2015-08-21

Bento de Jesus Caraça, um homem que abençoava as ilusões

Intervenção de Helena Neves 

na Iniciativa do Movimento Não Apaguem a Memória - NAM em parceria com campOvivo, em 5 de Janeiro de 2015, na Padaria do Povo, onde funcionou a Universidade Popular entre 1919 e 1948

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Há cem anos, nasceu uma criança do sexo masculino que, diriam mais tarde as velhas mulheres, parecia fadada por uma estrela. Estrela, sem dúvida, contraditória. Porque, se cedo se evidenciou que a sua sorte seria diversa daquela a que a origem social o destinava, e a sua vida se afirmou, desde a infância, como conquista de espaços cada vez mais amplos, o seu tempo seria breve. Ao morrer, 47 anos depois, o adulto que foi esse menino diria, segundo testemunho do sobrinho, «tão pouco tempo...» Tempo breve mas intenso. Marcando a sua época. E a nossa ainda.
 Falamos de Bento de Jesus Caraça, filho de trabalhadores rurais, nascido a 18 de Abril de 1901, em Vila Viçosa.
A morte tocou-lhe à nascença. Conta a irmã, mais nova, Filomena Caraça, que a mãe, aflita, vendo o menino a finar-se, correu à igreja a baptizá-lo, sem pensar sequer que nome pôr-lhe. Acudiu-lhe o padre, sugerindo Bento de Jesus. Mais tarde, Bento Caraça ironizará em resposta a uma crítica ao seu trabalho em O Diabo, jornal da frente intelectual mais radicalmente oposicionista e plataforma do movimento neo-realista. «Um articulista de Beja descobriu numa hora de ócio que há uma quase contradição entre o meu nome tão católico (sic) e o meu ingresso nas hostes diabólicas (re-sic). Que quer amigo? Fui baptizado à pressa e com um escasso mês de idade. Razões por que se julgaram dispensados de me consultar...»
Levado aos dois meses, pelos pais, para a Aldeia de Montoito, no Redondo, onde o pai é feitor da Herdade da Casa Branca, dá aí os primeiros passos e conhece, com pouco mais de 4 anos, as primeiras letras ensinadas por um trabalhador errante, desses que sazonalmente chegavam ao Alentejo, este trazendo, no pouco de seu, uma cartilha  escolar. Impressionada com a inteligência do menino, a senhora da herdade, D. Jerónima, torna-se «sua protectora»: assim assinará as cartas e postais que lhe escreve, até morrer, para os diferentes lugares para onde o envia a aprender a ser diferente: um homem culto.
 É neste percurso protegido que Bento Caraça passa pelo Liceu Sá da Bandeira, em Santarém, e, em 1915, se encontra no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa, espaço de descoberta de amigos, como Luís Dias Amado, tornado quase irmão, e Carlos Botelho, pintor da cidade e dos seus entardeceres; espaço de encontro com o amor através de Maria Octávia, filha do professor de matemática, Adolfo Sena; e limiar de um combate em que política e cultura constituem uma mesma matriz..
Em 1918, Bento Caraça termina com distinção o curso liceal e entra no Instituto Superior do Comércio, designação ao tempo do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, actualmente Instituto Superior de Economia e Gestão. Em Fevereiro de 1919, no segundo ano do curso de Economia, escreverá numa folha de papel que encontramos no seu espólio: «hei-de ser o primeiro aluno do meu curso». Sê-lo-á. Nesse mesmo ano, o professor Mira Fernandes, insigne matemático, recomenda a sua nomeação como 2º assistente temporário do Instituto para as cadeiras de Álgebra Superior e Geometria Analítica, 1º grupo. . Licencia-se em Outubro de 1923 com «bom com distinção», em 1924 passa a 1º assistente, em 1926 entra para a Comissão de Redacção da Revista de Economia, em 1927 é nomeado professor extraordinário e em 1929 é professor catedrático. A sua carreira revela-se fulgurante.
Com ele e através dele, a matemática torna-se um universo diferente, fascinante. Quer pelo seu estilo pedagógico, quer pela paixão que imprime e comunica na divulgação da matemática. Sucede algo de inusitado no Instituto. Alunos de outras turmas, de outras faculdades, de outro âmbito escolar, até de ciências humanas, afluem às suas aulas. As aulas inaugurais de início do ano escolar tornam-se um acontecimento cultural, um ritual de passagem. Este professor que transforma o olhar sobre uma matéria até considerada inóspita, este homem que vê no rosto dos alunos o estado de ânimo e os interpela pessoalmente, os consola e aconselha, este homem irónico e meigo, é, porém, extremamente rigoroso, exigente. Os alunos parodiam as iniciais do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras: «Isto sem o Caraça era fácil».
