2007-11-11

NÃO FOI BEM ASSIM

Diz João Leal no MONDE diplomatique de Novembro de 2007 (Edição portuguesa) na página 21. acerca do livro FOI ASSIM de Zita Seabra.
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Agora que cessou o interesse mediático suscitado por Foi Assim (Alêtheia Editores, Lisboa 2007), vale a pena comentar e corrigir informações e juízos que o livro contém, designadamente em relação à União de Estudantes Comunistas (UEC), de que Zita Seabra foi dirigente. Estando ainda por fazer uma história da UEC, e dada a importância que esta organização autónoma do PCP teve no desenvolvimento do movimento estudantil português entre 1972 e 1980, parece-me de facto importante indicar os limites da particular versão da história da UEC transmitida no livro de Zita Seabra. Faço-o na minha qualidade de activista do movimento estudantil entre 1971 e 1979 e de militante e dirigente da UEC entre 1974 e 1980. Além do que a minha memória guardou, tive o cuidado de consultar outros ex-militantes e ex-dirigentes da UEC e de compulsar documentação vária.

O relato da história da UEC a que Zita Seabra procede em Foi Assim caracteriza-se, antes de mais, por algumas inexactidões factuais. Aponto de seguida algumas delas (que se referem apenas a situações que eu vivi directamente).

Assim, Zita Seabra afirma que, em 1972, «A UEC tinha praticamente uma só associação de estudantes, no ISCSPU. Nesta escola, quando Veiga Simão enviou os “gorilas” o director Adriano Moreira opôs-se e ameaçou demitir-se se eles entrassem, coisa que efectivamente fez» (p. 185). Nesta frase há duas inexactidões. Primeira: antes do 25 de Abril, a UEC não «tinha» a associação de estudantes do ISCSPU. Esta era composta por um conjunto diversificado de activistas estudantis de esquerda, nenhum dos quais era então militante da UEC. Segunda: Adriano Moreira não era director do ISCSPU aquando da introdução dos «gorilas» nesta escola. Quem introduziu os «gorilas» no ISCSPU foi o seu então director Vasco Fortuna. Quanto a Adriano Moreira, tinha sido afastado da direcção da escola na sequência da crise académica de 1969. Não pôde pois, «efectivamente», demitir-se de um cargo que já não ocupava.

Na página 191 de Foi Assim, Zita Seabra escreve, referenciando-se ao período imediatamente anterior ao 25 de Abril: «A pouco e pouco, começámos a ter bons quadros e o organismo dirigente era fantástico: Francisco Bettencourt, o Sérgio, a Geninha Varela Gomes que controlava os liceus, a Milá do ISCSPU e a Inês de Letras». Há aqui um erro de datação: tanto «a Milú do ISCSPU» como a «Inês de Letras» não pertenceram, nem poderiam ter pertencido, a nenhum organismo dirigente da UEC antes do 25 de Abril, uma vez que só aderiram à UEC em 1974.

Na página 245, Zita Seabra refere que, em 1974, aquando de um «ataque» da UEC ao Técnico, «alguns UECs ficaram gravemente feridos», Não é verdade: dois estudantes da UEC — eu próprio e uma militante do Técnico — foram de facto «capturados» por militantes maoistas e conduzidos a um anfiteatro do Técnico, onde se iniciou um «julgamento popular» que foi depois abandonado a meio. Houve empurrões, bofetadas, mas ninguém ficou «gravemente ferido».
Na página 255, Zita Seabra escreve, a propósito do Serviço Cívico Estudantil, que este teria vindo «Na sequência das campanhas de alfabetização do MFA». Também não é verdade: quem organizou as campanhas de alfabetização do Verão de 1974 não foi o MFA, mas a Comissão Pró-União Nacional dos Estudantes Portugueses (Pró-UNEP), «controlada» então pela UEC.

Mas, mais além destas incorrecções, o livro de Zita Seabra fornece uma versão da história da UEC entre 1976 e 1980 (metade da história da UEC) que não corresponde à realidade. De acordo com essa versão, em Agosto de 1977, na sequência do assassinato de Sita Vales em Angola, a UEC teria entrado em profunda crise e, pouco depois, teria desaparecido. Assim, nas páginas 314-315, Zita Seabra escreve que «Em silêncio ou com gritos abafados, a organização entrou em crise. [...] A maioria dos militantes e dos funcionários saiu nessa altura da organização».E antes na página 311, tinha já estabelecido um vínculo entre a morte da Sita Vales e o fim da UEC: «na sequência dessa tragédia», «muitos militantes saíram, abandonaram a organização […] Saíram militantes, dirigentes e funcionários, e a UEC acabou pouco depois».

Tenho o maior respeito pela memória da Sita Vales — com quem trabalhei directamente — e, entre os militantes mais «velhos» da UEC, que a tinham conhecido, o seu assassinato foi de facto experienciado com perplexidade e revolta. Mas, por um lado, essa situação foi vivida de forma mais contraditória do que é sugerido por Zita Seabra: nos dois lados do confronto em Angola havia ex-militantes da UEC. Por outro lado, por maior que continue a ser a minha revolta em relação ao assassinato da Sita Vales, não é possível estabelecer um nexo causal entre as reacções que este suscitou em muitos militantes da UEC e o fim da organização.

