2006-11-30

Há perfídia no fecho da Caixa dos Jornalistas

É este o título da entrevista, na Pública de 26 de Novembro de 2006, a Maria Antónia Palla, sindicalista, 73 anos, presidente da Caixa de Previdência dos jornalistas. Texto de Adelino Gomes.



Por que é a Caixa de Previdência dos Jornalistas havia de continuar, quando se está a acabar com privilégios de outras classes profissionais?
Porque não a considero um privilégio.
Qual é o diferença em relação aos outros subsistemas de saúde de carácter profissional?
Não acho que os outros devam acabar. Há profissões que têm características específicas e que requerem regimes especiais para que se estabeleça de facto uma igualdade no acesso dessas pessoas à saúde. Estou é contra a maneira como alguns desses regimes estão organizados. Inclusivamente o da Caixa dos Jornalistas. Sempre temos chamado a atenção para a necessidade de a legislação não permitir que beneficiem deste sistema pessoas que não fazem do jornalismo a sua actividade permanente e remunerada.
Há um Serviço Nacional de Saúde (SNS). Por que é que os portugueses hão-de pagar situações de excepção para certas classes profissionais?
Apoio o SNS. Mas ele não consegue responder a todas as pessoas. A prova é que o próprio Estado tem convénios com entidades privadas. O desaparecimento da Caixa dos Jornalistas não vai ajudar nada. Este sistema, aliás consagrado na lei antes do 25 de Abril, assenta na livre escolha de cuidados de saúde. É o que melhor se adapta às características de uma profissão sem horários, continuamente envolvida na marcação de serviços, incompatíveis com a O marcação rígida de consultas, por exemplo.
Os jornalistas reivindicam, com razão, o direito à crítica aos privilégios. Como podem querer uma excepção para eles próprios?
Não querem uma excepção para eles. Eu apoio a luta dos polícias pela manutenção do
seu sistema de saúde. Ser polícia não é o mesmo que ser sapateiro. Ser jornalista também não é o mesmo que ser caixeiro.
E ser pobre? Os pobres, os velhos, os que não têm ninguém que os defenda, esses podem ser sujeitos às demoras, à desumanidade, à arbitrariedade na saúde?
Isso é um chavão. Podia dizer alguma coisa, até por experiência familiar, sobre os velhos e a sua relação especial com os cuidados de saúde. Não é comparável. Em 1986 a Caixa dos Jorna listas aceitou a sua integração no regime geral da Previdência “sem prejuízo da manutenção do esquema de prestações médico-sociais que vem sendo praticado pela Caixa”. O acordo assinado nessa altura diz que o esquema da Caixa dos Jornalistas continuaria a ser usufruído como até aí e as condições de prestação seriam mantidas “a fim de assegurar a eficácia e a capacidade de resposta” que até então tinham sido “proporcionadas aos utentes”. Isto custa muito.
Neste momento quanto é que o Estado gasta com o sistema de saúde dos jornalistas?
385 euros por pessoa/ano. Um terço daquilo que Serviço Nacional de Saúde (SNS) gasta, em média, por pessoa/ano.
Haverá outros sectores da população que custam também menos do que a média.
A verdade é que este Governo tem atendido a reivindicações de certos sectores. Na reunião que tivemos, finalmente, esta semana, com o Secretário de Estado da Saúde [Francisco Ramos] perguntámos-lhe, a título de exemplo, por que é que tinha sido mantida a comparticipação aos SAMS [ de saúde dos bancários].
Ele deu esta resposta extraordinária: “Porque eles pagam impostos”. E nós, não pagamos?
Quer dizer que o Estado não vai poupar dinheiro com esta medida?
Não. O Secretário de Estado disse-nos isso mesmo: “Isto não é uma questão financeira”. Ora, acho que não estamos em tempos de tomar medidas destas por ideologia.
Toda a gente está de acordo com a necessidade de reformas, assim nunca mais se fazem.
Faziam, se eles tivessem em conta aquilo que lhes propusemos.
O quê?
Primeiro, avaliação dos desvios e abusos na concessão de benefícios (falsos jornalistas, cônjuges cobertos pelo SNS, etc.) e elaboração de um regulamento de acesso aos benefícios do subsistema de saúde dos jornalistas, a homologar pelo Governo — poupava-se muito, garanto. E ainda: introdução de mecanismos de verdade contributiva, implicando jornalistas e empresas; articulação com organismos de inspecção (Segurança Social, Trabalho e Fisco) no combate à evasão retributiva e com a Comissão da Carteira quanto à “verdade profissional”; revisão do diploma sobre baixas por doença.
O que é que sente neste momento uma profissional que dedicou cerca de duas dezenas de anos a funções quer na direcção sindical quer na Caixa de Previdência?
Muita amargura. Estamos numa fase de grande retrocesso. Eu até simpatizava com o Correia de Campos. Concordo até com algumas medidas que ele tomou. Acho é que isto foi tudo a monte. Sem negociar.
Toda a gente criticava o excesso de diálogo e a falta de capacidade de decisão de António Guterres...
O princípio negocial é fundamental, não podemos abdicar dele. É o que mais me ofende nisto tudo. E acho que aqui houve uma grande perfídia.
