2007-05-29

POR ESTE RIO ACIMA

O Barco vai de saída

(FAUSTO )

O barco vai de saída
Adeus ó cais de Alfama
Se agora vou de partida
Levo-te comigo ó cana verde
Lembra-te de mim ó meu amor
Lembra-te de mim nesta aventura
P'ra lá da loucura
P'ra lá do Equador

Ah mas que ingrata ventura
Bem me posso queixar
da Pátria a pouca fartura
Cheia de mágoas ai quebra-mar
Com tantos perigos ai minha vida
Com tantos medos e sobressaltos
Que eu já vou aos saltos
Que eu vou de fugida

Sem contar essa história escondida
Por servir de criado essa senhora
Serviu-se ela também tão sedutora
Foi pecado
Foi pecado
E foi pecado sim senhor
Que vida boa era a de Lisboa

Gingão de roda batida
corsário sem cruzado
ao som do baile mandado
em terra de pimenta e maravilha
com sonhos de prata e fantasiac
om sonhos da cor do arco-íris
desvaira se os vires
desvairas magias

Já tenho a vela enfunada
marrano sem vergonha
judeu sem coisa nem fronha
vou de viagem ai que largada
só vejo cores ai que alegria
só vejo piratas e tesouros
são pratas, são ouros,s
ão noites, são dias

Vou no espantoso trono das águas
vou no tremendo assopro dos ventos
vou por cima dos meus pensamentos
arrepia
arrepia
e arrepia sim senhor
que vida boa era a de Lisboa

O mar das águas ardendo
o delírio do céua fúria do barlavento
arreia a vela e vai marujo ao leme
vira o barco e cai marujo ao mar
vira o barco na curva da morte
e olha a minha sorte
e olha o meu azar

e depois do barco virado
grandes urros e gritos
na salvação dos aflitos
estala, mata, agarra, ai quem me ajuda
reza, implora, escapa, ai que pagode
rezam tremem heróis e eunucos
são mouros são turcos
são mouros acode!

Aquilo é uma tempesta
de medonha
aquilo vai p'ra lá do que é eterno
aquilo era o retrato do inferno
vai ao fundo
vai ao fundo
e vai ao fundo sim senhor
que vida boa era a de Lisboa

2007-05-27

Mário Lino na apresentação do livro "AC .."

Mário Lino ao apresentar, com Mário de Carvalho, o livro Alvaro Cunhal e a dissidência da terceira via, em 2007-05-17, na Livraria Fnac/Chiado em Lisboa disse o seguinte:

O livro Álvaro Cunhal e a Dissidência da Terceira Via é o segundo livro escrito pelo Raimundo Narciso e, tal como o primeiro, aborda a organização, o funcionamento e a actividade do PCP em períodos em que o autor teve um papel muito relevante nesse partido.
Aquando da sessão de lançamento do seu primeiro livro – ARA: Acção Revolucionária Armada. A História Secreta do Braço Armado do PCP, realizada em Dezembro de 2000, o nosso saudoso camarada e amigo José Barros Moura, que fez a respectiva apresentação, referiu: «este livro não é um livro de teoria política, nem um ensaio histórico, nem um romance, nem um livro de memórias. É um pouco de tudo isto ao mesmo tempo e nessa característica reside muito do seu valor». Penso que a mesma apreciação se aplica perfeitamente a este segundo livro do Raimundo Narciso. Mas sendo o Raimundo um protagonista importante, ou mesmo um dos protagonistas centrais deste livro, considero apropriado que tanto o livro como o seu autor/protagonista sejam objecto desta minha contribuição para a apresentação do livro.

Comecemos, pois, pelo autor.

Conheci o Raimundo Narciso em finais de 1959, princípios de 1960, pouco tempo depois de, vindo de Moçambique onde vivia com os meus pais, ter chegado a Lisboa para frequentar o curso de engenharia no Instituto Superior Técnico. Tinha então alugado um quarto próximo do Técnico e tinha adoptado a pastelaria Pão de Açúcar como local de estudo e de convívio com outros estudantes. O Raimundo, já então aluno do Técnico e frequentador do Pão de Açúcar, foi um dos primeiros estudantes com quem estabeleci uma relação de amizade que hoje se continua a manter. Datam deste período outras boas amizades que também ainda hoje se mantêm, como o Rui Martins e o Ernâni Pinto Bastos, aqui presentes, o José Gameiro, já falecido, e tantos outros, também já então amigos do Raimundo.
Foi o período em que dei os primeiros passos no Movimento Associativo, através da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico, e em que comecei a partilhar com o Raimundo e os outros estudantes amigos, já envolvidos nesse Movimento, preocupações de natureza política e social que conduziram a uma crescente tomada de consciência sobre a situação do País e do Mundo, a imperiosidade da luta contra o fascismo, a ditadura, a opressão, o colonialismo, o racismo, a descriminação da mulher; mas também envolveram a frequência do Cineclube Universitário de Lisboa e o desenvolvimento do gosto pelo cinema e pelo teatro, a frequência do Clube Universitário de Jazz e dos concertos de música dita clássica. E depois o envolvimento na Crise Académica de 1962 e em tantas outras lutas, preocupações e anseios.

