2005-10-28

Bastas razões de vergonha

Miguel Sousa Tavares no Público de 2005-10-28
1. "Democraticamente" absolvida nas urnas, como era de esperar, a D.ª Fátima Felgueiras está agora em vias de se ver alijada dos seus problemas judiciais, como também era de esperar. A senhora merece que se lhe tire o chapéu: fez uma sábia gestão dos seus trunfos e dos seus timings e, entre a demissão cívica do seu povo e a demissão institucional da justiça, descobriu o caminho para a impunidade. "Dei uma lição ao país!", exclamou ela, triunfante, na noite de 9 de Outubro. E deu mesmo. A lição foi esta: o único crime que não se perdoa é o da falta de esperteza.
O Tribunal da Relação de Guimarães liquidou, de facto, o processo de Fátima Felgueiras, mandando refazer o essencial da instrução e, com isso, remetendo o julgamento para as calendas do ano vindouro. Os desembargadores de Guimarães entenderam que o Ministério Público e o juiz de instrução não fizeram senão asneiras na construção da acusação: as escutas telefónicas são ilegais porque o juiz não as foi validando dentro de "um prazo razoável", e os principais testemunhos acusatórios são nulos porque os depoentes foram ouvidos como testemunhas e não como arguidos, como o deveriam ter sido (e embora, posteriormente, ouvidos como arguidos, tenham confirmado o que haviam dito antes). Pouco importa, todavia, o conteúdo de umas e outras provas: para a justiça portuguesa, a fórmula é tudo, a substância é um estorvo.
Longe de mim - valha-me Deus! - contestar a lógica irrebatível dos argumentos dos senhores desembargadores de Guimarães. Limito-me a observar que uma magistratura passou aqui um atestado de incompetência à outra e que tudo se encaminha, uma vez mais, para que os formalismos processuais conduzam à denegação de justiça. Mas, juntas e unidas nas suas lamentações, ambas as magistraturas estão em greve contra o "desprestígio" que o Governo lança sobre elas.
Parece que a redução das férias de Verão dos magistrados de dois para um mês e a supressão do regime especial de saúde de que beneficiavam, em troca do regime geral, afectam gravemente as "condições de independência" da classe e indiciam mesmo uma tentativa de controlo político sobre a justiça. Ouvido pela TSF, o presidente do Sindicato dos Juízes, Baptista Coelho, esclareceu que, enquanto órgão de soberania, os magistrados se batem pela sua independência; e, enquanto "carreira profissional", estão em greve por condições privilegiadas de dependência do Estado. Fiquei esclarecido - como, aliás, fico sempre que o dr. Baptista Coelho e o dr. Cluny, do Sindicato do Ministério Público, expõem as suas razões. Talvez alguém com mais senso lhes devesse explicar que o país já não é assim tão estúpido quanto eles imaginam.
2. Preparada "durante um ano", ensaiada ao pormenor, de véspera e por mais de 60 pessoas envolvidas, a "mega-operação" de "flagra" sobre a banca cobriu-se de ridículo à nascença. Numa operação capaz de abalar todo o sistema bancário, onde tudo deveria ser tratado com pinças e total discrição, logo a abrir, as autoridades apresentaram-se no primeiro banco sem um mandado de busca em condições; depois, mandaram-no vir por fax para o próprio banco a rebuscar, esquecendo-se de apagar do cabeçalho o nome dos restantes alvos a surpreender e das suspeitas que sobre eles recaíam. Como é óbvio, meia hora depois, Lisboa inteira já sabia o que estava em curso, e, perante tão chocante incompetência dos seus serviços, o senhor procurador-geral da República não encontrou melhor maneira de disfarçar a vergonha do que mandar instaurar um processo por violação do segredo de justiça... aos jornalistas!
Digamo-lo tranquilamente: num país a sério, o senhor procurador-geral e a senhora procuradora adjunta que dirigiu a operação teriam apresentado a sua demissão ou estariam demitidos no dia seguinte. Aqui, estão em greve, pelo seu "prestígio" e, sobretudo, para que ninguém ouse beliscar esta santa impunidade funcional de que gozam e a que gostam de chamar "independência".
3. Nomeados pelo governo PSD, alguns administradores da CP e outros da Refer descobriram a fórmula genial de se porem ao abrigo das flutuações políticas e garantirem um emprego de futuro, muito para além dos três anos normais dos mandatos dos gestores públicos: os da CP foram nomeados para o quadro da Refer, com o cargo de directores e o lugar reservado até saírem da CP, e os da Refer fizeram o mesmo na CP.
Descoberta a esperteza, chamados a explicarem-se e instaurados os respectivos processos de averiguações, os senhores administradores mantiveram a bola baixa, a ver se a coisa passava. Mas, concluídas as averiguações e na iminência de um despedimento com mais do que justa causa, os da Refer convocaram uma conferência de imprensa para despejar o saco: o que fizeram tratava-se de "um processo normal", que, aliás, tinham tido o cuidado de validar previamente junto do Partido Socialista, então oposição, e da senhora que depois viria a ser a secretária de Estado da tutela, no governo PS. Em seu entender, estaríamos assim perante um "saneamento pessoal e político", inclusive confirmado por suspeitíssimas informações circulando entre a Refer, o governo PS e as suas autarquias - de que só agora lhes ocorrera suspeitar.À noite, e depois de grandes cerimónias, o ministro despediu-os de vez. Mas eu aposto, infelizmente, que, por irregularidades processuais ou qualquer outro pretexto espúrio, e devidamente escudados em "pareceres" dos mestres de Direito sempre disponíveis, as vítimas hão-de ver a razão ser-lhes reconhecida por algum tribunal e tudo isto há-de acabar na conta dos contribuintes. Salve-se, ao menos, o desabafo: que país sem vergonha!
4. ...

2005-10-18

Estará o poder político refém do poder judicial?

Artigo de António Marinho e Pinto (advogado)
Público, 2005-10-18

"E se algumas destacadas figuras políticas tivessem sido demandadas criminalmente só para tornar o poder político refém dessa circunstância? A instauração desses processos não seria a melhor forma de a corporação judicial se preparar para o combate que se avizinhava, contra as inevitáveis reformas na justiça portuguesa? Poderá o poder político levar a cabo essas reformas, quando alguns políticos estão ou estiveram envolvidos em processos judiciais?
Num recente debate na RTP sobre a justiça em Portugal (Prós e Contras do dia 3 de Outubro), o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) afirmou que as medidas decretadas pela actual maioria política sobre a justiça eram uma retaliação contra o poder judicial por este ter demandado criminalmente algumas destacadas figuras do Partido Socialista.
O autor das insinuações ainda tentou recuar, perante a indignação que elas suscitaram no ministro da Justiça (presente no debate) e a estupefacção de muitos dos presentes, incluindo a própria moderadora do programa. Pretendeu, então, fazer crer que as insinuações não eram dele, mas sim da maioria dos magistrados, que ele, enquanto sindicalista, ali representava - ou seja, ele não era o autor daquela infame suspeita, mas sim muitos ou a maioria dos procuradores inscritos no SMMP. E ele só apresentara tal suspeita enquanto presidente do sindicato e não a título pessoal. Chegou a este ponto a conduta pública de alguns magistrados.
Analisemos o caso mais em pormenor.
1. Não é novo este tipo de atitudes. Atirar uma pedra e em seguida desculpar-se alegando que foram outros que mandaram ou de que foi em nome de outros é uma prática muito antiga e já bem caracterizada.
2. A experiência da vida e a história da humanidade já demonstraram suficientemente que, muitas vezes, as piores infâmias são sempre feitas sob a forma de suspeitas, sobretudo quando ampliadas por terceiros.
O próprio Código Penal previne, no seu art. 180º, nº 1, essas situações, estatuindo que comete o crime de difamação não só quem imputar a outra pessoa, "mesmo sob a forma de suspeita", um facto ofensivo ou formular sobre essa pessoa um juízo igualmente ofensivo, mas também quem "reproduzir uma tal imputação ou juízo". Não é crível que o magistrado em causa ignorasse essa disposição legal. Também não é crível que ignorasse o carácter altamente ofensivo das suas afirmações para a honra pessoal e funcional do ministro da Justiça e do primeiro-ministro, enquanto principais promotores das tais medidas "retaliadoras".
3. Não foi a primeira vez que o presidente do SMMP trouxe essa questão a público. Já antes, nas páginas deste mesmo jornal (ver edição de 13 de Julho de 2005, pag. 9), o mesmo magistrado fizera exactamente as mesmas insinuações. Num artigo intitulado Magistratura: Itália e Portugal, o magistrado insurgia-se contra a chamada "Lei Castelli", que o Governo de Silvio Berlusconi pretendia fazer publicar em Itália. Depois de concitar várias opiniões para evidenciar os malefícios da referida lei, o articulista sugeria que tal iniciativa mais não era do que um puro acto de vingança contra as magistraturas italianas por causa dos processos judiciais em que tem estado envolvido o primeiro-ministro Silvio Berlusconi. E o magistrado/articulista concluía: "Em Portugal, nada de semelhante se poderia passar (...), porque entre nós governa um partido de esquerda, que, por o ser, nunca pensaria em vingar-se das magistraturas em geral, por causa de concretos processos que tivessem afligido militantes seus [sic]."
A comparação não podia ser mais grossa. Só faltou mesmo dizer os nomes dos militantes socialistas e os processos em causa. Mas também não era necessário, porque uns e outros continuam periódica e sintomaticamente a ser lembrados em alguns órgãos de comunicação social.
4. Pior do que as insinuações públicas do presidente do SMMP (e a atabalhoada desresponsabilização que tentou fazer de si próprio no referido programa da RTP) só o silêncio dos magistrados. Tal só pode significar concordância com o dirigente sindical, ou seja, que os magistrados do MP inscritos no respectivo sindicato concordam que as medidas legislativas sobre a justiça constituem uma retaliação do Governo pelo facto de o poder judicial ter perseguido criminalmente alguns dirigentes socialistas. O silêncio dos magistrados coonesta, assim, a conduta do seu dirigente sindical. É bom saber o que pensam os magistrados para melhor compreender como agem.
5. A presteza com que a insinuação foi arremessada publicamente, mal surgiram as primeiras medidas da actual maioria política, levanta ela própria uma outra suspeita. E se algumas destacadas figuras políticas portuguesas tivessem sido demandadas criminalmente unicamente para tornar o poder político refém dessa circunstância? Ou seja, a instauração de processos judiciais contra importantes dirigentes partidários não seria a melhor forma de a corporação judicial se preparar para o combate que já se avizinhava, contra as inevitáveis reformas na justiça portuguesa? Poderá o poder político levar a cabo verdadeiras reformas na justiça, quando alguns políticos estão ou estiveram envolvidos em processos judiciais? E se nos recordarmos de como surgiram alguns desses processos, da forma como os arguidos foram tratados, da leviandade com que cidadãos foram transformados em suspeitos e logo incriminados publicamente (até cartas anónimas tentando envolver o Presidente da República, entre outras figuras do Estado, foram acolhidas no processo); se nos recordarmos das indiscriminadas escutas telefónicas, sobretudo a membros de órgãos de soberania, da negação dos direitos mais elementares aos arguidos e do verdadeiro linchamento de carácter a que alguns foram sujeitos; se nos lembrarmos do comportamento de alguns magistrados, não só dos que nunca deram a cara, mas sobretudo daqueles cujas conversas com jornalistas ficaram gravadas em memoráveis documentos históricos; se nos lembrarmos de tudo isso, então teremos muitas razões para crer (e temer) que a segunda hipótese é bem mais credível do que a que foi arremessada pelo o presidente do SMMP."