Como estudioso e divulgador, Bento Caraça introduz uma ruptura fundamental. Na sua obra, atrás do número, das figuras geométricas, das equações, é todo o tempo humano que pulsa, a respiração do social, as contradições de classes, a ansiedade e a luta dos homens fazendo-se no acto de fazer a história e as ciências. Praxis social e matemática cruzam-se dialecticamente. A renovação pedagógica e epistemológica do livro Os Conceitos Fundamentais da Matemática, editado em 1941, ofusca outras obras de Bento Caraça no mesmo domínio. É o caso de Lições de Álgebra e Análise, cuja publicação, em 1935, marca, segundo o professor Sebastião e Silva, «uma presença na história do ensino da matemática em Portugal». Este paradigma novo, que recupera a historicidade da produção científica, transparece no domínio da econometria que Bento Caraça introduz na investigação académica. Em consequência, cria, em 1938, com Mira Fernandes e Caetano Beirão da Veiga, o Centro de Estudos Matemáticos aplicados à Economia. Impulsionará, também, o Movimento Matemático que, entre 1937 e 1947, congregará matemáticos, físicos e químicos, numa linha de investigação inovadora, criativa, em consonância com a investigação internacional. Caraça encontra-se também entre os primeiros académicos que constituem, em 1940, a Sociedade Portuguesa de Matemática, cuja comissão Pedagógica dirige. Na Sociedade encontra-se entre os fundadores da Gazeta da Matemática, e participa nos congressos da associação Luso espanhola para o Progresso das Ciências, em 1941, no Porto, e, em 1944, em Cordoba.
Se na matemática Bento de Jesus Caraça opera um corte epistemológico transversal a todo o domínio científico, no plano cultural constituirá, como salienta Eduardo Lourenço, uma referência constante na sua própria geração e na que se lhe sucede. Quando dizemos «obra», significamos não apenas a vasta produção teórica, mas as práticas que protagoniza e incentiva. O que se trata é de praxis revolucionária, uma praxis em que combate cultural e político coincidem, no puro sentido do jovem Marx, filosofia, cultura, comprometidas na mudança do mundo.
Para o grupo social dos intelectuais de esquerda, dos anos trinta e quarenta, num leque vasto que vai de republicanos, mais ou menos radicais, seareiros, a marxistas, as armas da crítica têm um alvo político directo, a ditadura salazarista. Se divergem ideologicamente e se opõem, frequentemente, na concepção táctica e estratégica, o seu alvo é o mesmo: o derrube do auto-designado «Estado Novo». Toda a inteligência oposicionista esgrime contra a situação de miséria social e cultural, para cuja mudança a cultura é tão mais fundamental quanto o salazarismo investiu ideologicamente no obscurantismo, nomeadamente por via da «Escola, oficina de almas», e, de forma mais refinada, da «Política do Espirito» que, sob o impulso inteligente de António Ferro, mobilizou mesmo alguns intelectuais não fascistas.
É pois num contexto de condicionamento cultural, fortemente repressivo, agindo nas consciências e nos actos pela censura e pela interdição das liberdades de reunião e de associação, que Bento de Jesus Caraça sobressai num grupo de outros importantes combatentes. A sua concepção de cultura «como despertar das almas», de «aquisição da cultura» como significando «a conquista da liberdade» afirma-se na série de conferências e escritos (mesmo os matemáticos), nos artigos que publica no Globo, jornal efémero que, a 11 de Novembro de 1933, funda e  dirige com José Rodrigues Miguéis, no Liberdade, em O Diabo , na Seara Nova  e noutros órgãos de intervenção. Mas não somente. Toda a sua vida quotidiana é de empenho cultural e político. Na Universidade Popular Portuguesa, cujos corpos gerentes integra, desde a fundação em 1919, e a que preside, desde 1928 até à morte, Bento Caraça imprime um debate de ideias, uma perspectiva de cultura como impulso para a mudança, que tornam este espaço uma vanguarda de divulgação literária, artística e científica, cuja dimensão, em termos nacionais mas também internacionais, está ainda por ser devidamente estudada.
. No mesmo sentido, funda a Biblioteca Cosmos, com Manuel Rodrigues de Oliveira, que dirige desde 1941 até à morte. Uma Biblioteca que pretende ser, como escreve ao apresentar a colecção, «uma pequena pedra» para «toda uma vida nova a construir dominada por um humanismo novo». Em torno deste programa, Bento Caraça congrega intelectuais num espectro muito amplo de pertenças e referências do pensamento da época, muitos deles já colaboradores da Universidade Popular. O projecto gráfico é do amigo Carlos Botelho. Considerada já a primeira enciclopédia portuguesa, anterior à colecção francesa «Que sais-je?», a Biblioteca Cosmos, produção de transdisciplinaridade, no sentido conceptual contemporâneo, contará com a colaboração, entre outros, de Adolfo Casais Monteiro, Adriano Gusmão, António Sérgio, António da Silveira, Diogo de Macedo, escultor, José Gomes Ferreira, Luís Navarro Soeiro, Manuel Peres, Mário Dionísio, Mário Neves, Orlando Ribeiro, Paulo Quintela, Ruy Luís Gomes, Vitorino Magalhães Godinho. Publicam aqui os primeiros livros, Rómulo de Carvalho, Agostinho da Silva, Irene Lisboa, Luís de Freitas Branco, Fernando Lopes Graça, Manuel Mendes, Maria Silva, Alberto Candeias, Flausino Torres, Eugénio Conceição Silva, Ramiro da Fonseca. Até 1948, ano da morte de Caraça, a Cosmos publica 145 volumes, correspondendo a 114 títulos, com uma tiragem global de 793 500 exemplares.