Ao longo desses primeiros anos de convivência com o Raimundo Narciso, não pude deixar de registar alguns dos traços do seu carácter que muito me impressionaram e que hoje continuam a marcar a sua forte personalidade: verticalidade, honradez, coragem, firmeza de princípios, humanidade, solidariedade, companheirismo, grande sensibilidade social, simplicidade, sentido de responsabilidade. Também bom conversador e de fino humor. Um carácter muito marcante e cativante.
Julgo que estes traços de carácter são, aliás, claramente perceptíveis ao longo dos seus dois livros.

Em 1964, inesperadamente para mim, e julgo que para muitos amigos, o Raimundo bruscamente desapareceu. Pouco tempo depois vim a saber que era há já alguns anos militante do PCP e que tinha mergulhado na clandestinidade para se dedicar, a tempo inteiro, à actividade política. Nesse ano aderi também ao PCP, mas como militante não clandestino.
Passaram-se vários anos sem me esquecer do Raimundo, mas também sem saber praticamente nada da sua actividade. Até que em 1970, confesso que sem que tal tivesse constituído uma grande surpresa, recebi um telefonema do Raimundo e combinamos um encontro, tudo feito com as devidas cautelas conspirativas. Vim então a saber que ele estava organizado na ARA-Acção Revolucionária Armada e, respondendo à sua proposta, passei a dar a minha colaboração à actividade desenvolvida pelo Raimundo.

Com o 25 de Abril, acabou-se a clandestinidade, e retomei o convívio frequente e de grande amizade com o Raimundo, partilhando igualmente a militância activa no PCP, embora em organizações diferentes.
Como é descrito neste livro, acabámos por ser expulsos do PCP em Novembro de 1991, juntamente com o José Barros Moura. E até hoje, já lá vão 47 anos, a nossa amizade mantém-se intacta, tendo passado a envolver também, ao longo destes anos, os nossos familiares mais chegados.
O Raimundo foi militante do PCP durante 32 anos, partido onde, entre outras responsabilidades, foi membro da direcção da ARA e membro do Comité Central. Esteve na clandestinidade durante 10 anos, com tudo o que tal situação significa de grande abnegação, de risco de prisão e tortura e de sacrifício pessoal. Mas sempre com a mesma simplicidade, mas também com a mesma firmeza e determinação.
Entretanto, evidenciou-se uma nova qualidade do Raimundo: a de escritor, já materializada pela autoria de dois excelentes livros, daqueles que se lêem de um só fôlego, e nos quais se manifestam muitos traços da sua personalidade: simplicidade, rigor, objectividade, humor fino, frescura; mas que também mostram que está bem com o seu passado, com a sua consciência, sem rancores e sem arrependimentos mesmo face a factos certamente muito dolorosos que teve que enfrentar.
Através destes livros ficamos a conhecer melhor a vida, a actividade, a forma de organização e de funcionamento do PCP, em particular no que se refere ao período e às actividades em que o Raimundo esteve mais envolvido e exerceu maiores responsabilidades. E ficamos a conhecer também melhor o seu autor.
Estamos portanto perante livros úteis, bem escritos e que dão prazer ler.
O livro que hoje aqui é lançado constitui, como é dito na sua contracapa, «o relato do debate político, em particular nas reuniões do comité central, que acompanhou a maior crise do PCP depois do 25 de Abril de 1974. É também um testemunho da perturbação e das reacções que ele provocou na direcção deste partido». O livro permite-nos, portanto, conhecer melhor a génese e a evolução das principais dissidências internas, depois do 25 de Abril, de um partido que teve, sem qualquer dúvida, um papel determinante na dura luta contra o fascismo e na implantação da democracia em Portugal.
Assim, o livro começa por nos descrever a evolução da situação do PCP entre 1980 e 1990, período em que se revela, cada vez melhor, a incapacidade do PCP em adequar o seu tradicional acervo conceptual a uma realidade em rápida mudança, agravada pela perestroika e glasnost de Gorbachev; descreve o papel e actuação de Álvaro Cunhal e de outros dirigentes partidários nessa evolução; mostra o processo de despertar de consciências ao longo desse período, passando pelas primeiras desafinações no seio do Comité Central até às tomadas de posição do Grupo dos 6 que envolvia Veiga de Oliveira, Vital Moreira, Vitor Louro, Silva Graça, Sousa Marques e Dulce Martins.
O livro passa depois a descrever o processo de separação das águas dentro do Comité Central, resultante da afirmação e explicitação das divergências, o processo Zita Seabra, o surgimento e desenvolvimento do movimento da terceira via tendo como motivação directa a marcação da data de realização e a definição da forma de organização e funcionamento do XII Congresso do PCP. O livro evidencia os objectivos centrais dos dissidentes, de reformar o partido por dentro, designadamente a partir do seu Comité Central, destacando o papel de Barros Moura, José Luís Judas, Pina Moura, António Graça, Vitor Neto, Fernando Castro e muitos outros, grande parte dos quais aqui presentes, nesse período.