2005-09-30

Jornalistas - sistema de saúde

TABELA DE REEMBOLSO DE DESPESAS DE ACÇÃO MÉDICO-SOCIAL

TIPO DE DESPESA COMPARTICIPAÇÃO

CONSULTAS MÉDICAS TABELA - ADSE
INTERNAMENTO HOSPITALAR ( MÁXIMA POR DIÁRIA ) - ADSE
DIÁRIAS NAS TERMAS - 1/40 SMN
INTERVENÇÕES CIRÚRGICAS a) - 100%
MÉDICO AJUDANTE, ANESTESIA E INSTRUMENTISTA - 100%
PISO DA SALA DE OPERAÇÕES E PARTOS - 100%
ECG, RX, TOMOGRAFIAS, ANÁLISES E EXAMES DIVERSOS b) 100%
TRANSFUSÕES DE SANGUE E OXIGÉNIO - 100%
TRATAMENTOS TERMAIS c) - 100%
TRANSPORTES EM AMBULÂNCIAS PARA HOSPITAIS - 100%
TRATAMENTOS MÉDICOS E ASSISTÊNCIA AO PARTO - 80%
SERVIÇOS DE ENFERMAGEM d) - 80%
TRATAMENTOS DENTÁRIOS e) - 80%
PRÓTESES DENTÁRIAS TABELA - ADSE
PRÓTESES AUDITIVAS, ORTOPÉDICAS E APARELHOS DIVERSOS b) - 75%
REPARAÇÃO DE APARELHOS - 75%
MEDICAMENTOS f) E UTILIZAÇÃO DE MATERIAL - 75%
AGENTES FÍSICOS ( EX: ULTRA SONS ) b) - 75%
LENTES, ARMAÇÕES E LENTES DE CONTACTO g) - 75%
TRATAMENTOS ESPECIAIS - 75%
ECODOPPLER - 80%
EXAMES NEUROLÓGICOS - 80%
TRATAMENTO DE QUIMIOTERAPIA - 100%
DISPOSITIVOS INTRA-UTERINOS - 100%
TIRAS E APARELHOS PARA DIABÉTICOS 100%
LITOTRÍCIA - 80%
RESSONÂNCIA MAGNÉTICA TABELA - ADSE

OBSERVAÇÕES:
a) O recibo deve vir acompanhado de um relatório médico a indicar a intervenção efectuada.
b) Os recibos devem vir acompanhados das respectivas prescrições médicas.
c) É necessária declaração médica justificando doença adequada às termas.
d) É necessária a discriminação da quantidade dos actos praticados.
e) Os recibos devem indicar os tratamentos efectuados bem como os seus valores unitários.
f) É necessário o envio da receita médica, c/ os códigos de barras dos medicamentos,
incluindo a parte Estado-Utente.
g) O recibo deve ser acompanhado da receita médica com a graduação das lentes.
no caso de lentes de contacto deve vir ainda um relatório médico a indicar a necessidade .

2005-09-18

O CONTRATO

Opinião do "Capitão do 25 de Abril" actualmente coronel na reserva, David Martelo relativamente às razões subjacentes às movimentações das associações militares:

"No passado dia 22 de Junho, o sr. Ministro da Defesa Nacional (MDN), a propósito das medidas de austeridade que o novo governo se preparava para adoptar, declarou o seguinte:
«As Forças Armadas (FA) "não podem ficar à margem do esforço de ajustamento" que o país terá de fazer para resolver os "problemas complicados" do défice das contas públicas.»
Deve admitir-se que, no contexto em que foram produzidas, estas declarações podem considerar-se sensatas, justas e passíveis de grande aceitação. Todavia, pelas mesmas razões, numa época de maior abundância, também às FA e aos militares caberia o usufruto das melhorias operacionais e sociais concedidas à generalidade dos cidadãos. E é aqui, precisamente, que o MDN perde a razão toda. Se esta argumentação fosse séria, os militares teriam sido beneficiados durante a última "época de vacas gordas", quando a despesa pública aumentou em praticamente todos os sectores do Estado. Sabemos, melhor do que ninguém – e as estatísticas não deixam de o evidenciar –, que foi justamente na década de 90 que as restrições orçamentais se abateram, impiedosamente, sobre as Forças Armadas. Basta citar um exemplo:

em 1979, um coronel/capitão-de-mar-e-guerra tinha um vencimento-base de 22.700$00, exactamente o mesmo de um professor catedrático; em 1998, o militar passou para 422.000$00 e o professor para 682.100$00, estabelecendo uma diferença de mais de 61%.

Porquê? perguntar-se-á. Muito simplesmente porque os militares, não só não estavam habituados a reivindicar, como não tinham como o fazer, sem sair da legalidade.
Abandonados por uma hierarquia que, salvo honrosas excepções, nunca deixou de reconhecer que estava ali por nomeação da entidade com quem teria de negociar, a ocorrência da reforma do ministro Fernando Nogueira, em 1992, acabou por, inevitavelmente, lançar muitos militares para a luta pela legalização do associativismo militar – à semelhança, de resto, de grande parte dos seus camaradas europeus. A classe política, geralmente pouco conhecedora da realidade militar, apostou na subordinação e na disciplina dos militares como segurança para o desprezo absoluto que, desde então vem votando às FA. Parecia-lhe que tinha descoberto a fórmula ideal para ter militares baratos e mansos.
A reforma do ministro Fernando Nogueira implicou a perda de diversos "direitos adquiridos", incluindo, entre outros, o direito que os militares do QP tinham, até então, de, após a passagem à reserva, permanecerem nessa situação até perfazerem 70 anos de idade. Pela aplicação da nova lei, e, decorrido um período de transição, passou a ser de cinco anos o tempo máximo de permanência na reserva. Após esses cinco anos, o militar passou a ser reformado, compulsivamente, independentemente da idade. Esta alteração, iria provocar sérias perdas nas pensões de reforma, situação que o poder político pareceu considerar, prometendo criar um complemento de pensão para esses casos.
Volvidos oito anos – repito, oito anos –, a Assembleia da República aprovou, por unanimidade, a Lei 25/2000, de 23 de Agosto, que reconhecia o direito dos militares abrangidos ao devido complemento. Parecia o fim de um pesadelo, mas não foi, porque a lei logo foi parar a uma gaveta. Perante mais esta prova de desconsideração para com os militares, em 27 de Maio de 2004, as associações de militares entregaram na Assembleia da República (AR) uma petição, com 5.371 assinaturas de militares das diversas categorias, na sua esmagadora maioria na situação de activo, em que, entre outras coisas, se voltava a pedir o CUMPRIMENTO DA LEI 25/2000. Sim, é verdade, as associações de militares, não podendo recorrer à greve para fazer valer os seus direitos, entregaram, no órgão de soberania que produz leis, uma petição em que, muito simplesmente, punham a nu a ilegalidade da acção do governo. Estamos em 2005, passaram-se treze anos sobre a reforma do ministro Nogueira e a lei continua por aplicar.
Face a esta gritante ilegalidade, quando os militares, muito disciplinadamente, se atrevem a recorrer aos poucos meios que lhes restam para fazer valer os seus desprezados direitos, ainda tem o poder político a ousadia de os censurar e fazer apelos ao cumprimento das leis que é o primeiro a violar. Sim, porque o que está em jogo é muito simples: entre os militares e o poder político estabelece-se um CONTRATO, designado por CONDIÇÃO MILITAR, segundo o qual, para viabilizar o cumprimento de missões vitais para a Nação e de elevado risco pessoal para quem as desempenha, são retirados aos primeiros uma série de direitos – entre os quais os direitos dos trabalhadores. O poder político, em contrapartida, retribui essa perda com a concessão de «especiais direitos, compensações e regalias, designadamente nos campos da Segurança Social, assistência, remunerações, cobertura de riscos, carreiras e formação». É muito evidente, por conseguinte, que o CONTRATO da CONDIÇÃO MILITAR se encontra em vias de ruptura, por exclusiva responsabilidade dos sucessivos governos. Quando uma das partes de um contrato deixa de cumprir, não pode esperar da outra parte uma eterna complacência.
Há em todo este comportamento do poder político um pecado maior: sendo as FA um dos pilares do Estado, tudo o que se faça para destruir o moral dos seus servidores é autêntico crime de lesa-pátria. Dizia Napoleão Bonaparte que «na guerra, o moral está para o físico como três para um», querendo, com essas palavras, dar o relevo devido à componente anímica do potencial de combate. A forma arrogante, insensível e incompetente como o poder político vem tratando os militares é, por conseguinte, uma forma de corrupção do seu moral. Com uma agravante de tomo: falhadas todas as oportunidades de parecerem estar a tratar com os militares, usando de boa fé, retiraram aos chefes militares de todas as patentes qualquer tipo de argumentação capaz de conter a revolta que vai crescendo. Hoje em dia, o único argumento que um comandante pode utilizar para serenar os seus subordinados é a disciplina, mas SEM ESPERANÇA.
David Martelo

2005-08-29

Frota da TAP, um mega-negócio

J.A Sousa Monteiro*


Está para breve a decisão sobre quem será o fabricante vencedor na corrida à enovação da frota da TAP: Airbus ou Boeing? No estudo e profunda análise de tão importante decisão, o Governo português devia fazer-se representar, através de uma comissão de acompanhamento


1.O negócio em preparação envolve valores várias vezes superiores aos do tão falado Projecto do Novo Aeroporto. É verdade. Anda toda a gente distraída e entretida a "ralhar" com o TGV e com a Ota. E de tal forma obstinada que nem tem tempo para pensar que há mais mundo... Mas, para o Estado português, as responsabilidades assumidas com a sua participada a 100%, a TAP, no negócio da renovação da frota - uma dezena de grandes e caríssimos aviões de grande porte para longo-curso - poderá constituir um "pé-de-chumbo" de todo o tamanho (aquisição de onze aviões no total, ao que parece)! Segundo a administração da empresa, está para breve a decisão sobre quem será o fabricante vencedor nesta corrida: Airbus ou Boeing? É mais um passo no destino que o Senhor Engenheiro Fernando Pinto e a sua equipa estão a traçar para a TAP, somando-se aos anteriores passos da adesão à Star Alliance, à mudança da imagem pública da companhia, do fair-playcom os sindicatos, do lançamento em força da actividade do tráfego para o Brasil (até me faz lembrar a TAP antes do 25 de Abril, em que era África, África, e que depois falhou, tornando-se essa grande dependência numa enorme dor de cabeça), e, agora, o prometido e mediático negócio Varig/TAP.

2. Escrevo estas linhas para pedir ao Governo português que se faça representar, através de uma comissão de acompanhamento, no estudo e profunda análise de tão importante decisão, uma vez ser o representante do accionista único da empresa, o Estado. Mas entendo-a como necessária, devendo tomar parte activa em todo o processo, não deixando apenas, e só, ao gestor esse estudo e a tão grave quão problemática decisão. Verificar profundamente os estudos subjacentes à decisão. A Parpública não ficaria assim mais tranquila? E está tranquila? O processo de renovação da frota de uma companhia de transporte aéreo desenrola-se em função das suas necessidades efectivas, que as suas administrações vão aferindo, culminando com as eventuais aquisições, que sempre envolvem montantes astronómicos! Ora, que mal tem que tão avultada compra seja acompanhada na sua génese pelo dono da empresa e responsável último pelo seu pagamento? Obviamente que só há vantagens nisso para todas as partes bem intencionadas. Até para informar os contribuintes, se for necessário, pois eles serão na realidade, em último recurso, os pagadores. Não se deseja a discussão na praça pública das cláusulas dos contratos a assinar. Mas a comissão de acompanhamento faria muito bem em saber de tudo, começando pela análise dos estudos da viabilidade económica que sustentam a decisão, e por aí adiante.