Mesmo quando a intervenção de Bento Caraça se assume numa vertente mais situada politicamente, é ainda e sempre o «despertar das almas» que o move. Porque, como acentua em diversas fórmulas, as revoluções pressupõem uma consciência necessária à sua sustentabilidade.
            Destacando-se no empenho pelo frentismo político, Bento Caraça funda a Liga contra a Guerra e o Fascismo, é um activista no apoio aos presos nos campos de concentração nazis e aos refugiados, colabora na Frente Popular, surge como um dos  mais estacados fundadores do MUNAF, Movimento de Unidade Nacional Antifascista, em 1942, e do MUD, Movimento de Unidade Democrática, em 1945, de cuja comissão central será vice-presidente. Por este envolvimento, no qual produz importantes documentos de análise política, será preso várias vezes e demitido das funções de docência a 8 de Outubro de 1946, sob a acusação de ter assinado um documento contra a admissão de Portugal na NATO, tal como o professor Mário de Azevedo Gomes, co-autor do documento e presidente da comissão central do MUD.
É já então casado com a segunda mulher, Cândida Gaspar, a aluna que o levou a abandonar a longa viuvez do breve casamento com Maria Octávia, que durara menos de um ano. Com Cândida, que lhe devolve a paixão e a ternura, será também breve a vida. Ele sabe-o. A doença cardíaca, já de longa data, agravava-se. Por isso o olhar de profunda ternura com que segue os primeiros passos vacilantes de João, o seu filho, é um olhar pleno de nostalgia. Nostalgia do futuro. E nas últimas fotografias antes da morte, a 25 de Julho de 1948, Bento Caraça devolve-nos o sorriso magoado dos que sabem que vão morrer.
Deixará uma obra invulgar. E uma invulgar saudade. Porque muitos foram os que o amaram nesse tempo de cruzamento de cumplicidades, de militâncias e de amizades. E mais ainda os que o admiraram.
No seu enterro, a 27 de Julho de 1948, uma impressionante multidão, num impressionante silêncio, vai pelas ruas de Lisboa, de Campo de Ourique ao Cemitério dos Prazeres. Agentes da polícia política enquadram a multidão, infiltram-se nela à espera da quebra do silêncio que não sucede, e, intimidatoriamente, filmam todo o funeral, nas ruas e no cemitério. Um cortejo simbólico, uma quase coreografia, imaginada pelo amigo Fernando Piteira Santos, as jovens e os jovens,  em bloco, as mãos densas de flores. Afirmando a continuidade na ilusão do mundo que Bento Caraça procurou no seu empenho cultural e político.
Como ele escrevera em 1939, na Seara Nova, «as ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há de melhor na vida dos homens e dos povos. (...) Benditas as ilusões, a adesão firme e total a qualquer coisa de grande, que nos ultrapassa e nos requer. Sem ilusão nada de sublime teria sido realizado, nem a Catedral de Estrasburgo, nem as sinfonias de Beethoven. Nem a obra imortal de Galileu.»  