De facto, a UEC só acabou em Maio de 1980, quando foi criada a Juventude Comunista Portuguesa (JCP). E a história da UEC nos anos que antecedem o seu fim é diferente daquela que Zita Seabra conta no seu livro.

Em 1976, na sequência de numerosos erros políticos cometidos durante o PREC, a UEC tinha batido no fundo. Era uma organização desmoralizada, em que eram cada vez mais audíveis as vozes críticas em relação à direcção, com uma imagem de sectarismo muito vincada e uma influência reduzidíssima no movimento estudantil. Em consequência, no 2º. semestre de 1976, iniciou-se um processo de profunda autocrítica e reestruturação da linha política da organização, acompanhado de perto pela direcção do PCP. Esse processo foi secundado pela saída gradual de alguns dirigentes históricos da UEC, que atingiu o seu ponto culminante em Junho de 1977, com a eleição de um novo Secretariado da Comissão Central da UEC, onde passou a «pontificar» Joaquim Pina Moura, entretanto eleito membro suplente do Comité Central do PCP. Uma das dirigentes substituídas na altura foi justamente Zita Seabra, que, de resto, desde finais de 1976, perdera grande parte da sua influência na direcção da UEC, uma vez que esta tinha passado a ser acompanhada directamente por Jorge Araújo, da Comissão Política e do Secretariado do PCP.

No decurso do ano lectivo de 1976-77, graças tanto ao «refrescamento» da direcção da UEC como às consequências práticas do processo de auto-crítica encetado, a UEC começou a descolar do fundo. Essa descolagem foi particularmente significativa ao nível da chamada «influência de massas». Em Junho de 1977, 26 por cento do total de estudantes eleitos para as Assembleias de Representantes das escolas do ensino superior tinham sido eleitos em listas dinamizadas pela UEC e 12 Associações de Estudantes (AAEE) do ensino superior — num total de 33—eram agora influenciadas pela UEC. No ensino secundário, os números também eram expressivos: as listas organizadas pela UEC estavam representadas em 97 Conselhos Directivos e 50 — de um total de 119 AAEE — eram influenciadas pelos estudantes comunistas. De 1977 a 1980, a influência da UEC no movimento estudantil não cessou de crescer. De tal maneira que, em 1980, nas vésperas do Congresso de fundação da JCP, 21 em 42 AAEE do ensino superior eram influenciadas pela UEC, com destaque para Lisboa, onde a UEC detinha uma clara maioria, influenciando 15 em 22 AAEE. Também no final desse ano lectivo e ainda no ensino superior, 35 por cento dos estudantes eleitos para as Assembleias de Representantes tinham sido também eleitos em listas organizadas pela UEC. Para o ensino secundário há dados menos seguros, mas parece ter-se assistido a um crescimento idêntico da influência da UEC.

No chamado «plano orgânico» foi também de crescimento a nota dominante. Em 1978 — ano em que se realizou o 1° e único Congresso da UEC — era de cerca de 8000 o número de militantes da UEC, 2000 dos quais tinham aderido à UEC entre Setembro de 1977 e Janeiro de 1978. Nas vésperas do Congresso fundador da JCP, esse número tinha crescido para perto de 12 000 inscritos, máximo histórico com o qual a UEC pôs fim à sua existência.

Para escrever este texto falei com vários ex-militantes e ex-diligentes da UEC, alguns deles — como eu — sem qualquer vínculo actual com o PCP. Muitos deles não tinham lido Foi Assim e foram lê-lo. Muitos deles, também, sugeriram que «a Zita» tinha escrito o livro — na parte tocante à UEC — de má fé. Não creio que seja má fé. O escritor Mário de Carvalho — numa frase particularmente feliz — escreveu uma vez que há pessoas que confundem o «Manuel Germano com o Género Humano» (cito de cor). Penso que aconteceu isso com «a Zita»: confundiu a história da sua relação com a UEC com a história da UEC. É natural. Mas é também natural que quem não se reconheça nessa história apresente as razões porque o Género Humano não se reduz ao Manuel Germano.
• JOÃO LEAL