3. Quero recordar um outro mega-negócio de renovação da frota da TAP que teve o seu epílogo em finais de 1996 (Ferreira Lima presidente da TAP e António Guterres 1º. ministro) após um longo e agitado processo, que remontou à anterior administração da transportadora aérea nacional presidida pelo engenheiro Santos Martins, e que deu origem a acusações de alegada corrupção envolvendo o então presidente, que entretanto foi substituído por António Guterres com a mudança política observada no contexto do País, sucedendo-lhe Ferreira Lima. Foi tudo muito desagradável e desprestigiante, já que a TAP nunca antes do 25 de Abril havia sido sequer tocada pela dúvida da existência de tais fenómenos (e a culpa não é da data, claro). Mas tudo lá passou, afinal. Até hoje. Sem se saber no que as coisas ficaram, como foi o negócio, os seus intermediários, se os houve, quem beneficiou e se a empresa foi prejudicada por acção ou por falta de acção.

4. E também recordo que já antes, em 1983, a Polícia Judiciária teve de intervir fortemente e os juízos de Instrução Criminal foram assoberbados com processos, tudo por causa das suspeitas da Judiciária sobre a atribuição de "luvas" aos negociadores envolvidos no mega-negócio da aquisição dos cinco Lockeeds para a TAP. Havia uma mensagem de telex enviada da Suíça, detectada pela Judiciária após buscas em Lisboa, que mencionavam a atribuição dessas "luvas", sendo que o telex também mencionava um membro do Governo da altura, que a comunicação social, que me lembre, nunca chegou a divulgar. As comissões atingiriam o valor total de 7% do valor do contrato (uma fortuna). Entrou-se na habitual fase dos desmentidos, das reacções conforme os interesses, etc, etc. A norte-americana Lockeed garantiu que não havia efectuado qualquer pagamento, etc. O habitual. Mas as coisas também ficaram para sempre em banho-maria ou em congelador.

5. Atendendo a que os actuais 10 aviões da TAP não são nenhuns "chaços", antes pelo contrário (os 4 Airbus-340 até são "super-poupados" em termos de combustível, de grande conforto e com óptimas características para exploração comercial, têm apenas 10 anos e são credores de óptima reputação técnica), eis algumas análises pertinentes que poderiam caber à proposta (e por mim desejada) comissão de acompanhamento: Quais as reais economias globais trazidas pela renovação da frota nas áreas da Manutenção e Engenharia (spares, rotáveis, equipamentos, formação, aumento da produtividade do pessoal, etc); e das Operações de Voo (formação, produtividade do pessoal navegante, etc); e do Pessoal de Terra (equipamentos, incremento da produtividade)? E os custos operacionais unitários da nova frota, fixos e variáveis, em que medida serão reduzidos? Atendendo ao tipo de tráfego da TAP, em que medida é que a nova frota contribuirá para melhorar o yield global da empresa? E vale a pena optar pela titularidade desta frota (aparentemente sim, por várias razões, sendo uma delas a valorização da própria empresa)? E a transparência e razoabilidade das taxa de juro negociadas, se tal aplicável? Haverá intermediários, "consultores", "lobbistas", etc. entre a Airbus ou Boeing e a TAP? Não os havendo, as margens do mega-negócio poderão ser potenciadas, desonerando custos. E tudo isto somado justificará a opção drástica de se proceder à sua renovação nesta amplitude (Portugal é dos europeus mais pobres, mas a TAP tem como ponto de honra possuir sempre a frota mais rica!)? Ora, responder a tudo isto é obra!

6. Pelo passado retira-se que tudo o que se relaciona com aquisição de aviões tem dado azo a polémicas por vezes pouco edificantes, pelo que é necessário que tudo seja límpido e claro. É o culminar do velho adágio: à mulher de César não basta ser séria, também tem de parecê-lo...

7. Por último, não me esqueço de pedir que os negociadores do nosso lado exijam aos futuros fornecedores as devidas contrapartidas para este mega-negócio, as quais poderão trazer grandes benefícios, por exemplo, à criação, definição e desenvolvimento da Indústria Aeronáutica e Aeroespacial portuguesas, entre muitos outros.

*Comandante sénior reformado da TAP, professor na Universidade Lusófona

2005-08-25

Como vão os palestinianos responder à retirada unilateral israelita?

Amos Oz - Escritor israelita
Público 2005-08-24

Os colonos judeus na Faixa de Gaza e na Cisjordânia têm um sonho para o futuro de Israel. Também eu tenho um sonho para o futuro de Israel. Mas o doce sonho deles é o meu pesadelo, enquanto os meus sonhos são, para eles, veneno.
O sonho dos colonos é criar um "Grande Israel" com colonatos judaicos colados uns aos outros. Nesses colonatos só os judeus podem viver e os palestinianos só lá podem trabalhar, empregos modestos com salários baixos. Num Estado assim, a democracia teria de se submeter aos rabis. O Knesset [Parlamento], o Governo, o Supremo Tribunal só seriam autorizados a existir se os rabis aprovassem as suas decisões. Os colonos acreditam que, logo que o Grande Israel se torne numa entidade religiosa e numa "Nação Sagrada", o Messias virá e a total redenção do povo judeu se materializará.
Nesta fantasia dos colonos não há lugar para o povo palestiniano excepto como humildes servos e trabalhadores agradecidos. Mais, na fantasia dos colonos não há lugar para mim, não há lugar para um Israel secular, moderno. Eu e os meus amigos estamos "fora" a não ser que nos arrependamos. Pelo menos não devemos ser obstáculo à construção de mais colonatos nem à expansão dos que já existem. Se nós, israelitas laicos, apagarmos a nossa própria existência, os colonos farão cair sobre nós o seu amor fraterno. Mas se insistirmos que temos uma visão diferente para Israel, imediatamente nos tornaremos traidores, amigos dos árabes, ou até nazis.
No entanto, também nós temos um sonho para Israel, totalmente diferente da fantasia religiosa dos colonos. Queremos viver em paz e em liberdade, mas não sob o poder dos rabis, nem sequer sob o poder do Messias, mas sujeitos a um governo eleito por nós.Temos um sonho de nos libertarmos da longa ocupação dos territórios palestinianos. Israel e Palestina são, há quase 40 anos, como um carcereiro e um prisioneiro, algemados um ao outro. Depois de tantos anos já quase não há diferença - o carcereiro não é livre e o prisioneiro não é livre. Israel só será uma nação livre quando acabarem a ocupação e os colonatos e a Palestina se tornar um país vizinho independente.
Há 30 anos que os colonos controlam Israel através de vários governos. Eles impuseram a sua visão e esmagaram os nossos sonhos. Eles eram os senhores do país.
O primeiro-ministro Ariel Sharon anda por estes dias a tentar lançar uma espécie de putsch contra o poder dos colonos. Esta é uma tentativa de restaurar a autoridade do governo eleito. Se isto resultar, o sonho dos colonos poderá ser bloqueado e a visão dos israelitas seculares poderá reviver.A luta em Gaza não é, no essencial, uma luta entre o exército e os colonos, nem sequer entre "falcões" e "pombas". Não. É uma luta entre Igreja e Estado (para ser mais fiel, entre Sinagoga e Estado). Isto é algo por que passaram muitas nações: quais devem ser a posição e a influência da religião e dos clérigos na governação de um país? Alguns países já resolveram isto há séculos. Outras nações andam a tentar resolver isto há tempos infindáveis. O mundo muçulmano, à excepção da Turquia, nem sequer começou.Nestes últimos dias, em Gaza, testemunhámos o que pode, em retrospectiva, ser a primeira batalha entre a Sinagoga e o Estado em Israel, o primeiro confronto sobre o carácter judaico do único Estado judaico. Somos nós, acima de tudo, uma religião, ou somos nós, acima de tudo, uma nação? Neste primeiro round parece que o Israel pragmático, racional, secular prevaleceu dolorosamente sobre o Israel fanático. Mas não esqueçamos de que este é apenas o primeiro round. Os colonos e os outros israelitas como nós podem sentir-se orgulhosos com o facto de, ao contrário de muitas guerras sangrentas entre a Igreja e o Estado em vários países, ao longo da História, o primeiro round em Gaza ter sido violento mas não mortífero. Houve muita fúria e ruído mas não massacre. As outras fases serão assim? Será assim quando chegar a altura de desistir da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental em troca da paz com os palestinianos? Estas questões dependem não só dos israelitas, religiosos e laicos, "falcões" e "pombas", da esquerda e da direita. Estas questões dependem muito da resposta dos palestinianos. Será que os palestinianos olham para tudo isto como um corajoso passo de Israel em direcção a um compromisso histórico com eles? Irão eles retribuir dando passos corajosos em relação aos seus próprios fanáticos? Ou será que eles olham para os confrontos entre judeus e judeus como o primeiro síndroma da desintegração de Israel e vão tentar inflamar a situação interna israelita lançando uma nova vaga de violência e terrorismo?
Diz um velho provérbio árabe que "não se bate palmas só com uma mão". Muito vai depender do modo como os palestinianos interpretarão a luta entre judeus e judeus em Gaza.

2005-08-23

Novo aeroporto: estudos e decisões

João Cravinho

Está ao rubro a discussão sobre a Ota. Raramente a partir do conhecimento sólido de um dossier acumulado ao longo de mais de 30 anos, com mais de uma centena de peças, alguns de grande desenvolvimento e densidade técnica. Na ignorância desse dossier, a discussão segue frequentemente caminhos que só podem baralhar ou induzir em erro a opinião pública. Pesem embora os objectivos de clarificação que presidem a muitas intervenções, incluindo de personalidades prestigiadas, que acabam por usar e abusar de repetidas afirmações feitas sem conhecimento de causa. Em relação ao novo aeroporto, tem-se dito não importa o quê, passe o galicismo. Temos de sair desses moldes. Aproveite-se o enorme interesse público que o tema já suscitou para reconduzir a discussão a um ambiente de seriedade e bom-- senso na apreciação dos argumentos a favor ou contra, cada um deles explicado e avaliado de acordo com a metodologia específica apropriada. E já agora, com conhecimento de causa e sem ridículos preconceitos ideológicos, como a patetice de acusar o projecto de ser uma típica manifestação de keynesianismo "obsoleto". É excelente confrontar informações e opiniões, factos e expectativas. Mas com racionalidade e método. De contrário, o País apenas ficará mais confuso.

Independentemente das ideias de cada interveniente, é preciso ter presente o quadro metodológico representativo das melhores práticas em função da razão de ser, do contexto e da natureza das escolhas a fazer. Decidir sobre o novo aeroporto obedece a procedimentos próprios, diferentes dos procedimentos aplicáveis, a outras decisões de investimento. Nomeadamente, sobre o TGV. O país pode fazer ou deixar de fazer o TGV. Mas terá de fazer um novo aeroporto quando o actual se esgotar. A questão não é decidir se, mas quando, onde e como.

Não se tem suficientemente em conta que os procedimentos de decisão referentes a estes três aspectos decorreram separadamente numa perspectiva sequencial, cada um sujeito a estudos técnico-económicos próprios.

O quando está praticamente à vista, embora alguns se deleitam em querer fazer desse aspecto matéria altamente controversa. Invoca-se que a Portela poderia chegar a 20/21 milhões de passageiros. Mas com que degradação da qualidade de serviço? A que custos económicos e financeiros? E quem os pagaria? Note-se que isso apenas esticaria a Portela por pouco mais de dois anos. A peso de ouro. De qualquer modo, será sempre preciso lançar novo aeroporto nesta legislatura.