Universidade Popular Portuguesa: passado e futuro

Artigo do Prof. do IST (aposentado) Paulo Almeida.

Universidade Popular Portuguesa:
passado e futuro

1. O passado

A instrução popular era assim caracterizada por Alexandre Herculano no século XIX: Entendemos por educação e instrução popular a cultivação do espírito, e não o ensino das artes fabris ou mecânicas, a que muita gente dá aquele nome. Negar o aperfeiçoamento intelectual aos homens, deixá-los na bruteza e na ignorância, é um acto imoral, um menoscabo de deveres sagrados, e, por consequência, um crime[4].

Nesta linha de instrução popular surgiram várias agremiações de que é justo destacar a “Voz do Operário”, nascida em Lisboa em 1883 e a Academia de Estudos Livres, também em Lisboa, em 1889.
Com a instauração da República e o seu programa de enaltecimento da cidadania viriam logo a surgir inúmeras iniciativas imbuídas do mesmo espírito generoso, algumas delas reivindicando para si uma ideia de Universidade. Foi o caso da Universidade Livre, criada em 1911 graças sobretudo a Alexandre Ferreira (1887 –1950) (pro…ssional de seguros e pai do poeta José Gomes Ferreira)[3].

No âmbito das actividades da Universidade Livre, foram proferidas semanalmente muitas palestras, logo publicadas, contando com colaborações diversi…cadas: Agostinho Fortes, Ruy Telles Palhinha, Almeida Lima, António dos Reis Silva Barbosa, Balthazar Ozorio, Arthur Ricardo Jorge, etc.; eis alguns títulos: “O Homem antes da civilisação”, “O Homem como ser animal”, “O que é e para que serve a Physica”,
“O objecto da Biologia”, “Prólogo à Zoologia”, “Introdução ao estudo das Plantas”, etc. Cabe perguntar se hoje em dia, com todas as facilidades de edição do começo do século XXI seria possível uma tal realização.
Um pouco mais tarde aparece a Universidade Popular do Porto (julgo que em
1918), sob o patrocínio da Renascença Portuguesa e em 1919 foi fundada em Lisboa a
Universidade Popular Portuguesa (UPP), por iniciativa de António Augusto Ferreira
de Macedo (1887 – 1959)[7], seguida ainda pela Universidade Popular de Setúbal,
onde Bento de Jesus Caraça (1901 –48) viria a fazer uma uma palestra em 1931,
intitulada “As Universidades Populares e a Cultura”[2].