O livro descreve também as consequências destes acontecimentos, traduzidas pela saída e abandono de inúmeros funcionários, quadros e militantes do partido, e a radicação da consciência da impossibilidade de reformar o PCP por dentro.
Refere-se ainda o percurso seguido por muitos destes ex-militantes e também por muitos ainda militantes que se vieram a envolver na criação, em 1990, e na actividade do INES-Instituto Nacional de Estudos Sociais que teve grande impacte mediático e que promoveu diversas conferências e debates durante o período de desagregação final da ex-URSS, agora já com o objectivo de provocar a reforma do PCP, não por dentro mas por fora.
E, depois, recorda-se a reunião do Hotel Roma, em Agosto de 1991, onde um vasto conjunto de membros do PCP procedeu à denúncia pública da posição, assumida pela direcção do seu partido, de justificação do golpe de Estado perpetrado contra Gorbachev, e de que veio a resultar, em Novembro desse ano, a expulsão do PCP de Raimundo Narciso, José Barros Moura e de mim próprio.
A partir daqui, o livro recorda o percurso seguido por muitos dos principais intervenientes nos acontecimentos anteriormente relatados, com principal destaque para a criação da Plataforma de Esquerda, a aproximação deste movimento ao Partido Socialista, designadamente o seu envolvimento nas eleições autárquicas e legislativas de 1995 e, posteriormente, a adesão de muitos dos membros da Plataforma ao PS bem como de alguns outros ao Bloco de Esquerda.

Merece ainda referência no livro o facto de vários militantes destacados do PCP, que tiveram em todos estes acontecimentos uma posição crítica das dissidências, muitas vezes feita em termos de grande agressividade, terem posteriormente vindo a assumir também posições dissidentes e a afastar-se ou a ser afastados do PCP.
O livro inclui ainda um importante conjunto de fotografias e de Anexos com documentos produzidos durante este período, relacionados com os acontecimentos relatados.
O livro permite assim, aos que menos conhecem esta fase da história do PCP, penetrar no universo deste partido pela mão de quem o conhecia muito bem. É uma visita guiada de um protagonista privilegiado dos acontecimentos relatados, um protagonista que, em consequência dos acontecimentos em que participou, viu cortada a sua relação de amizade e solidariedade com amigos de muitos anos, teve de romper com uma longa experiência de vida e dedicação, que foi submetido a situações aviltantes de vigilância, mas que consegue analisar todos estes acontecimentos com grande objectividade, sem rancor ou qualquer espírito de vingança ou perseguição, feita até com algum distanciamento.

De tudo isto o que fica? Foi a militância no PCP uma grande desilusão, um grande embuste?