Sobre a fase de localização, há que comparar várias localizações possíveis em termos de vantagens e desvantagens dos chamados lado do ar, lado de terra, acessibilidades, inserção na estratégia de macroordenamento territorial, impactos ambientais e melhor estimativa de custos. Foi nessa base que se escolheu a localização, indispensável para podermos passar à ultima fase do processo de escolha e decisão, o como. Não chegámos ainda aí.

Na última fase, uma vez que se terá de optar por uma parceria público-privada, a primeira tarefa é fazer os estudos técnicos e sobretudo económicos e financeiros, na óptica pública e na óptica privada, necessários à elaboração de um bom caderno de encargos abrangendo a construção e a exploração aeroportuária até perto de 2050. Segue-se a abertura do concurso público internacional, a recepção e avaliação das propostas. Só então, mas só então, é que se poderão apresentar estudos fiáveis sobre a rendibilidade económica, financeira e social do novo aeroporto. Mas também só então se tomará a decisão final. Estamos longe disso.

Compreendo que se conteste a Ota, por boas ou más razões. O Governo tem de esclarecer as dúvidas com lisura e pôr na Net a informação disponível. O que já deveria ter sido feito. Agora o que não faz qualquer sentido é exigir para a fase de localização a ava- liação em profundidade da rendibilidade económica e social de uma inexistente parceria público-privada a escolher através de futuro concurso internacional de que nem sequer existe ainda caderno de encargos. Responder-me-ão que poderão ser avaliados vários cenários hipotéticos. Podem, e isso será muito útil. Mas para orientar a elaboração do caderno de encargos, em primeiro lugar. Na vida real, longe das poltronas das redacções e das academias, as avaliações que levam a este tipo de decisões incidem sobre propostas concretas, não sobre cenários hipotéticos. Não vale continuar a baralhar fases e procedimentos.

joaocravinho@hotmail.com

2005-08-13

Cartas entregues na PJ acusam Ferreira Torres



Tânia Laranjo in Público 2005 08 12

José Faria fez descrição escrita dos negócios imobiliários em que terá sido testa-de-ferro do autarca de Marco de Canaveses
Duas longas cartas, escritas por José Faria - o funcionário da Câmara de Marco de Canaveses, ex-braço-direito de Ferreira Torres, que na terça-feira à tarde tentou o suicídio -, estão agora na Polícia Judiciária do Porto e poderão revelar-se fundamentais para esclarecer alguns dos polémicos negócios que nos últimos anos envolveram o autarca.
As cartas contêm uma descrição exaustiva dos negócios imobiliários feitos pelo modesto funcionário (que tem um vencimento de 550 euros) e a explicação de onde lhe vinham os recursos inesgotáveis. "O que ele explica nas cartas é que comprava por dez e depois vendia por cem, mas quem estava por detrás de tudo era Ferreira Torres. O meu irmão nunca teve nada, apenas ganhou uma comissão pela compra e venda de um terreno nos anos 90. De resto, eram só promessas e mais promessas. E agora o meu irmão tem de pagar milhões de euros ao Estado, em impostos sobre mais-valias, por negócios que nunca foram dele", adiantou, ao PÚBLICO, o irmão de José Faria, a quem se destinavam as cartas."Os envelopes estavam em meu nome. Abri-os na PJ e li as cartas à frente dos inspectores. Depois, entreguei-as, até porque era isso que o meu irmão queria. Dizia no final para entregar toda aquela documentação à PJ, para que a verdade viesse ao de cima", sublinhou o mesmo interlocutor.Confirmar as denúnciasOs negócios imobiliários de Avelino Ferreira Torres não são novidade para a PJ.
Em 2003, uma denúncia entrada na Procuradoria-Geral da República dava conta de que José Faria servia como testa-de-ferro do presidente da câmara. "Pela sua dependência hierárquica, o funcionário tem sido obrigado a participar em negócios em nome do autarca, designadamente como comprador de diversas propriedades no concelho que depois revende, de forma pouco clara, a alguns empreiteiros que praticamente só trabalham com a câmara. (...) Os terrenos serão vendidos a preços muito superiores ao seu real valor (...) e muitos estão valorizados pela abertura de caminhos a expensas da autarquia", pode ler-se na denúncia.
No entanto, segundo o PÚBLICO apurou, um dos problemas com que os investigadores foram confrontados no decorrer do inquérito foi com o silêncio de José Faria. Diversas escrituras anexas à denúncia confirmam que efectivamente José Faria era o proprietário dos terrenos, ou agiu em representação dos proprietários, em muitos negócios imobiliários, mas o funcionário sempre recusou a possibilidade de o autarca estar por detrás de qualquer negócio. O resultado foi o fisco cair sobre os seus parcos rendimentos, reclamando o pagamento dos impostos sobre as mais-valias. "O presidente sugeriu-lhe, há dias, que se divorciasse. Seria a única forma de o Estado não reclamar parte do vencimento da sua mulher. Recusou, mas a proposta deixou-o transtornado. Percebeu o estado a que a sua vida tinha chegado no momento que tinha um terço do seu ordenado penhorado", continuou o irmão de José Faria.Segundo os documentos a que o PÚBLICO teve acesso, estão em causa diversos negócios imobiliários. Em 2003, por exemplo, José Faria, na posse de uma procuração, negociou, com a empresa imobiliária de Ferreira Torres e dos seus dois filhos, cinco prédios rústicos em Marco de Canaveses: o Monte do Alto dos Reis, na freguesia de Avessadas; a Mata da Fonte do Marão, na mesma freguesia; a Quinta da Várzea, em Tuías; o Campo da Portela, também em Tuías; e a Quinta de Vilar e Campo, na mesma freguesia. A mesma procuração dava ainda poderes a José Faria para vender o prédio rústico da Sorte da Vinhola, composto por pinhal e com uma área de 20.500 metros quadrados, que só mais tarde passou para as mãos da empresa detida pela família do autarca.
Outro prédio negociado por José Faria com a mesma empresa imobiliária (mas enquanto proprietário) foi a Leira e Mata da Nespereira, com 3500 metros quadrados, comprada em Novembro de 2002 e vendida quatro meses depois à imobiliária da família Torres.

Autarca voltou ao hospital contra a vontade de José Faria

Ontem de manhã, Ferreira Torres esteve novamente no Hospital de S. João, no Porto, a visitar o ex-funcionário, que se encontra a recuperar. "É uma vergonha. Pedimos expressamente ao hospital para não autorizar a visita. Esteve lá, ficou encostado à parede sem falar e o meu irmão ficou muito perturbado. Parece que entrou com um cartão de dador de sangue", contou o irmão de José Faria.
O PÚBLICO tentou ontem, e por diversas vezes, contactar Ferreira Torres para ouvir a sua versão sobre os negócios imobiliários denunciados por José Faria. No entanto, o autarca manteve-se incontactável, tendo também o assessor de imprensa recusado questionar Ferreira Torres, por considerar que as denúncias "nada tinham a ver com a câmara".

2005-08-12

Os incêndios do regime

Paulo Varela Gomes





Vivo no campo ou perto do campo, na região centro, há já alguns anos. Há três Verões que me sento a trabalhar, enquanto a cinza cai de mansinho no meu teclado, em cima dos meus livros, no chão que piso. Não tenho culpa do que é hoje este país e o regime que o representa: militei e votei sempre em partidos que apregoavam querer outro tipo de regime e deixei de militar e de votar quando vi esses partidos tornarem-se tão legitimistas como os outros.


O território português que está a arder - que arde há vários anos - não é um território abstracto, caído do céu aos trambolhões: é o território criado pelo regime democrático instalado em Portugal desde as eleições de 1976 (a III República Portuguesa). Está a arder por causa daquilo que o regime fez, por culpa dos responsáveis do regime e dos eleitores que votaram neles.

Ardem, em Portugal, dois tipos de território: em primeiro lugar, a floresta de madeireiro, as grandes manchas arborizadas a pinheiro e eucalipto. A floresta arde porque as temperaturas não param de subir e porque, como toda a gente sabe, está suja e mal ordenada. Não foi sempre assim: este tipo de floresta começou a crescer nos últimos 50 anos, com a destruição progressiva da agricultura tradicional, ou seja, com a expropriação dos pequenos agricultores, obrigados em primeiro lugar a recorrer à floresta pela ruína da agricultura, para, depois, perderem tudo com os incêndios e desaparecerem do mapa social do país. Também isso está na matriz da III República: ela existe para "modernizar" o país, o que também quer dizer acabar com as camadas sociais de antigamente, nomeadamente os pequenos agricultores. Em 2005, os distritos de Portalegre, Castelo Branco e Faro ardem menos que os outros e não admira: já ardeu aí muita da grande mancha florestal que podia arder, já centenas de agricultores e silvicultores das serras do Caldeirão ou de S. Mamede perderam tudo o que podiam perder.

O segundo tipo de território que está a arder, em particular neste ano de 2005, é o território das matas periurbanas, características dos distritos mais feios e mais destruídos do país: os do litoral Centro e Norte. Os citadinos podem ver esse território nas imagens da televisão, a arder por detrás dos bombeiros exaustos e das mulheres desesperadas que gritam "valha-me Nossa Senhora!": é o território das casas espalhadas por todas as encostas e vales, uma aqui, outra acolá, encostadas umas às outras, sem espaço para passar um autotanque, separadas por caminhos serpenteantes, que ficaram em parte por alcatroar - é o território das oficinecas no meio de matos de restolho sujo de óleo, montanhas de papel amarelecido ao sol, garrafas de plástico rebentadas. É o território dos armazéns mais ou menos ilegais, cheios de materiais de obra, roupas, mobiliário, coisas de pirotecnia, encostados a casas ou escondidos nos eucaliptais, o território dos parques de sucata entre pinheiros, rodeados de charcos de óleo, poças de gasolina, garrafas de gás, o território dos lugares que nem aldeias são, debruados a lixeiras, paletes de madeira a apodrecer, bermas atafulhadas de papel velho, embalagens, ervas secas. É o território que os citadinos, leitores de jornais, jornalistas, ministros, nunca vêem porque só andam nas auto-estradas, o território, onde, à beira de cada estradeca, no sopé de casa encosta, convenientemente escondido dos olhares pelas silvas e os tufos espessos de arbustos, há milhares - literalmente milhares - de lixeiras clandestinas, mobília velha, garrafas de plástico, madeiras de obras (é verdade, embora poucos o saibam: o campo, em Portugal, é muito mais sujo que as cidades).

Este território foi criado, inteiramente criado, pela III República. Nasceu da conjugação entre um meio-enriquecimento das pessoas, que, 30 anos depois do 25 de Abril, não chega para lhes permitir uma verdadeira mudança de vida, e o colapso da autoridade do Estado central e local, este regime de desrespeito completo pela lei, que começa nos ministros e acaba no último dos cidadãos. É o território do incumprimento dos planos, das portarias e regulamentos camarários, o território da pequena e média corrupção, esse sangue, alma, nervo da III República.
É evidente que a tragédia dos campos e das periferias urbanas portuguesas se deve também ao aumento das temperaturas. Para isso, o regime tão-pouco oferece perspectivas. De facto, seria necessário mudar de vida para enfrentar o que aí vem, a alteração climatérica de que começamos a experimentar apenas os primeiros efeitos: por exemplo, seria necessário reordenar a paisagem, recorrendo à expropriação de casas, oficinas, armazéns, sucatas. Seria necessário proibir a plantação de eucaliptos e pinheiros. Na cidade, pensando sobretudo nas questões relativas ao consumo de energia, seria necessário pensar na mudança de horários de trabalho, fechando empresas, lojas e escolas entre o meio-dia e as cinco da tarde de Junho a Setembro, mantendo-as abertas até às oito ou nove da noite, de modo a poupar os ares condicionados - cuja factura vai subir em flecha. Modificar os regulamentos da construção civil, de modo a impor pés-direitos mais altos, menos janelas a poente, sistemas de arrefecimento não eléctricos.