2007-11-05

A GRANDE NEGOCIAÇÃO COM O IRÃO

Shlomo Ben-Ami *

O espectro de uma bomba nuclear atemoriza árabes e israelitas sem distinção, mas são os Estados Unidos e Israel a força motriz por trás dos esforços para travar as ambições nucleares do Irão. O triângulo América-Irão-Israel é onde está a chave do problema e onde pode residir a sua solução.
Embora a revolução islâmica do ayatoilah Khomeini, em 1979, tenha desfeito a velha aliança de Israel com o Irão, os dois países continuaram a fazer negócios com a bênção americana. O caso Irão-Contras dos anos 1980, quando Israel fornecia anuas à República Islâmica na sua guerra com o Iraque, é um exemplo. Israel e o Irão, duas potências não-árabes num ambiente árabe hostil, partilhavam interesses fundamentais que a revolução islâmica não podia alterar.
Foi durante o governo de Yitzhak Rabin, no início dos anos 1990, que Israel e o Irão entraram em conflito aberto, devido a uma mudança de estratégica regional após a vitória da América na guerra do Golfo de 1991 e do colapso da União Soviética.
O processo de paz israelo-árabe patrocinado pelos EUA resultou numa série de extraordinários progressos - a Conferência de Paz de Madrid, os Acordos de Oslo, o tratado de paz de Israel com a Jordânia e a sua quase reaproximação à Síria, e ainda a entrada de Israel em Estados árabes, de Marrocos ao Qatar - que se tornaram no pior pesadelo de um Irão cada vez mais isolado.
Foi nesta encruzilhada que Israel e o Irão, duas potências aspirantes à supremacia num Médio Oriente em rápida mudança, decidiram colocar a sua competição estratégica em termos ideológicos. O conflito é agora entre Israel, um raio de democracia a lutar contra a expansão de um império obscurantista xiita, e um Irão que optou por proteger a sua revolução mobilizando as massas árabes em nome de valores islâmicos e contra os vis governantes que atraiçoaram os despojados palestinianos.
Mais um inimigo da reconciliação israelo-árabe do que propriamente de Israel, o recurso dos mullahs a um incendiário discurso antijudaico e pan-islâmico destina-se a pôr fim ao isolamento do Irão e a apresentar as suas ambições regionais de um modo atractivo às massas sunitas.
Num Médio Oriente árabe, o Irão é o inimigo natural; num mundo islâmico, o Irão é um potencial líder. Ironicamente, o Irão tem sido o principal apoiante da democracia árabe, porque a melhor maneira de prejudicar os actuais regimes é promover movimentos islamistas de base popular, como o Hezbollah no Líbano, a Irmandade Muçulmana no Egipto, o Hamas na Palestina e a maioria xiita no Iraque.
Yitzhak Rabia acreditava que a paz israelo-árabe poderia impedir um Irão nuclear, mas agora o seu pesadel6parece aproximar-se rapidamente. Como uma potência anti-statu quo, o Irão não procura capacidade nuclear para destruir Israel mas para ganhar prestígio e influência num ambiente hostil e como escudo no seu desafio à ordem mundial.
No entanto, Israel tem todas as razões para se inquietar porque um Irão nuclear vai destruir a promessa do sionismo de garantir um refúgio aos judeus o núcleo da própria estratégia israelita de “ambiguidade nuclear”
- e reforçará os seus inimigos por toda a região. Também provocaria uma incontrolável proliferação nuclear, com a Arábia Saudita e o Egipto a liderarem a corrida.
Um ataque militar às instalações nucleares do Irão é muito perigoso e os seus resultados incertos. E, por mais severas que sejam, as sanções económicas não farão o Irão ajoelhar-se. Também não é claro que a divisão na elite iraniana entre puristas revolucionários e aqueles com mentalidade de classe mercantil possa conduzir em breve a uma mudança de regime. Contudo, ser radical não significa, necessariamente, ser irracional, e o Irão revolucionário já deu frequentemente provas do seu pragmatismo.
Na equação americano-iraniana foram os Estados Unidos, não o Irão, a conduzir uma rígida diplomacia ideológica. O Irão apoiou os EUA durante a guerra do Golfo de 1991, mas ficou de fora da Conferência de Paz de Madrid. O Irão também apoiou a América na sua guerra para derrubar os taliban no Afeganistão. E quando as forças norte-americanas derrotaram o exército de Saddam Hussein na Primavera de 2003, os cercados iranianos propuseram uma grande negociação que colocaria todas os contenciosos na mesa, da questão nuclear a Israel, do Hezbollah ao Hamas. Os iranianos também prometeram deixar de obstruir o processo de paz israelo-árabe. Mas a intransigência dos neoconservadores - “Nós não falamos com o Diabo” - excluiu qualquer resposta pragmática à démarche iraniana.
O sentimento iraniano mudou quando toda a estratégia da América para o Médio Oriente naufragou, mas a grande negociação continua a ser a única saída viável para o impasse. Isto não se conseguirá, porém, através de um inevitável regime de imperfeitas sanções, ou pelo recurso da América à lógica da Guerra Fria com vista a quebrar a espinha do Irão arrastando-o para uma ruinosa corrida às armas.
A crescente influência regional do Irão não deriva das suas despesas militares, que são muito inferiores às dos seus inimigos, mas do seu desafio à América e a Israel através de um astuto uso de soft power.
Não há melhor maneira de esvaziar a estratégia regional do Irão de desestabilização do que uma ampla paz israelo-árabe acompanhada de maciços investimentos em desenvolvimento humano e seguida de um sistema internacional de paz e segurança num Médio Oriente livre de armas nucleares, incluindo Israel.
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* Ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel

PÚBLICO/Projectsyndicate
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