward e Bernstein passou a ser um motivo de investigação de muitos outros jornais, para melhor compreender o processo. Em 25 de Junho de 1975, em editorial, o Wall Street Journal disse que Felt era o informador; em 1992, James Mann, que trabalhara no Washington Post com Woodward, mas não no caso Watergate, escreveu na revista The Atlantic Monthly que o informador era do FBI e provavelmente Mark Felt; em 1995, The Hartford Courant (maior diário do estado de Connecticut) escreveu que Felt era o “Garganta Funda” e em 2002, o San Francisco Chronicle disse o mesmo.

Ou seja, a obrigação de guardar sigilo é sempre uma relação “daquele” jornalista com a “fonte”. Essa obrigação não se estende a terceiros, mesmo que igualmente jornalistas – e sobretudo não tem sentido quando o interesse público se sobrepõe claramente ao direito (que alguns jornalistas chamam, erradamente, apenas um dever – que também o é, obviamente) de respeitar o anonimato de uma “fonte”, quando pactado.

Deixo ainda, marginalmente, para quem quiser reflectir de forma construtiva neste caso o que diz o “Estatuto do Jornalista”, que é Lei, no seu artigo 14º, nº2, alínea a). Deve o jornalista “proteger a confidencialidade das fontes de informação na medida do exigível em cada situação, tendo em conta o disposto no artigo 11.º [sobre o sigilo profissional], excepto se os tentarem usar para obter benefícios ilegítimos ou para veicular informações falsas”.

Será que não se deve pensar também neste artigo a propósito dos factos conhecidos?

4.  A divulgação do nome de Fernando Lima como fonte da notícia do Público é um facto noticioso da máxima relevância, justamente por Lima ser quem (era ou ainda) é: "só" o principal assessor de Cavaco Silva para a comunicação, um homem cujo cargo e funções são pagos com dinheiro dos contribuintes. Saber como Lima exerce a sua função, e o que faz no uso do seu tempo ao serviço do Estado, é matéria escrutinável e sindicável pelo público, principalmente quando ele aborda jornalistas para a divulgação de um facto político tão relevante quanto este.

Acho estranhíssimo, por exemplo, que um jornalista escreva isto: “Fernando Lima fez aquilo que os assessores de imprensa de Belém, de São Bento ou dos partidos (de Soares a Cavaco, de Guterres a Barroso, etc.) sempre fizeram e fazem” (José António Lima, no semanário Sol).

Pessoalmente, desconheço em absoluto esta promiscuidade. De certeza apenas por um acaso da sorte, o meu tempo de profissão (quase 30 anos) fez-se à margem desta triste realidade. Mas lamento que jornalistas convivam com ela sem se questionarem, servindo de pés de microfone à intriga e sobretudo protegendo a má-fé. Um jornalista digno desse nome não pode deixar-se manipular ou manietar através de fontes anónimas, do off envenenado.

5.  As cartas (no caso e-mails) entre pessoas gozam por princípio do privilégio de sigilo. Mas há razões - e no caso são evidentes - que justificam que terceiros tenham acesso ao seu conteúdo. Mormente quando - como no caso - esse e-mail mostra como surgiu o caso das alegadas escutas ao PR, como ele foi tratado pelo seu principal assessor, como o caso foi passado para a imprensa e como esta o tratou.

Face à relevância e contornos dos assuntos tratados, a questão da quebra da confidencialidade da correspondência é justificada.

O sigilo da correspondência não é um valor absoluto e existem causas legítimas de quebra do mesmo. Todos os dias a imprensa mundial regista casos de divulgação de cartas. O facto dos destinatários do e-mail serem jornalistas não transforma o referido e-mail em mais ou menos confidencial.

6.  O que foi relevante, do nosso ponto de vista, foi sentirmos que a divulgação do e-mail correspondia àquilo que nos é exigido como jornalistas.

Não podíamos deixar de publicar uma história política grave, em todas as suas vertentes, onde há vários protagonistas e intervenientes, e onde são visíveis os cruzamentos entre a política e os media. Ou vice-versa.

A tinta vertida desde então, alguma de forma tresloucada, é a prova do interesse do que noticiámos. Como jornalista, e como responsável máximo por um jornal, não conseguiria dormir tranquilo a pensar que tinha escondido dos leitores tão relevante informação.

Meter aquele documento na gaveta teria sido pactuar com a manipulação e esquecer o dever de informar e o interesse público.

É natural que haja quem discorde do entendimento que eu e o DN temos deste caso. Só não acho normal o ataque pessoal e o insulto soez. Vou apelar aos tribunais em dois casos, de que não faço aqui propaganda, com uma certeza: nenhum deles conseguirá negociar comigo qualquer desistência. Com cobardes não há acordos.»