Conheço um grande número de ex-membros do PCP que viveram estes acontecimentos, mas, salvo muito raras excepções, e tal como eu ou, estou convicto, o Raimundo Narciso, nenhum se mostra arrependido dos anos dedicados à militância neste Partido.
Reconhecemos, certamente, grandes defeitos ao PCP, mas também encontramos na nossa experiência partidária grandes virtudes.
Para todos foi, certamente, exaltante a defesa de ideais nobres de transformação da sociedade, de forma a torná-la mais justa, mais solidária, sem exploração do homem pelo homem. Para todos foi marcante o espírito de dedicação, de despojamento, de abnegação, de coragem, de sacrifício evidenciado pela generalidade do colectivo partidário. Para todos foi empolgante a luta por causas que consideram justas e por princípios que consideram fundamentais. Para todos foi determinante o sentimento de pertença a um colectivo mobilizador da concretização destes objectivos.
Mas todos reconhecem também a falência do caminho seguido pelo PCP para concretizar os seus objectivos mais nobres de vida e de luta. Todos estão cientes da desactualização e falência de conceitos como o centralismo democrático, a ditadura do proletariado ou o carácter de vanguarda do partido. Todos repudiam o autoritarismo e o despotismo iluminado exercido pela direcção do Partido como forma correcta de mobilização do colectivo partidário. Todos reconhecem a importância decisiva da liberdade individual e da democracia no partido e na sociedade, como a melhor forma do exercício da vontade colectiva e da responsabilidade social. Todos partilham a convicção de que a vida interna e as práticas do partido devem reflectir o que queremos para a sociedade.
Por isso, grande parte dos ex-membros do PCP mantêm intactas as suas convicções, o seu empenho na luta pelas causas que marcaram, desde a sua juventude, o seu pensamento e a sua acção, os mais nobres traços de carácter que desenvolveram e interiorizaram durante a sua passagem pelo PCP.
Afinal, para mim, e certamente para o Raimundo e para a maior parte de vós, os objectivos de luta mantêm-se os mesmos. E se continuamos a lutar é porque estamos vivos.

2007-05-26

Há 50 Anos, "Fuga Audaciosa do Aljube"

Há 50 anos, precisamente na noite de 25 para 26 de Maio de 1957, tinha lugar uma fuga da cadeia do Aljube de Lisboa protagonizada por Carlos Brito, Rolando Verdial e Américo de Sousa todos dirigentes do Partido Comunista Português sendo o último membro destacado do seu Comité Central.
Carlos Brito, na altura com 24 anos, é hoje o único sobrevivente dessa proeza espectacular mas ainda praticamente desconhecida sobretudo nos seus pormenores. Nas notas memorialistas que publicou nos anos noventa[2] conta-nos como conseguiram ludibriar as forças repressivas e evadir-se daquele presídio. Aqui ficam os principais excertos desse texto.

Os antecedentes

Nos princípios de 1957, a PIDE concentrou um grande número de presos políticos na cadeia do Aljube de Lisboa, o que não era habitual, visto ser a cadeia usada sobretudo para manter os presos no período mais intenso de interrogatórios e torturas.
A cadeia do Forte de Caxias, que funcionava como depósito de presos, tinha, entretanto, entrado em obras, mas a repressão e a prisão de oposicionistas à ditadura, especialmente de comunistas, não tinha parado. (...)A anormal população do Aljube (...) deu força aos presos para iniciarem um processo de luta por melhores condições prisionais, em relação ao regime de visitas, à alimentação, à higiene e outras.
A PIDE tentou conter este movimento com a sua táctica habitual de «isolar os cabecilhas» e assim transferiu das diferentes salas para o último andar da cadeia - uma enfermaria desactivada - os presos considerados mais perigosos. Éramos oito no início, depois ficámos dez, quase todos funcionários do PCP e três membros do Comité Central - Francisco Miguel, Blanqui Teixeira e Américo de Sousa - todos eles grandes obreiros da fuga, embora só o último tivesse fugido.