Uma profissão como a de jornalista, que quer ser independente para ter a liberdade de criticar todos os poderes, devia ter o cuidado de não ter regimes especiais.
Todos os jornalistas que defendem essa posição têm, como vocês, no PÚBLICO um seguro de saúde [ pela empresa]. Odeio as seguradoras. Acho que é uma falsidade aquilo que eles estão a prometer-vos. À primeira doença séria que vocês tenham, põem-vos na rua. Os governos passam, é verdade. Mas em todo o caso eu preferiria negociar com o Estado. Mas numa base séria. É pouco sério o que estão a fazer connosco. Nem sequer querem dar a cara.
Não percebo.
O que era normal era que o Ministério da Saúde nos tivesse chamado. Não o fez. Não se faz isto num mês. Parece aquela coisa de “quebrar a espinha à Intersindical”. Expressão odiosa, que não se pensa nem se diz. Temos que ter respeito pelos outros, ou então isto não é uma democracia. Não é normal que até hoje eu não tenha recebido um papel [ do Ministério]. Foi por muita insistência que conseguimos chegar à fala com o Secretário de Estado. É muito estranho, por outro lado, que o dr. Correia de Campos, que fez a revisão da nossa tabela introduzindo-lhe a última palavra em matéria de diagnóstico, etc., passado quatro anos, acabe com tudo, achando que afinal tudo tem que ser igual.
Igual, é uma palavra estimável.
Igual, isto não é. Ele está a tratar com pessoas que podiam ter feito um seguro e não
fizeram porque confiaram no Estado. Há aí uma falsa ideia de igualdade. Esta para se cumprir tem que implicar o respeito pela diferença.
E os portugueses iam sentir que há uns mais iguais do que outros...
Entre quem tem possibilidade de fazer um seguro de saúde e os que são apanhados nesta vaga, qual é a igualdade? Qual é a igualdade para um indivíduo que está a ser tratado neste momento e vai no dia 31 de Dezembro passar para o sistema geral? Perguntei a psicólogos, a psicanalistas. Todos confirmam que há um fenómeno de fidelização que tem que ser considerado. Na minha concepção de socialismo...
Há socialismo em Portugal?
Há um Governo que se diz socialista. Não posso aceitar que se tomem medidas que não
tenham em conta as particularidades das pessoas e nomeadamente dos mais velhos, dos doentes, daqueles que têm doenças crónicas, O que irá acontecer, por exemplo, a quem esteja a fazer quimioterapia e este tratamento fique a meio com esta medida? O Secretário de Estado não tinha pensado nisso.
Isso seria uma crueldade, realmente. mas é o mais fácil de resolver.
Ele mostrou-se sensível a isso. Mas é uma crueldade também com os outros doentes, fidelizados aos seus médicos. O SNS não dá resposta. O [ jornalista] Augusto Abelaira durou mais dois anos porque foi possível, através da Caixa, ele ir fazer quimioterapia na Cuf Descobertas.
Há também nisto tudo uma grande desilusão com o PS?
Os meus grandes valores são a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. Agora, não concordo com esta maneira de exercer a fraternidade, porque para mim a fraternidade é outra coisa. Foi a minha noção de fraternidade que me levou a estar na luta pelos direitos das mulheres; a que me levou a tomar o partido das pessoas que nas ex-colónias foram vendidas às ditaduras quando elas aspiravam à independência e à liberdade. Tenho muito respeito por quem criou a Caixa de Jornalistas, há 60 anos. Não sei se eram fascistas ou não, mas enquanto Presidente da Caixa, que aceitei ir ressuscitar, não posso assistir ao seu enterro e lutarei para que ela sobreviva.
Estas medidas, à partida e em teoria, pelo menos, assentam na ideia da Solidariedade.
Pelo contrário. Esta é uma medida autocrática e que nos remete para tempos que eu nem gostava de lembrar. Não se pode denunciar um contrato sem falar com a outra parte. E ver como é que se pode resolver aquele assunto. Nós fizemos um estudo, em 2000, que demonstrou que os nossos descontos pagavam o nosso subsistema e sobravam 3 milhões de contos (15 milhões de euros) para a Segurança Social.
Há um carácter simbólico nesta medida. Como é que a opinião pública portuguesa poderia aceitar reformas se se mantivessem estas excepções?
Não é pelo facto de haver tantos desempregados que nos vamos agora desempregar todos. Aliás, eu sou completamente contra esta filosofia que chama às pensões de reforma, pensões de velhice, quando por outro lado quer que as pessoas trabalhem até aos 70 anos; e sou completamente contra esta teoria de que os velhos têm que ser pobres, Por que é que não fazem ao contrário? Por que é que não começam por melhorar o Serviço Nacional de Saúde? O país lucraria se o Governo tivesse a coragem de tabelar os médicos. Na Bélgica eu chamo um médico a casa e pago oito contos [euros], se for ao fim-de-semana e depois das oito horas da noite. E se for a casa do médico ou ao consultório pago quatro contos. Por que é que o Governo não actua sobre os médicos e vai actuar sobre os utentes? •