Sobre o mesmo tema [ aqui]

2009-09-20

A questão principal

Joaquim Vieira, Provedor do leitor do Público, não teve medo do director, José Manuel Fernandes e fez o seu trabalho. Esta é a segunda parte dele, publicado no Público de 2009-09-20 e que leva o título do post. No post que se segue abaixo está a primeira parte do seu trabalho.


«Na sequência da última crónica do provedor, instalou-se no PÚBLICO um clima de nervosismo. Na segunda-feira, o director, José Manuel Fernandes (J.M.F.), acusou o provedor de mentiroso e disse-lhe que não voltaria a responder a qualquer outra questão sua. No mesmo dia, J.M.F. admoestou por escrito o jornalista Tolentino de Nóbrega (T.N.), correspondente do PUBLICO no Funchal, pela resposta escrita dada ao provedor sobre a matéria da crónica e considerou uma “anormalidade” ter falado com ele ao telefone. Na sexta-feira, o provedor tomou conhecimento de que a sua correspondência electrónica, assim como a de jornalistas deste diário, fora vasculhada sem aviso prévio pelos responsáveis do PUBLICO (certamente com a ajuda de técnicos informáticos), tendo estes procedido à detecção de envios e reenvios de e-malls entre membros da equipa do jornal (e presume-se que também de e para o exterior). Num momento em que tanto se fala, justa ou injustamente, de asfixia democrática no país, conviria que essa asfixia não se traduzisse numa caça ás bruxas no PUBLICO, que sempre foi conhecido como um espaço de liberdade.

A onda de nervosismo, na verdade, acabou por extravasar para o próprio mundo político, depois de o Diário de Notícias ter publicado anteontem um e-mail de um jornalista do PÚBLICO para outro onde se revelava a identidade da presumível fonte de informação que teria dado origem às manchetes de 18 e 19 de Agosto, objecto de análise do provedor. A fuga de informação envolvia correspondência trocada entre membros da equipa do jornal a propósito da crónica do provedor. O provedor, porém, não denuncia fontes de informação confidenciais dos jornalistas - sendo, aliás, suposto ignorar quem elas são -, e acha muito estranho, inexplicável mesmo, que outros jornalistas o façam. Mas, como quem subscreve estas linhas não é provedor do DN, sim do PÚBLICO, nada mais se adianta aqui sobre a matéria, retomando-se a análise que ficou suspensa há oito dias.

Em causa estavam as noticias dando conta de que a Presidência da República (PR) estaria a ser alvo de vigilância e escutas por parte do Governo ou do P5. O único dado minimamente objectivo que a fonte de Belém, que transmitiu a informação ao PUBLI CO, adiantara para substanciar acusação tão grave no plano do funcionamento do nosso sistema democrático fora o comportamento “suspeito” de um adjunto do primeiro-ministro (PM) que fizera parte da comitiva oficial da visita de Cavaco Silva (C.S.) à Madeira, há ano e meio. As explicações eram grotescas - o adjunto sentara-se onde não devia e falara com jornalistas mas aceites como válidas pelos jornalistas do PUBLICO, que não citavam qualquer fonte nessa passagem da notícia (embora tivessem usado o condicional).

A investigação do provedor iniciou-se na sequência de uma participação do próprio adjunto de José Sócrates, Rui Paulo Figueiredo (R.P.F, queixando-se de não ter sido ouvido para a elaboração da notícia, apesar de T.N. ter recolhido cerca de seis meses antes a sua versão dos factos. O provedor apurou que na realidade TN., por solicitação de um dos autores da notícia, o editor Luciano Alvarez (L.A.), já compulsara no Funchal, logo após a visita de C.S., e enviara para a redacção informações que se convergiriam com aquilo que R.P.F. lhe viria a afirmar um ano depois (e que o correspondente entendeu não ter necessidade de comunicar a Lisboa, convencido de que o assunto morrera). Esses dados, contudo, não haviam sido utilizados na notícia (foi por tê-lo dito na crónica que o provedor recebeu de JMF o epíteto de mentiroso, não tendo recebido entretanto as explicações que logo lhe pediu).

O provedor inquirira J.M.F e L.A. sobre as razões dessa omissão mas não obtivera resposta.

Quanto ao facto de não se ter contactado o visado para a produção da noticia, corno preconiza oLivro de Estilo do PUBLICO (“Qualquer informação desfavorável a uma pessoa ou entidade obriga a que se oiça sempre ‘o outro lado’ em pé de igualdade e com franqueza e lealdade”), respondeu L.A. ao provedor: “Ao fim do dia da elaboração da notícia, eu próprio liguei para Presidência do Conselho de Ministros [PCM], para tentar uma reacção de R.P.K, mas ninguém atendeu. Cometi um erro, pois deveria ter, de facto, ligado para São Bento, pois sabia bem que era aí que R.P.F. habitualmente trabalhava, já que uma vez lhe tinha telefonado para São Bento para elaboração de outra notícia”.