Para alterações deste calibre - que são alterações quase de civilização -, seria preciso um regime muito diferente deste, um regime de dirigentes capazes de dizer a verdade, de mobilizar os cidadãos, de manter as mãos limpas.

Vivo no campo ou perto do campo, na região centro, há já alguns anos. Há três Verões que me sento a trabalhar, enquanto a cinza cai de mansinho no meu teclado, em cima dos meus livros, no chão que piso.

Não tenho culpa do que é hoje este país e o regime que o representa: militei e votei sempre em partidos que apregoavam querer outro tipo de regime e deixei de militar e de votar quando vi esses partidos tornarem-se tão legitimistas como os outros.

Espero um rebate de consciência política por parte destes políticos, ou o aparecimento de outros. Faço como muitos portugueses: espero por D. Sebastião, desempenho a minha profissão o melhor que posso, e penso em emigrar. Historiador (Podentes, concelho de Penela)

2005-08-02

Quando o preconceito ataca...


O que a entrevista, que tanto a incomodou, revela é que o PCP e o seu secretário-geral, a quem grosseiramente acusou de "lunatismo ideológico", estão bem mais próximos dos problemas e da vida deste país real do que a aluada catilinária de Fátima Bonifácio
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Jorge Cordeiro*

A Fátima Bonifácio parece ter sido reservado o papel de escrever tudo o que outros, ainda que partilhando do mesmo e mais primário reaccionarismo e anticomunismo, evitam assumir por razão de preservação de uma certa imagem de sanidade.

A propósito de uma entrevista do secretário-geral do PCP, Bonifácio, usando da vantagem de poder ofender sem que se lhe possa responder, insulta, deturpa, mente.

Ninguém exige à autora do texto publicado simpatia pelo PCP, pelo seu projecto ou pelas suas ideias. O que se lhe exige é respeito pela verdade, a recusa de falsificação das posições do PCP, algum rigor e sobretudo menos ignorância.

Fátima Bonifácio não tem que saber o que é o marxismo-leninismo ou conhecer o programa do PCP para uma Democracia Avançada. Terá o direito de perante os fundamentos da ideologia comunista ter - na profunda ignorância do que ela acolhe do melhor da filosofia alemã, das escolas de economia inglesa e da utopia socialista francesa para se afirmar como teoria de transformação social - a mesma reacção que outros, em momentos vários da história da humanidade, tiveram perante o novo, perante o que negava aquilo que parecia inelutável, perante os ciclicamente anunciados "fins da história" nas várias etapas do desenvolvimento social. Terá o direito de discordar da construção de uma democracia que, para além da sua componente política, o seja também no plano económico, social e cultural. É uma questão de opção: a autora do texto vive satisfeita e tranquila à sombra de uma política neoliberal que espezinha direitos, lança na pobreza milhares de portugueses e hipoteca o país. O PCP não.

Para a autora será legítimo e até desejável, como se lê pelo entusiasmo que inflama a sua prosa, o desmantelamento do aparelho produtivo, a fuga a impostos do grande capital financeiro, a redução das responsabilidades sociais do Estado, o aumento da carga fiscal sobre os que menos têm. A autora está no direito de considerar que não há relação alguma entre a destruição da produção nacional, o desequilíbrio da balança comercial e o aumento do défice. Ou de considerar que a competitividade e a produtividade só podem ser alcançados com a redução dos salários, a sobrexploração dos trabalhadores, o trabalho escravo.

A autora está no direito de se incomodar com a luta dos que não se resignam a ver retirados os seus direitos ou desvalorizados os seus salários.

O que Fátima Bonifácio não tem o direito é de mentir e manipular descaradamente como o faz quando utiliza declarações irresponsáveis de dirigentes de uma "facção sindical" da polícia (correntemente tida como muito próxima de Paulo Portas e do respectivo partido) [sublinhado de In Extenso] para denegrir o secretário-geral do PCP e deturpar a luta do PCP e falsificar a sua real identidade e projecto político.O que a entrevista, que tanto a incomodou, revela é que o PCP e o seu secretário-geral, a quem grosseiramente acusou de "lunatismo ideológico", estão bem mais próximos dos problemas e da vida deste país real do que a aluada catilinária de Fátima Bonifácio.

Um pouco mais de educação e sobretudo rigor seria desejável a quem, tendo a pretensão de assinar como historiadora, se revela quanto muito uma, e má, inventora de historietas.
* Membro da Comissão Política do PCP

2005-08-01

Compra de computadores passa a ser dedutível no IRS.

Jornal de Notícias de 2005-07-31
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Novas tecnologias.
Investimento público de mil milhões para atrair mais 1,5 mil milhões dos privados. Governo quer mais de 60% dos portugueses a "navegar" na Net em 2010
Manuel Correia

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José Carlos Maximino

As famílias com estudantes a seu cargo, de qualquer nível de ensino e que não se enquadrem nos escalões de rendimentos mais elevados, vão passar a poder deduzir no IRS até 250 euros na compra de um computador, já a partir de 2006. Esta dedução fiscal passa por ser a medida mais emblemática do "Ligar Portugal", o novo programa nacional para a sociedade da informação, integrado no plano tecnológico, que o Governo apresentou, ontem, em Aveiro

A iniciativa pretende contribuir para a redução "para metade" dos custos de aquisição de computadores, por parte das famílias portuguesas, por forma a incrementar o uso das novas tecnologias da comunicação e da informação - a meta do Governo é chegar a 2010 com mais de 60% da população portuguesa a utilizar a Internet.

O objectivo global será a modernização, o desenvolvimento e o aumento da competitividade do país, e é, segundo o ministro da Ciência e Ensino Superior, Mariano Gago, acompanhada de um acordo entre os principais operadores nacionais de telecomunicações. O Governo espera igualmente que da medida resulte um diminuição significativa dos preços do acesso e utilização da Internet em banda larga

O programa prevê um investimento directo do Estado de mil milhões de euros e 1,5 mil milhões, por parte dos privados, nos próximos anos, na dinamização da sociedade da informação e do conhecimento."Aqueles que dizem que este investimento em educação é caro demais é porque não sabem qual é o preço da ignorância", sublinhou o primeiro-ministro, José Sócrates, no lançamento do programa, considerando que "não investir não significaria o país ficar parado, mas sim andar para trás".

"Quando falamos do plano tecnológico é destes projectos que estamos a falar. É na qualificação dos portugueses que vamos apostar. Este é um investimento fundamental que vai ser prioridade, na aplicação dos recursos nacionais bem como das ajudas comunitárias ", disse José Sócrates, acrescentando que estas medidas terão expressão já no próximo Orçamento Geral do Estado. O primeiro-ministro defendeu que, também nesta área, "no investimento público está sempre presente a ideia de estimular os privados" e disse que o Estado vai dar o exemplo, investindo mil milhões de euros na generalização do uso de computadores e Internet, na esperança de induzir um investimento privado de 1,5 mil milhões de euros. "O investimento neste domínio é crítico para o nosso desenvolvimento, porque as tecnologias da informação e da comunicação são um contributo ines- timável para o crescimento económico e para a qualificação dos portugueses ", explicou José Socrates, acrescentando que se trata, ao mesmo tempo, de um investimento "no incremento do conhecimento, na aumento da cidadania e da solidariedade social". "A apropriação das tecnologias da informação e da comunicação são uma forma de tornar a sociedade melhor", concluiu. A materialização do programa "Ligar Portugal" pressupõe o empenho e a mobilização das empresas, da administração pública, escolas e famílias.

José Sócrates sublinhou que a dedução fiscal de até 250 euros, na compra de computadores, podendo ser usada pelas famílias, uma vez em três anos , deverá levar a uma baixa do preço médio dos computadores pessoais para os 500 euros. No que se refere ao acesso à Internet, o primeiro-ministro disse acreditar que o acordo firmado anteontem com os principais operadores de telecomunicações trará uma maior concorrência e, em consequência, uma redução dos preços do acesso.

Metas anunciadas

Internet

Duplicar o número de utilizadores regulares, para mais de 60% da população em 2010.

Banda Larga

Triplicar o número de agregados familiares com acesso de banda larga, para mais de 50% em 2010.

Escolas

Multiplicar número de computadores nas escolas, por forma a atingir a média de um computador por cada cinco alunos em 2010.

Custos

Colocar o preço do serviço de acesso permanente, utilizado pela maioria dos portugueses, entre os três mais baixos da União Europeia, incluindo tráfego ilimitado e assinatura de linha telefónica.

Serviço de voz

Generalizar o uso do serviço de voz na Internet.

Site único

Reunir num local único todos os concursos, de aquisições e contratações de pessoal da Administração Central e Local, e assegurar acesso interactivo aos serviços públicos

Empregos

Aumentar o número de empregos no sector das TIC para 3% do total, criando 44 mil novos empregos.

2005-06-25

O “Julgamento” de Cunhal (2)

Correio dos leitores: de Manuel Nogueira recebemos a 2ª parte do seu artigo que se publica em seguida:
Através dos jornais sobre a morte de Álvaro Cunhal deparei-me com o seu julgamento – julgamentos condenatórios e aprovatórios (que também são julgamentos) – por aqueles que de algum modo se relacionaram com ele. Sentado na esplanada e a achar que o essencial ainda faltava, folheava as páginas interessado no palpitar das vidas e à espera de uma nova compreensão. Pois, parece que somos mesmo assim: Julgamos tudo em nosso redor por aquilo que as coisas nos dão de prazer/proveito ou sofrimento/desproveito a nós e aos nossos. E parece que é mesmo assim que está certo, pelo menos para as coisas mais práticas, que de outro modo já não andávamos cá. Mas talvez esta faculdade de julgar não seja totalmente útil para obter resultados mais completos em assuntos mais complexos...
Foi assim que aconteceu quando abri o “Público” de 14 de Junho, e me deparei com a série de julgamentos: “Um revolucionário de corpo inteiro”; “um combatente político”; “um lutador pela liberdade”; “muito coerente”; “homem muito inteligente”; “homem de cultura”; “um homem grande”; “antifascista”. “Um sedutor”; “progressista de vistas curtas”; “maquiavélico”; “incoerente”; “manipulador”; “admirador da grande revolução conduzida por Lenine, mas também das misérias que vieram com Estaline, Krutchov, Brejnev...”
Honestamente talvez não se possa dizer que alguém se enganava. Provavelmente cada um, a partir da sua própria esfera de consciência estava razoavelmente certo. Mas para além de todos os juízos, eventualmente de altíssima qualidade, que não é isso que está em causa, haveria algo de objectivo que valesse a pena compreender? Esta pergunta lembrava-me a conversa com um amigo marroquino, incompreensivelmente comunista, e tinha a certeza que aqui o fundamental estava por dizer.