2006-11-22

"O SONHO DELES"

Artigo de Rui Ramos, no Público de 2006-11-22:

"O livro de Santana Lopes sobre a “crise de 2004” merece ser lido. A imprensa
limitou-se a tratá-lo como urna simples fonte de indiscrições e um pretexto para piadas Todos parecem muito satisfeitos com a teoria de que Santana foi um caso isolado de incompetência e irresponsabilidade, e como tal uma aberração singular e passageira da política portuguesa. Imagino que isto não desagrade totalmente ao próprio. Encaixa, de algum modo, na sua tese de que é uni político diferente, destinado a estragar os arranjos dos outros. Ora, o livro lembra outra coisa: que o “populista”, a quem os sábios de serviço fizeram o favor de promover a perigoso condutor de multidões “anti-sistémicas”, era de facto um velho insider do regime, fechado no mundo dos acordos e intrigas da classe política estabelecida, de que dependia totalmente.
Em 2004, a força política do presidente da Câmara de Lisboa derivava menos de uma qualquer base eleitoral do que de um acordo de amigos, que fazia dele o muro de lamentações do Governo. Santana não estava identificado com as políticas de Barroso. Pelo contrário. Mas estava identificado com a estratégia pessoal de Barroso. O pacto entre eles assentava nisto: Santana só podia querer o que Barroso não quisesse. Era a política reduzida ao pessoalismo mais básico.
Subitamente, Barroso deixou de querer ser primeiro-ministro. Santana passou. então a poder querer ser primeiro-ministro E por isso não quis eleições antecipadas. Ora, a alternativa a eleições era pôr-se nas mãos do Presidente da República. Foi Santana que, de facto, começou a “presidencialização” do regime, de que agora acusa Jorge Sampaio. Não foi ingénuo Calculou que Sampaio nunca pudesse tirar todas as consequências da situação. Para subir ao poder Santana dependeu da chantagem patriótica de Barroso. Para continuar, apostou em duas coisas: no medo de Sampaio ao “precedente” constitucional e no fim da “crise”. Santana, note-se, partilhava as reservas do Presidente em relação à política financeira do Governo. Ora, para sua grande danação, não foram as circunstâncias do país que mudaram, mas Sampaio, que passou a falar como se estivesse possesso pelo fantasma de Ferreira Leite. O medo da “crise”prevaleceu sobre o medo ao “precedente”.
Tal como Manuel Maria Carrilho, Santana atribui o fracasso a uma cabala dos seus inimigos. Um e outro acreditam que o eleitorado é, através da engenharia mediática, um mero reflexo de intrigas de bastidores. Mas se isso é verdade, também a sua vitória teria sido o resultado de uma cabala — a dos seus amigos.
Que género de político é, então, Santana Lopes? Num ensaio publicado em 1989, argumentou que o líder do PSD teria de ser um líder “carismático e populista”, como Sá Carneiro. Conseguiu assim enganar os seus rivais, que se convenceram de que, se ele dizia isso, é porque talvez fosse “carismático e populista”. No livro, Santana evoca o “sonho de Sá Carneiro”: “Uma maioria, um Governo, um Presidente.” É verdade que Sá Carneiro pediu isso. Mas o sonho não era esse. Esse era o meio para lá chegar. O sonho era uma democracia assente numa sociedade civil farte e não na tutela de uma vanguarda fardada de iluminados. Leia-se o manifesto da AD de 1980: “Não há liberdade política sem um amplo espaço de liberdade social e económica.” Foi através deste “sonho” que uma liderança política se encontrou com o país e descobriu a força que, enquanto apostou em manobras palacianas, nunca tinha tido. Em 1980, Sá Carneiro não tentou segurar-se no poder agarrando-se a Eanes, mas propondo um futuro diferente ao eleitorado. O contraste não podia ser maior.
Na primeira página do livro, ficamos a saber que Santana já tinha, aos 25 anos, uma certa importância política. Páginas adiante, mostra-se a si próprio e a Barroso, muito jovens e sonhadores, a partilharem antecipadamente entre os dois as regedorias do regime. Ungidos por uma aproximação precoce ao poder, propiciada pela revolução de 1974, pertencem a um pequeno grupo desde sempre convencido de que o poder em Portugal seria distribuído em função das relações de força entre eles. Tornaram-se exímios na criação de “percepções” e “factos políticos”. Tornaram-se também um pouco paranóicos (por exemplo, Barroso e Santana evitavam falar de política ao telefone). Quanto ao povo, esperaram que, à porta do palácio, lhes fosse admirando a esperteza e a sorte, enquanto roía os sobejos do Estado social.
Eis os políticos que temos. Não formam, de facto, uma classe política democrática, mas uma “camarilha” digna de qualquer corte absolutista do século XVIII . Têm muitos sonhos: Mas nós — os eleitores — não fazemos parte desses sonhos.
• HISTORIADOR"

2006-11-20

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