Os preparativos

Mal assentámos arraiais nas novas instalações, começámos a avaliar as possibilidades de fuga. Ao cabo de uma semana, não mais, de cogitações individuais e reflexões colectivas a resposta foi afirmativa: havia condições de fuga.
Pretendíamos explorar a circunstância de nos encontrarmos num andar recuado e de um pouco abaixo das janelas gradeadas correr um estreito algeroz, que concebido para a remoção das águas nos podia conduzir à liberdade.
Seria sempre um plano arrojado, pela altura, correspondente a um quinto andar, e o desamparo do percurso.
Colocava-se, entretanto, um grande número de interrogações: - Qual a consistência do algeroz? Onde ia dar? A que distância ficava do prédio vizinho? Como passar dos telhados para a rua?Também pressupunha grandes dificuldades: para aceder ao algeroz era preciso serrar as grades de uma das janelas. Mais interrogações: - Onde arranjar a serra? Como fazê-la entrar na cadeia?Ainda outras: - Qual o comportamento dos guardas durante a noite? E especialmente, como faziam a vigilância das grades?Só reunindo respostas para todos estas interrogações se podia pensar em elaborar um plano de fuga minimamente consistente.
Então o colectivo decidiu: toda a prioridade à fuga. E a partir daí a vida da sala ficou subordinada a este objectivo fundamental. (...)
Fez-se chegar ao Partido por meios ultra-clandestinos, naturalmente, o nossos propósitos e as nossas necessidades.[3] Tomaram-se variadas medidas para a recolha de informações.
Montámos a nossa própria vigilância à actividade nocturna da prisão. Durante toda a noite ficavam dois presos acordados, em turnos de duas horas, que registavam tudo o que viam e ouviam, especialmente o comportamento dos guardas de serviço à sala.
Para grande alegria nossa registámos que (...) as rondas nocturnas faziam uma observação muito superficial às grades, limitando-se a examiná-las com um foco de lanterna.
Um belo dia chegou-nos a resposta do Partido aprovando a fuga e prometendo os apoios pedidos. Pouco depois chegou-nos a serra dissimulada na prenda de anos para um de nós.[4]Podíamos iniciar a tarefa decisiva de serrar as grades. Quando passámos à prática (...) logo se verificou que esta fase iria arrastar-se por muito tempo.
O grande problema era aquele ruído inconfundível: um guincho penetrante que se ouvia longe e repercutia pelas paredes.
Só nos momentos em que se sabia que o guarda de serviço estava ocupado com outras preocupações é que se podia trabalhar com relativa segurança. As sessões de corte eram, por isso, bastante curtas. E era preciso serrar quatro grades relativamente grossas, em cruz, para se poder passar.
Em compensação, o disfarce da zona cortada, feito com miolo de pão pintado com aguarela da cor das grades, resultava em cheio. Os guardas miravam, miravam e parecia-lhes tudo bem.

O plano

Chegou-nos uma outra boa notícia: estava devoluto o último andar de um prédio vizinho, não o encostado à cadeia, mas o que se lhe segue naquela ala da Rua Augusto Rosa, exactamente o edifício onde viveu o actor e que está assinalado por uma lápide. Era uma informação da maior importância, pois podia resolver o problema de passar dos telhados para um andar que nos dava acesso à rua.
Nesta altura já tínhamos amadurecido o plano da fuga que compreendia as seguintes fases:
1ª - passar a grade para o algeroz;
2ª - caminhar no algeroz uns dez metros;
3ª - descer por corda, a pulso, uma altura de seis metros, entre o algeroz e o telhado do primeiro prédio;
4ª - atravessar o telhado do primeiro prédio e passar ao telhado do segundo;
5ª - tentar passar do telhado do segundo prédio para o andar devoluto e daqui procurar saída para a rua.
Era preciso fazer cordas para vencer os diferentes desníveis, os que conhecíamos e outros que podiam surgir. Os lençóis e os cobertores ofereceram bastante matéria prima.
Houve finalmente que escolher quem fugia. (...) a natureza da fuga exigia certas aptidões físicas. Levaram-se em consideração as características acrobáticas do plano (completamente desaconselhado para quem, por exemplo, sofresse de vertigens)[5], a situação jurídica (possibilidade de libertação, a mais ou menos, curto prazo) e a vontade de cada um.
Ponderadas todas estas razões foram seleccionados: o Américo Sousa[6] (...) eu próprio que era funcionário do Partido (...) e Rolando Verdial[7] (...)

[A fachada do Ajjube vendo-se ao cimo o andar recuado e o algeroz por onde se fez a fuga.
Em baixo no edifício à esquerda a porta mais alta por onde acederam à rua.]