Pois quer-me parecer que é possível – apesar de muitíssimo difícil – viver-se uma vida em integridade com o núcleo de consciência mas íntima, mais âmago de nós próprios. Julgo que o cerne das coisas e de nós mesmos nos passa despercebido. Mas que se o procuramos e se o encontramos e o agarramos – ou aprendemos a deixar-nos agarrar por ele –, no evoluir dessa integridade do cerne de nós mesmos, desenvolve-se um novo sentido, que não é nenhum dos sentidos comuns, nem o da análise racional, mas poder-se-ia dizer que é uma percepção directa da vida. A percepção de um sentido da vida, que se revela para o próprio um sentido universal da vida. Uma vivência que confere uma energia e uma inteireza totalmente novas.
Muitos homens e mulheres ao longo da História deram provas de uma notável capacidade de entrega em esquecimento de si próprios e dos seus interesses pessoais, em serviço aos outros, realizada a partir de uma percepção mais ou menos directa do sentido universal da vida, no cerne da sua consciência. Uns viram-no como justiça, ou como bem ou como verdade. Outros conceberam-na como um Deus, ou um Logos.
Eu sou ateu, porque nem podia ser de outra maneira, e não me interessa a metafísica. O neurocientista António Damásio, procura explicar como todas estas coisas se passam no interior do nosso cérebro, a meu ver sem lhe retirar, nem realidade, nem grandeza, ou beleza.
Marx compreendeu este sentido colectivo universal da vida como o sentido da História, a dirigir-se para o Homem Novo. Lenine também, e procurou ser o intérprete desse sentido. E Darwin nas suas investigações viu na natureza um sentido inerente, tendente para a vida e para a evolução. Damásio vê essa evolução como uma grande viagem para a criação da consciência, e está convencido que a consciência não é o fim último da evolução da natureza.
Ora, a meu ver se por um lado é possível encontrar essa percepção directa do fulcro da vida (apesar de me parecer muito raro e difícil), enquanto realidade vibrante e sem conceitos, por outro lado isso passa sempre por um processo lento de auto-revolução pessoal que para muitos nunca chega ao fim. É que, somos todos tendencialmente ultra-conservadores e egocêntricos e irracionalmente não estamos interessados em abrir mão do passado e do nosso egoísmo estrutural.
Acontece que para fazermos algo e sobretudo para comunicarmos, temos de formar concepções em torno desse sentido das coisas. Enfim, temos de pensar. E assim formamos ideias, conceitos, estruturas de pensamento e até doutrinas. Até aqui não vejo mal nenhum. Pelo contrário. Mas o problema acontece quando se confunde a percepção directa da realidade interior com a ideia que se formou (o que é muito vulgar!). E então a ideia deixa de se formar a partir da relação entre a nossa realidade interior e a realidade factual. E então deixamos de actualizar a compreensão pessoal do nosso sentido da vida (deixamos de permitir que uma verdade seja substituída por outra) e cristalizamos em torno de um sistema de ideias, que acabam por se tornar ultrapassadas e portanto, falsas. É uma espécie de esclerose. Deixa-se de viver da realidade e passa-se a viver da ideia – fossilizada mas muito poderosa.
Suponho que foi isso que aconteceu com as religiões, com os absolutismos e com os fundamentalismos. E com todos aqueles que mataram, torturaram e perseguiram para impor ou para defender a sua verdade.
Poucos foram os que, como o poeta americano Walt Whitman – também ateu –, foram capazes de: a) não só abrirem-se ao seu próprio âmago e de manterem no seu comportamento de vida uma integridade com a percepção nuclear do sentido da vida, mas também b) renovar essa percepção através de uma contínua renovação e aprofundamento da vida de acções e da dinâmica da vida em si mesmos e em seu redor. Isto, para que c) esse sentido da vida não seja apenas uma ideia utópica, mas sim uma realidade objectiva e vivente, em auto-realização. Para que para aquele que a viveu, e para toda a espécie humana, essa vida tenha valido a pena viver. E desse modo se possa dizer como Walt Whitman: “Enquanto a ti, morte, e a ti, amargo abraço da mortalidade, é inútil tentarem alarmar-me”.

2005-06-21

O "Julgamento" de Álvaro Cunhal (1)

Correio dos leitores: De Manuel Nogueira o texto seguinte:

O meu insurgimento contra a injustiça desencontrou-se do comunismo quando ainda ia a tempo de acontecer alguma coisa entre os dois e, quando mais tarde se encontraram, a evolução das coisas tinha tornado impossível que se revissem um no outro.
Foi por causa disso que naquela tarde numa viagem de autocarro para El-Jadid em que o ar condicionado não funcionava e suávamos em bica, interrompi a nossa conversa com uma pergunta ao meu amigo marroquino:
- Porque é que és comunista?
Parecia-me irracional que, sendo um tipo inteligente, formado na Europa e tendo acompanhado a perestroika e o colapso dos sistemas do bloco de leste, que apesar de tudo permanecesse ainda teimosamente comunista.
A questão não era filosófica porque as críticas que se pudesse fazer a Marx-Engels-Lenine não lhe suscitavam nem oposição nem interesse. Politicamente reconhecia que, em muitos aspectos era verdade que os partidos revolucionários se tinham tornado no oposto daquilo que tinha sido o seu impulso original. Reconhecia os factos relativos à supressão das liberdades naqueles países com a mesma reprovação do que eu. Porém isso não riscava nem ao de leve a sua armadura de convicção.
Então, desta vez, depois de andarmos às voltas na conversa, como o nosso autocarro, que em vez de seguir uma estrada principal recta e direccionada, seguia como que erraticamente pelas mais secundárias estradas, sem pressa, de aldeia em aldeia, deixando adivinhar a custo a direcção do destino onde não havia meio de chegar, foi então, dizia, que lhe fiz aquela pergunta. Com uma vaga sensação de inconveniência, não por não me dizer respeito o assunto, porque, bolas, entre amigos não há essas coisas, mas porque para perguntar afirmei com toda a certeza coisas que ninguém tem nem pode ter certezas absolutas. Mas enfim, lá saiu a pergunta:
- Olha lá, porque é que tu és comunista se a utopia de justiça, igualdade social e tudo o mais entre os homens é impossível e nunca será realizável?
E ali estava o meu amigo marroquino, silencioso por um breve instante como a pesar bem as palavras, o olhar para o longe de fora da janela, fixo num ponto mais alto no horizonte para onde se dirigia a fita serpenteante da estrada. Talvez estivéssemos a chegar ao nosso destino. Pelo menos, o ponto no horizonte que se aproximava deixava adivinhar poder muito bem ser o forte português de El-Jadid. E ali estava ele despretencioso, sorriso sincero a responder-me muito calmamente:
- Porque, meu amigo, se isso for impossível de realizar, a vida não tem sentido.
E ali estava eu a chegar ao meu destino, julgo que meio sorridente também, sem concordar com nada de políticas, mas a entender. Calado por um momento sem pensar nada de especial acerca daquilo, porque se pensasse então é porque não estava completamente calado e eu estava calado até ao fundo e a viagem parecia mais fresca, talvez por já ser fim de tarde e o sol começasse a descer no horizonte por de trás do forte português para onde nos dirigíamos.
Não foi uma questão de ele ter tido razão. Sei lá se tinha. A questão é que não se tratava de se ter razão. Simplesmente aquilo tinha sido maior do que a nossa conversa. E eu entendi, calado até ao fundo entendi sem palavras e pareceu-me grande e certo qualquer coisa naquilo. Não mudei em nada a minha opinião sobre a incoerência de se continuar comunista depois das lições da história e da vida (se assim fosse ele teria tido razão), mas acredito que entendi muito bem e por isso não tinha nada a dizer.
E é por causa disso que quando o Álvaro Cunhal morreu tendo mantido a mesma postura até ao fim, sem concordar (até porque não se tratava disso), lembrei-me do meu amigo no autocarro a caminho de El-Jadid, e julgo que entendi.
Manuel Nogueira

2005-06-14

Morreu o pintor René Bertholo

Jornal Digital 2005-06-13


Porto - O pintor René Bertholo faleceu na última sexta-feira, vítima de doença prolongada, informou esta segunda-feira a Galeria Fernando Santos, no Porto, que classifica o artista como «um dos maiores vultos da pintura portuguesa contemporânea».
René Bértholo nasceu em 1935 em Alhandra. Fez o curso da Escola de Artes Decorativas António Arroio (1947-51) e frequentou a Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa (1951-1957). Em 1953 participou na VII Exposição Geral de Artes Plásticas, convidado por Júlio Pomar, e no ano seguinte foi incluído por José-Augusto França no I Salão de Arte Abstracta.Fundou e dirigiu com outros colegas a revista «Ver» (1953-1955) e foi um dos animadores da galeria Pórtico com Lourdes Castro, José Escada, Costa Pinheiro e Teresa de Sousa (1955-57). Instala-se em Paris em 1958 e começa a publicar a revista «KWY», com Lourdes Castro. Juntam-se à revista, a partir de 1960, Jan Voss e Christo, e também José Escada, Costa Pinheiro, João Vieira e Gonçalo Duarte. Publicaram-se 12 números até 1963.Foi bolseiro da Fundação Gulbenkian em 1959-60. Em 1961 realiza os primeiros desenhos e monotipias de acumulação e espalhamento de imagens. Segundo um comunicado da Galeria Fernando Santos, que representou o pintor nos últimos 12 anos, uma dessas monotipias integrou no ano 2000 a exposição retrospectiva «Making Choices», que o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque dedicou ao período 1920-1960 com obras da sua colecção.René Bértholo integrou diversas exposições colectivas que marcaram a década de 60, como «Mythologies Quotidiennes», em 1964, no Museu de Arte Moderna de Paris. A partir de 1966, constrói os primeiros objectos com movimento, os «modelos reduzidos».Em 1972-73 esteve em Berlim, a convite da Deutscher Akademischer Austauschdienst, dedicando-se a estudos de electrónica aplicada à arte.Em 1981 regressa a Portugal e instala-se no Algarve. O Museu de Serralves dedicou no ano 2000 uma retrospectiva à sua obra.

Pintura de René Bertholo no Chiado
Paula Lobo
Diário de Notícias 1 de Março de 2002
«Não conto voluntariamente nenhuma história. Cada pessoa constrói a sua», diz René Bertholo a olhar para as telas. Dez obras de dois metros por dois, datadas entre 1998 e 2000, que até 15 de Abril podem ser vistas na Galeria Mundial Confiança-Chiado 8, em Lisboa. E que o pintor reuniu o título de «Confusões».
«Aparentemente tudo é de desordem, a ligação da ordem é a desordem. E foi a palavra [título de uma das obras] que me pareceu significar mais a totalidade do que está exposto», explica ao DN. Dessa tentativa de equilibrar as «forças» resulta «a mistura de elementos ditos figurativos com os ditos abstractos», que o artista tem recuperado de anteriores trabalhos recorrendo ao computador.
Depois vem a quadricromia processo que descobriu ao trabalhar para a colectiva «Biombos dos Portugueses» (1996). Começa com o azul, junta o vermelho, o amarelo e, no fim, os tons de cinzento. Sempre devagarinho.
«E tudo é abstracto ou figurativo, depende de como entendemos essas palavras», recorda o co-fundador do grupo KWY. Do conjunto, destaca «O que é aquilo?». Foge à regra das quatro ou seis divisões do quadro, com a pequena figura humana a dominar o centro. «Olhe, sei lá! Pode inovar, no sentido de acabar essa dicotomia», esclarece.
Organizada pela Galeria Fernando Santos (que a inaugurou no Porto) e já apresentada noutros pontos do País e em Córdoba, «Confusões» segue em Maio para Paris (Instituto Camões). Até pintor continuará a explorar as transparências em obras inacabadas e a estudar empedrados de Lisboa para ilustrar outro livro do poeta sueco Lasse Söderberg.

2005-06-06

Os despojos do não no referendo francês

artigo de Carlos Vale Ferraz, no Público de 2005-06-06.

Para evitar que os pescadores das águas turvas dos nacionalismos destruam a Europa aberta que ainda é viável é necessário matar a serpente no ovo, o que também se faz dizendo sim a este tratado.

A afirmação de alguns aprendizes de feiticeiro de que o Não ao tratado constitucional europeu é o Não da positiva, o Não que permite refundar a Europa noutras bases, tem a mesma lógica que alguém esmagar os dedos a um pianista mediano com o argumento de que quer fazer dele um grande guitarrista!