Numa matéria desta consequência, em que se tornaria crucial ouvir o principal protagonista, o provedor regista a aparente escassa vontade de encontrar R.P.F., telefonando-se ao fim do dia (em que presumivelmente já não estaria a trabalhar) e para o local que o jornalista sabia ser errado. A atitude faz lembrar os métodos seguidos num antigo semanário dirigido por um dos actuais líderes políticos (que por ironia tinha por objectivo destruir politicamente C.S., então PM), mas não se coaduna com a seriedade e o rigor de que deve revestir-se uma boa investigação jornalística. Se ojomal já possuía a informação há ano e meio, porquê telefonar ao principal protagonista pouco antes do envio da edição para a tipografia? É um facto que R.P.F., segundo afirmou ao provedor, estava então de férias, mas isso não desculpa a insignificância do esforço feito para o localizar.

Também J.M.F. reconheceu ao provedor “o erro de tentar encontrar R.P.P; na PCM e não directamente na residência oficial do PM”, acrescentando, porém: “Tudo o mais seguiu todas as regras, e só lamentamos que os recados deixados a R.P.F. não se tenham traduzido numa resposta aos nossos jornalistas, que teria sido noticiada de imediato, antes no envio de uma queixa ao provedor - a resposta não impediria que se queixasse na mesma, mas impediu-nos de noticiar a sua posição e de lhe fazer mais perguntas”.

O provedor considera, porém, que nem “tudo o mais seguiu todas as regras”. As notícias do Público abalaram os meios políticos nacionais, e o próprio PM as comentou, considerando o seu conteúdo “disparates de Verão”. O assunto era, pois, suficientemente grave para o PUBLICO, como o jornal que lançou a história, confrontar a sua fonte em Belém com uma alternativa: ou produzia meios de prova mais concretos acerca da suposta vigilância de que a PR era vítima (que nunca surgiram) ou teria de se concluir que tudo não passava de um golpe de baixa política destinado a pôr São Bento em xeque. Não tendo havido qualquer remodelação entre os assessores do Presidente da República (PR) nem um desmentido de Belém, era, aliás, legitimo deduzir que o próprio C.S. dava cobertura ao que um dos seus colaboradores dissera ao PUBLICO. Mais significativo ainda, o PÚBLICO teria indícios de que essa fonte não actuava por iniciativa própria, mas sim a mando do próprio PR - e essa era uma hipótese que, pelo menos jornalisticamente, não poderia ser descartada. Afinal de contas, o jornal até podia ter um Watergate debaixo do nariz, mas não no sentido que os seus responsáveis calculavam.

No prosseguimento da cobertura do caso, o passo seguinte do PUBLICO deveria, logicamente, consistir em confrontar o próprio PR com as suas responsabilidades políticas na matéria. Tendo o provedor inquirido das razões dessa inacção, respondeu J.M.F: “O PUBLICO tratou de obter um comentário do próprio Presidente, mas isso só foi possível quando este, no dia 28 de Agosto], compareceu num evento em Querença previamente agendado, ao qual enviámos o nosso correspondente no Algarve. Refira-se que, quando percebemos que não conseguiríamos falar directamente com o PR para a sua residência de férias, verificámos a sua agenda para perceber quando ia aparecer em público, tendo notado que a notícia saíra da Casa Civil exactamente antes de um período relativamente longo em que o Presidente não tinha agenda pública”.

Em Querença, C.S, limitou-se, porém, a invocar “os problemas do país” e a apelar para “não tentarem desviar as atenções desses problemas”, tendo faltado a pergunta essencial: como pode o PR fazer declarações altruístas sobre a situação nacional e ao mesmo tempo caucionar (se não mesmo instigar) ataques abaixo da cintura lançados de Belém sobre São Bento? E, como qualquer jornalista político sabe, havia muitas maneiras de confrontar a PR com a questão e comunicar ao público a resposta (ou falta dela), não apenas andando atrás do inquilino de Belém. -

Do comportamento do PUBLICO, o provedor conclui que resultou uma atitude objectiva de protecção da PR, fonte das notícias, quanto aos efeitos políticos que as manchetes de 18 e 19 de Agosto acabaram por vira ter. E isto, independentemente da acumulação de graves erros jornalísticos praticados em todo este processo (entre eles, além dos já antes referidos, permitir que o guião da investigação do PUBLICO fosse ditado pela fonte da PR), leva ã questão mais preocupante, que não pode deixar de se colocar: haverá uma agenda política oculta na actuação deste jornal?

Noutras crónicas, o provedor suscitou já diversas observações sobre procedimentos de que resulta sempre o beneficio de determinada área política em detrimento de outra não importando quais são elas, pois o contrário seria igualmente preocupante. Julga o provedor que não é essa a matriz do PUBLICO, não corresponde ao seu estatuto editorial e não faz parte do contrato existente com os leitores. E, pois, sobre isso que a direcção deveria dar sinais claros e inequívocos. Não por palavras (pois a coisa mais fácil é pronunciar eloquentes declarações de isenção), mas sim por actos.