A fuga

Antes de iniciarmos a partida, depois da ronda das duas da madrugada, ainda havia algumas tarefas de grande melindre, como o último puxão para arrancar a cruz cortada nas grades. Tinha sido totalmente serrada em três hastes, ficando a quarta com uma espessura residual suficiente para manter no sítio a peça toda.Feito isto, começámos. O primeiro a sair foi o Américo. Eu estava especialmente ansioso. Depois chegou a minha vez. Deitei-me de costas na mesa que tínhamos encostado à janela, para facilitar a saída. Fiquei então absolutamente calmo e totalmente concentrado em cada gesto. Passei os braços e depois a cabeça pelo espaço aberto nas grades. Trepei por estas até ficar totalmente de fora. Desci para o algeroz, reparei de relance na respeitável altura a que me encontrava e lá em baixo, ao fundo, no guarda da GNR. Caminhei de lado, inclinado para a frente e apoiado na parede, que era recoberta de telhas como nas águas-furtadas. Fui juntar-me ao Américo e ajudá-lo a amarrar a corda de lençóis numa janela que havia mais à frente, numa sala que nos servia de refeitório. Feita esta operação, continuámos, no mesmo jeito de caminhar, até à extremidade do algeroz que contornava a frontaria do edifício e acabava um meio metro depois, na parede lateral. Tinha uma sensação de completo desamparo, como se boiasse no ar sobre uma Lisboa nocturna, magnífica nas suas pistas iluminadas, até à mancha negra do rio. Lançámos a corda, que eu fixei no baixo parapeito do algeroz enquanto o meu companheiro da frente a descia a pulso. A corda era curta. A distância excedia os seis metros calculados. O Américo teve dificuldade em firmar os pés no telhado. Fez-se barulho. Entretanto, o terceiro da fuga chegou junto de mim. Agora fixava ele a corda, enquanto eu descia a pulso. Em baixo o Américo amparou-me, o que ambos fizemos a seguir ao Verdial, tornando a chegada ao telhado mais suave.Atravessámos o primeiro edifício, procurando a cumeeira do telhado onde as telhas ofereciam maior consistência. Passámos para o segundo edifício. O desnível ainda era grande mas não foi preciso corda. Avançámos até ao beiral. Estávamos sobre o andar devoluto. Sabíamos que era possível saltar para uma varanda e sabíamos que nesta alguém tinha deixado uma janela aberta para nos dar passagem. Tinha sido a camarada Deolinda Franco[8], que visitara a casa na véspera, como se a quisesse alugar, e que, além disso, desempenhou um importante papel em todo o apoio exterior à fuga. Saltámos para a varanda com alguma dificuldade e algum ruído que ecoou pelas muralhas marmóreas da Sé.A janela estava realmente aberta, entrámos na casa, fomos à porta da escada, puxámos os trincos, podíamos sair. Foi, então, o momento de calçarmos os sapatos e vestir os casacos que trazíamos amarrados à cintura e também de compor o cabelo. Depois descemos as escadas como quaisquer cidadãos regressados de uma paródia nocturna. Chegámos à porta da rua que estava a uma distância de cinquenta metros da sentinela da Guarda Republicana de serviço à entrada do Aljube. O guarda fazia um pequeno passeio, para lá e para cá da porta da prisão.
Aproveitámos o trajecto em que ia de costas para nos esgueirarmos até à esquina que era próxima, onde está hoje a Tasca da Sé. Depois caminhámos rápido. Seguimos uma rua onde devia estar um carro à nossa espera. Mas não estava. Foi o maior contratempo de todo o plano.[9]Para grandes males grandes remédios, fizemos um galope até ao Largo da Graça onde apanhámos um táxi. Em breve estávamos a salvo.[10]
Assim se faziam as vitórias da luta clandestina.


[1] - Assim intitulava o Avante! da primeira quinzena de Junho de 1957 a notícia da evasão.
[2] - Carlos Brito, Tempo de Subversão, páginas vividas da resistência, Editorial Avante, 1998, pp.45-55
[3] - As mensagens codificadas eram passadas em papel de mortalha para fumar bem dissimuladas na roupa suja, para o exterior e, de forma inversa, na roupa lavada.
[4] - Como prenda de aniversário, Américo de Sousa recebeu uma caixa com um par de sapatos novos. Nestes, disfarçada na sola (feita propositadamente) encontrava-se o material necessário.[5] - Era o caso de Blanqui Teixeira que assim ficou impossibilitado de fugir
[6] - Américo de Sousa viria a falecer em Março de 1993
[7] -Rolando Verdial chegou a ter tarefas de responsabilidade partidária, mas mais tarde veio a trair na polícia. Morreu antes de 25 de Abril de 1974
[8] - Deolinda Franco era casada na altura com Carlos Brito.
[9] - O automóvel falhou por uma troca de datas resultante da cifra em que foi indicada.
[10] - Refugiaram-se na casa de Arnaldo Aboim, na zona da Escola Politécnica onde ao fim de dois dias Carlos Brito e Américo de Sousa, já disfarçados, passaram para uma outra casa que era então um ponto de apoio da Direcção de Lisboa do PCP, à Calçada dos Barbadinhos.

2007-05-05

AUGUSTO GIL


BALADA DA NEVE


Batem leve, levemente,
Como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
– Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos...
a neve deixa inda vê los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê los!...

Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
– e cai no meu coração.

(In DOTeCOMe - Poesia)