O não da França ao tratado constitucional europeu matou à nascença a ideia de uma Europa política que pudesse vir a desempenhar um papel de algum relevo no Mundo. Sem a França uma Europa forte, autónoma e moderadora não é possível e, reduzida à sua dimensão económica, a ainda chamada União Europeia vale politicamente menos que potências regionais como a Índia ou o Brasil, para não falar da China.

Para as elites francesas defensoras da soberania nacional contra Bruxelas a alegria pelo resultado do referendo é espantosa: perderam influência numa entidade da qual faziam parte e passaram a ser mais irrelevantes no mundo que o Reino Unido de Blair que, ainda assim, é peão dos Estados Unidos!

Quanto aos franceses "d"en bas" as razões para o Não são consensuais, como escreveu Luís Salgado de Matos, para a massa, a Europa e a globalização ameaçam-lhe o emprego e os benefícios sociais e o estado-nação garantem-lhos. As consequências desta convicção são claras: exigência de proteccionismo económico e xenofobia através da criação de barreiras a mercadorias e a pessoas. É o retorno aos nacionalismos e não admira que Philippe de Villiers, um dos tenores do Não, tenha evocado o teórico fascista Charles Murras na noite dos resultados e que trotsquistas e comunistas se regozijassem por esta vitória dos trabalhadores franceses, embora ao som da Internacional!

Desde os anos 20 que na França e na Alemanha os frutos destas negras alianças são conhecidos, mas é para aproveitarem esta maré que se preparam Nicolas Sarkozy, da UMP, e Laurent Fabius do Partido Socialista. Os dois homens do futuro imediato em França fizeram a mesma análise dos resultados: os franceses querem mais França e menos Europa, mais proteccão e menos competição! Eles, pelo seu lado, querem ser eleitos presidentes da República Francesa em 2007 e vão fazer tudo para o ser, dando àqueles de quem necessitam aquilo que eles querem: subsídios e muralhas contra produtos e trabalhadores estrangeiros.

A nova política francesa nos próximos tempos será, assim, a de exigir em Bruxelas mais apoios para os seus agricultores, pescadores e industriais e de levantar internamente mais restrições à importação de bens e serviços e à entrada de emigrantes. Durão Barroso vai ser declarado inimigo público e apresentado aos franceses como a causa de todos os seus males, mas cada euro que Sarkozy e Fabius sacarem em Bruxelas, cada marroquino, português ou polaco que impedirem de trabalhar em Franca, será uma vitória sua. Em vez da solidariedade entre estados, regiões e cidadãos, a xenofobia, a lei da selva do mais forte e do cada um por si. Não está mal para quem, como Fabius, disse não ao tratado constitucional por ser pouco social e muito liberal, ou para quem, como Sarkozy, defendeu o sim para reforçar a posição da França na Europa!

Na esteira dos dois franceses surgirão réplicas nacionais em vários países, com o mesmo programa de saque a Bruxelas e levantamento de fronteiras, enquanto continuarão a falar no défice de democracia nas instituições europeias e do fosso entre políticos e cidadãos. De facto, o mesmo défice e o mesmo fosso que existem em cada uma das nações. Para evitar que os pescadores das águas turvas dos nacionalismos destruam a Europa aberta que ainda é viável é necessário matar a serpente no ovo, o que também se faz dizendo sim a este tratado.

Escritor, Aix-en-Provence

2005-06-04

Um plano B

Um artigo de Francisco Seixas da Costa no jornal Público de 2005-06-03



O que se passou em França diz respeito a todos e, até por uma solidariedade europeia primária, temos que partilhar esse problema. Assim, e em lugar de se alimentar um angustiado sentimento de orfandade institucional, todos deveríamos empenhar-nos, desde já, na procura de soluções construtivas para um problema comum


O "não" francês de domingo tem de ser respeitado, precisamente na mesma medida que o "sim" já decidido em outros países. Estes últimos não podem ver desprezada a sua vontade, só porque um grande Estado fundador decidiu, conjunturalmente, não aderir àquilo que o seu próprio governo negociou e aprovou. A vontade soberana dos que já se pronunciaram positivamente sobre o Tratado Constitucional, e dos que ainda irão pronunciar-se nesse mesmo sentido, deve ser tida em plena consideração, a menos que se entenda que a União Europeia não passa de uma farsa em que só a vontade de alguns deve prevalecer.

Não vale a pena, contudo, tapar o sol com uma peneira e fingir que este é um problema exclusivamente francês. Como disse o MNE português, "o resultado do referendo em França deve ser tido em conta pelos franceses, mas também por todos os Estados-membros". Com efeito, o que se passou em França diz respeito a todos nós e, até por uma solidariedade europeia primária, temos que partilhar esse problema. Assim, e em lugar de se alimentar um angustiado sentimento de orfandade institucional, todos deveríamos empenhar-nos, desde já, na procura de soluções construtivas para um problema comum. Vejamos uma hipótese de trabalho.

1. O processo de ratificação deve continuar nos países onde está previsto, na consciência de que o resultado do referendo francês vai ter efeitos noutras consultas, embora não necessariamente num sentido unívoco. Os governos que aprovaram o Tratado Constitucional devem continuar a empenhar-se na sua aprovação e, em particular, procurar desconstruir os aspectos do "não" em França e noutros países que sejam relevantes para as preocupações das respectivas opiniões públicas e que possuam indiscutível legitimidade, à luz do espírito europeu. Quero com isto dizer que aspectos xenofóbicos e populistas por detrás da rejeição do Tratado devem merecer apenas a consideração táctica devida.

2. Terminado que seja o processo de ratificações, e avaliados os resultados no conjunto de países em que não tiver sido possível concluí-lo com sucesso, o Conselho Europeu poderia nomear um "grupo de reflexão" ou de "sábios" destinado exclusivamente a fazer uma inventariação e análise das razões que terão estado subjacentes às rejeições verificadas. Esse grupo, a ser presidido por uma personalidade da dimensão e autoridade de um Jacques Delors (mas nunca de um Valéry Giscard d"Estaing, por razões que julgo óbvias), proporia os termos de um Protocolo ou de um Acto Institucional complementar ao Tratado Constitucional, que pudesse aclarar os aspectos tidos por mais controversos ou ambíguos deste último e que ajudasse a responder a algumas das legítimas preocupações suscitadas nas opiniões públicas, em especial daquelas onde o Tratado houvesse sido rejeitado. Em qualquer dos casos, teria de ficar bem claro que não estaríamos a reabrir a negociação do Tratado. Não menorizo a dificuldade deste exercício, até porque os diversos "não" encerrarão preocupações frequentemente contraditórias. Mas não devemos também desprezar o facto do sentimento europeu então prevalecente poder ter um efeito positivo sobre a vontade comum de chegar a um consenso.

3. O resultado do trabalho do "grupo de sábios" seria submetido, como é de regra, a uma Conferência Intergovernamental, cujos resultados teriam de ser ratificados por todos os Estados-membros. Para os países que já houvessem aprovado o Tratado, restaria apenas a ratificação do Protocolo ou Acto Institucional. Os que tivessem sofrido processos de rejeição, por referendo ou por votação parlamentar, submeteriam às suas opiniões públicas ou parlamentos, respectivamente, o novo "pacote", isto é, o Tratado complementado com a nova figura institucional criada para responder também às suas próprias preocupações.Dir-se-á que este processo pode ser longo (uma ratificação europeia demora, em média, 18 meses) e que nada garante que, no seu termo, venha a ter sucesso. Concedo que sim, mas ainda não vi mais nada no mercado das ideias e nunca é cedo demais para tê-las.

. Embaixador. Negociador português dos Tratados de Amesterdão e Nice.

2005-05-16

Contra a corrente

Jornal de Negócios 16 Maio 2005 13:59
António Mendonça*
amend@iseg.utl.pt

Será que os portugueses padecem de algum mal genético que os impede de traduzir em acções a elevada capacidade de proceder a diagnósticos e análises e de convergir no domínio das soluções?
Em Portugal vem-se assistindo nos últimos anos a um fenómeno bastante curioso para não dizer paradoxal.
Por um lado verifica-se uma convergência muito significativa, entre especialistas, agentes económicos e agentes políticos, no que respeita ao diagnóstico da situação de crise económica que o país atravessa e aos bloqueios que importa ultrapassar no sentido de retomar a trajectória de crescimento e de convergência com os parceiros mais desenvolvidos.
Mas, por outro lado, a situação económica geral do país não cessa de se degradar, indiferente à convergência de opiniões e à sucessão de medidas e contramedidas que os diferentes responsáveis políticos têm tomado, alimentando um discurso cada vez mais pessimista sobre as capacidades domésticas de inflectir sustentadamente a situação.
Naturalmente que a questão que se coloca é a de saber porque é que isto acontece em Portugal. Será que os portugueses padecem de algum mal genético que os impede de traduzir em acções a elevada capacidade de proceder a diagnósticos e análises e de convergir no domínio das soluções? Ou será que os constrangimentos económicos internos e externos evoluíram de tal modo que tornaram absolutamente ineficaz qualquer veleidade doméstica de alterar o rumo dos acontecimentos? Será que poderemos buscar, ainda, explicações noutros factores idiossincráticos da economia e da sociedade portuguesa contemporânea?
A primeira tentação é a de invocar factores de natureza exógena que restringem, obviamente, os graus de liberdade dos decisores económicos e políticos e condicionam o comportamento da economia portuguesa. A mais elementar lógica de análise económica obriga a considerar as restrições decorrentes da participação na Zona Euro, da aplicação do Pacto de Estabilidade e Crescimento ou do mais recente alargamento a leste. A um nível mais geral também não se podem ignorar os efeitos de verdadeiro «buraco negro» que a China está a provocar sobre a economia mundial e sobre a economia portuguesa, muito em particular.
Todavia, não se podendo ignorar os efeitos e os constrangimentos da nossa integração, activa e passiva, nas dinâmicas da economia europeia e da economia global, é importante ter presente que o que nos distingue no momento presente, não é tanto a experiência de dificuldades económicas mais ou menos graves que, duma forma ou doutra, atingem a generalidade dos nossos parceiros europeus, mas o facto de essas dificuldades atingirem entre nós uma dimensão crítica e, sobretudo, uma persistência, que nos têm colocado na cauda das «performances» de crescimento e desenvolvimento dentro da União Europeia, praticamente desde o inicio desta década, contribuindo para a degradação da imagem externa do país e para a deterioração do clima de confiança interna relativamente às possibilidades de atacar a fundo os problemas. Nesta perspectiva, faz todo o sentido considerar que os factores de natureza interna, não só têm uma quota importante de responsabilidade na explicação da crise económica que o país atravessa como mostram tendência a auto-alimentar-se dos seus próprios efeitos, tornando cada vez mais difícil romper o ciclo de produção de dificuldades.
Assumindo claramente o risco de ir contra a corrente, diria que duas atitudes, que têm sido dominantes nos últimos anos, quer no plano das concepções teóricas quer no plano da acção política e governamental, contribuíram decisivamente para a perda de eficácia das políticas públicas e, por arrastamento, para o insucesso ou menores resultados das estratégias e das políticas empresariais.
A primeira atitude tem-se reflectido na progressiva desvalorização da dimensão nacional da economia. Ou seja, tem-se insistido numa óptica de abordagem dos problemas que privilegia a dimensão da integração europeia da economia portuguesa ou, então, no extremo oposto, o espaço competitivo das empresas, relegando-se para segundo plano, ou omitindo-se completamente, o vector de projecção estratégica que está associado à consideração da economia na sua dimensão nacional específica. Esta desvalorização tem conduzido à erosão progressiva dos factores de identidade e de articulação interna da economia portuguesa contribuindo, não apenas para a sua perda geral de atractividade como, também, para a redução substancial de uma importante base de produção de factores específicos de competitividade. Em particular, esta desvalorização da importância da dimensão nacional da economia tem-se manifestado em duas posturas típicas dos responsáveis políticos e das elites decisoras: uma aceitação passiva e progressiva da diluição ibérica do espaço económico nacional que se manifesta, entre outras coisas, na incapacidade de delinear e concretizar até ao momento uma estratégia coerente e de transportes e de infra-estruturas, e uma recusa sistemática em considerar o potencial económico da projecção atlântica do país e da sua inserção num espaço histórico e cultural de vocação global que é o espaço lusófono.
A segunda atitude traduz-se na desacreditação sistemática da administração pública e das funções do Estado em geral e na veiculação da ideia de que existe uma contradição essencial entre a intervenção económica do Estado e a eficácia na afectação de recursos conduzindo a situações permanentes de suboptimidade do bem-estar social.
É interessante notar, no entanto, que longe de ter contribuído para uma redução efectiva do peso do Estado na economia e no aumento da sua eficácia social esta atitude apenas contribuiu para a desorganização da máquina administrativa, para a duplicação de estruturas e sobreposição de competências, para a desresponsabilização dos quadros dirigentes e para a apropriação por parte dos mais diversos interesses privados e corporativos de múltiplos canais de definição estratégica e de centros de decisão política. E contraditoriamente, ou talvez não, é precisamente no período em que as ideias anti-Estado mais se afirmaram e que, grosso modo, coincide com as duas últimas décadas do século passado, que o aumento do peso do Estado mais se verificou, contrariando a ideia comum que associa gigantismo da máquina estatal a forte intervencionismo económico.
Como é fácil concluir das observações efectuadas, a dimensão e as particularidades da crise económica estrutural que o país atravessa exigem que se ponham de lado preconceitos e se recuperem como preocupações centrais da estratégia governativa a valorização da dimensão nacional da economia portuguesa, e a credibilização e modernização da intervenção económica do Estado, da administração pública e dos serviços públicos em geral. Ao contrário do que pretende fazer crer, a inserção nas dinâmicas de integração económica e da globalização não tiraram sentido à dimensão nacional das economias ou à intervenção económica dos Estados nacionais, mas antes impõem a sua reconsideração estratégica de modo a transformá-los em instrumentos de produção de factores dinâmicos de competitividade. Quanto mais tarde se reconhecer esta realidade mais longe estará o país de recuperar o tempo perdido.
* Professor Universitário no ISEG, Lisboa.

2005-05-12

Anticastrista Posada Carriles trabalhava para a CIA
(Transcrito do Público de 2005-05-12. Secção "Mundo" pág 20.

Documentos do FBI, os serviços de investigação norte-americanos, confirmam aparentemente que o dissidente Luis Posada Carriles esteve de facto por detrás do atentado contra um avião cubano em 1976, e isso já enquanto agente da CIA, a espionagem americana. O prófugo estará nos Estados Unidos, onde terá pedido asilo político. Um dos papéis, datado de 3 de Novembro de 1976, cita um informador segundo o qual o anticastrista, formalmente um agente da inteligência venezuelana, fez parte do grupo que preparou "o derrube do avião das linhas aéreas cubanas". O avião foi efectivamente atacado, em 1976, atentado em que morreram 73 pessoas. Detido às ordens dos tribunais na Venezuela, Carriles conseguiu no entanto fugir, em 1985, para lugar incerto, para reaparecer como o inspirador dos atentados à bomba de Havana, em 1997, contra várias instalações turísticas, um dos quais matou um turista italiano, e da conjura para matar o Presidente cubano Fidel Castro, em 2000, durante a Cimeira Ibero-Americana do Panamá. Acusado de conspiração e condenado pela justiça panamiana, o bombista, realmente um agente da CIA, que serviu durante dez anos, voltaria de novo à liberdade, mas agora através de um indulto da ex-Presidente Mireya Moscoso. O perdão abrangeu três cúmplices. Em Abril terá entrado nos Estados Unidos e pedido asilo político, afirmam Havana e Caracas, que o quer julgar, o que Washington desmente. O vice-presidente venezuelano, Vicente Rangel, e o Presidente cubano, Fidel Castro, acusam o Governo americano de dar guarida a um terrorista e, com isso, entrar em contradição com a sua política contra o terrorismo.

2005-05-09

A morte de Hitler no Portugal de Salazar

Um artigo muito interessante de António Melo no Público de 2005-05-08:

A morte de Hitler vista por "O Século" ...

O fim da guerra foi relatado de forma muito diferente pelo "O Século", o maior diário da época e entusiástico apoiante do Estado Novo, e pelo "República", o pequeno vespertino que sempre procurou dar voz às oposições. A vitória das democracias abriu então um período de esperança, pois muitos julgaram que a derrota das potências do "Eixo" arrastaria a queda de Salazar. Enganaram-se. E se a vitória aliada foi celebrada nas ruas, se o regime foi obrigado a convovar eleições, o seu carácter repressivo não desapareceu: só em 1945, já depois do fim da guerra, foram mortos mais quatro oposicionistas, um anarquista que morreu no Tarrafal e três comunistas, um deles Alfredo Dinis, morto por uma brigada na PVDE na estrada de Bucelas.

Quando "O Século", na edição de 3 Maio 1945, quinta-feira, noticiou na primeira página a morte de Hitler, titulou-a assim: "Morrendo no seu porto o Führer deixa a garantia da eternidade ao povo alemão". Segue-se o obituário, elaborado a partir de um jornal do partido nazi, "Front Blatt", onde se diz que ao escolher o suicídio, "Hitler entra na História não apenas como herói, mas como mártir". A foto mostra um Hitler solene a cumprimentar o almirante Doenitz, com o título a enunciar um inventado programa do sucessor no Reich moribundo: "Continuo o combate ao bolchevismo e terei de lutar com a Inglaterra e a América enquanto me impedirem a execução deste propósito".

O assunto continua na página 4, onde em subtítulo final se dá conta das "Manifestações fúnebres em Portugal". Aí se relata que "por motivo do falecimento do chefe de Estado da Alemanha, nos edifícios públicos e nos quartéis a bandeira nacional foi içada ontem a meia adriça, mantendo-se assim até amanhã, às 12 h.". Em Coimbra, diz-se no parágrafo seguinte, "foi colocada a bandeira a meia haste na Torre da Universidade. Os sinos dobraram a finados". Maximino Correia era o reitor. A 4 de Maio, sempre na primeira página, o tema é a morte de Goebbels, que mereceu ao jornal uma longa biografia a ocupar metade da página a duas colunas, com continuado na página 2. O título é como uma homenagem: "[Morreu] O dr. José Goebbels que foi durante anos a voz oficial da Alemanha nazi". A peça termina com um subtítulo recordando "a morte de Hitler" e duas linhas secas que dizem que "a Suécia não apresentou quaisquer condolências à Alemanha pela morte de Hitler".

A Suécia, tal como Portugal, era um país neutro. Há uma mudança súbita na edição de sábado, dia 5, onde as expectativas triunfantes do Reich se afundam diante das forças aliadas: "A guerra no ocidente da Europa terminou ontem. Renderam-se às tropas de Montgomery as forças alemãs do Noroeste do Reich".

Apesar da dimensão da derrota, logo por baixo, sempre na primeira página, o jornal ainda pretende ver uma saída honrosa para o regime nazi: "Em presença da derrota os dirigentes alemães iniciam uma política que recorda a seguida depois da guerra de 1914". Em subtítulo surge uma derradeira esperança: "As tropas alemãs continuam a combater encarniçadamente na frente Leste". A fechar a notícia um desejo tomado por realidade: "A coesão moral do povo e do Exército mantêm-se".O tom patético de um fim senão feliz, pelo menos de uma hipotética reviravolta no destino dos vencidos, ainda faz o título de primeira página no domingo, ao sugerir uma ruptura entre as forças aliadas: "Em nome da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos Eden e Stettinius recusam-se a continuar a discussão do caso polaco por terem sido presos os 16 chefes políticos da Polónia que tinham ido conferenciar à Rússia".

A primeira página de segunda-feira, remando ainda contra ventos mas já sem força para deter as marés, faz manchete com uma nota oficiosa do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE): "O Governo português retira o reconhecimento aos representantes diplomáticos consulares e oficiais da Alemanha por ali não existir um poder central regular". Esta retorcida formulação, que só Salazar seria capaz de engendrar, é publicada "ipsis verbis" em todos os jornais, incluindo no "República", o que deixa entender haver uma directiva para que a Comissão de Censura estivesse vigilante quanto à sua publicação. O comunicado oficial terminava com um surpreendente subtítulo, a revelar uma acuidade noticiosa ímpar, pois anuncia as reacções da imprensa norte-americana e brasileira, que só poderiam ser conhecidas no dia seguinte devido à diferença horária.

Num despacho atribuído à UP (United Press), toda a imprensa portuguesa proclama em uníssono que "os jornais norte-americanos publicaram com grande relevo a notícia [do MNE]". Acrescentam que a imprensa brasileira também dela se fez eco. O terceiro e último parágrafo conclui com esta pérola: "Todos os jornais americanos e brasileiros são unânimes em acentuar que Portugal é o primeiro país neutro na Europa que tomou tal atitude, reconhecendo que o Governo nacional alemão deixou de existir". Sintomaticamente é apenas neste dia, 7 de Maio, que n" "O Século" se dá conta pela primeira vez da existência dos campos de concentração nazis, com uma larga referência ao relatório da comissão parlamentar britânica, que de 20 a 22 de Abril fizera o levantamento desse horror. Mereceu o seguinte título-legenda para foto a três colunas, inserida em baixo, na primeira página: "Nunca a degradação humana atingiu um nível tão baixo".Foi precisa a rendição incondicional do Reich para que na terça-feira, 8 de Maio, a primeira página se rendesse, também ela, em manchete garrafal à vitória aliada: "A Alemanha rendeu-se sem condições aos Exércitos aliados".

As manifestações populares de regozijo foram severamente censuradas e aparecem escondidas na página 2, entre a publicidade aos espectáculos teatrais, paginadas a duas colunas, sem foto, sem arranjo gráfico e sem rasgo: "Lisboa embandeirou e o entusiasmo sobretudo na Baixa assinalou-se por manifestações". O acontecimento, porém, assumiu tais dimensões que o jornal sentiu obrigação de voltar a ele nas "Últimas Notícias". Mas deu-lhe a volta e transformou as celebrações populares numa demonstração de apoio ao regime: "Durante a noite realizaram-se entusiásticas manifestações em honra das Nações Unidas e do sr. dr. Oliveira Salazar".

No dia seguinte, 9 de Maio, com mão de chumbo, regressou a normalidade. A primeira página ocupa-se apenas do discurso que Salazar fez na Assembleia Nacional celebrando a sua política durante a II Guerra. Na última página prossegue a descrição do horror dos campos de concentração nazis, com base no relato da comissão parlamentar britânica, desta vez o de Auschwitz: "3 500 000 mortos de Outubro de 1942 a Janeiro de 1945 no horrível campo de Auschwitz, pior do que os de Buchenwald e de [Bergen] Belsen" Gradualmente o noticiário sobre a II Guerra Mundial foi sendo relegado para segundo plano na primeira página n" "O Século", com uma excepção: as primeiras páginas das edições de 18 e 19 de Maio foram completamente dedicadas à manifestação de gratidão a Salazar, no Terreiro do Paço, por ter mantido Portugal neutral.