Na “Padaria do Povo”, em Campo de Ourique, teve a UPP a sua “sessão
inaugural com a presença do Chefe do Estado e do Ministro da Instrução, cabendo
a leitura do discurso de abertura a Pedro José da Cunha, reitor da Universidade de
Lisboa”[8], o que por si só aquilata quer do prestígio que inspiravam os colaboradores
da UPP, quer da qualidade das pessoas à frente daquelas três instituições. Na UPP
viriam a colaborar, palestrando, alguns dos maiores nomes da cultura portuguesa
da época; para só citar alguns: António Sérgio, Jaime Cortesão, Rodrigues Lapa,
Raul Proença, Mira Fernandes, Faria de Vasconcelos, Agostinho da Silva, Vieira de
Almeida, Cirilo Soares, Moisés Amzalak, Leite de Vasconcelos, Mendes Correia, Virgí-
nia de Castro Almeida, Aurélio Quintanilha, Azeredo Perdigão e dezenas de outros;
Bento de Jesus Caraça destinaria à Universidade Popular Portuguesa, em 1933, a sua
mais famosa conferência: “A Cultura Integral do Indivíduo”.
Constituiu a UPP um lugar de tolerância e construtiva controvérsia como convém
naturalmente a uma Universidade e a essas características não será alheio o facto de
contar no seu Conselho Administrativo um variado e equilibrado espectro de personal-
idades — professores, operários, tipógrafos — entre elas o então jovem Bento de Jesus
Caraça, cuja amizade com Ferreira de Macedo se …tornaria então defi…nitiva. Foi porém a partir de 1928 que Bento de Jesus Caraça daria novo vigor à UPP, fixando na já referida palestra feita em Setúbal as balizas da Universidade Popular Portuguesa:

O seu ensino não deve cristalizar em certas fórmulas, se isso acontecer, tornar-se-ão obstáculos ao progresso. Devem constituir, por assim dizer, a vanguarda do ensino e a sua acção, sem contrariar a da Escola, deve ser complemento dela.
A sua utilidade e justi…cação da sua existência está nas possibilidades de
libertação espiritual que der às massas trabalhadoras.
Às organizações sindicais cabe um papel enorme nesse trabalho de liber-
tação, promovendo intensamente a cultura dos seus membros.
A emancipação futura da humanidade será o resultado da união de todos
os esforços individuais e colectivos orientados pelos mesmos ideais.
Naturalmente que a questão da de…nição dos objectivos e características de uma
Universidade Popular foi na época assunto de inúmeros debates ou não fosse “a edu-
cação do povo uma dessas ideias que constantemente são so…smadas e atraiçoadas”
como bem disse Ferreira de Macedo numa das muitas conferências que dedicou ao as-
sunto, de que destacamos duas: uma, sobre a “A Educação Moral dos Trabalhadores”[5],
em que se historiavam as Universidades Populares, seria proferida na Universidade
Livre, animada pelo seu amigo Alexandre Ferreira; outra, donde retirámos aquela
citação, intitulada “A Educação do Povo”[6] não viria a ser proferida na Sociedade
“Voz do Operário”, em 1945, adivinhe o leitor porquê...
O texto desta última palestra, condimentado pelo tempo, é elucidativo do ideal de
Ferreira de Macedo:
Tudo se pode resumir no seguinte: temos que forjar uma nova humanidade,
e o novo homem, o homem de amanhã, não será apenas o animal humano,
belo e são, a quem uma nova orgânica social assegurará uma vida mate-
rial segura e desafogada, livre …nalmente de toda a opressão económica e
política; será também — será sobretudo — um ser moral e social que tem
a consciência do que é, e do que signi…ca na vida universal (tanto quanto
o permita o estado da Ciência e da Filoso…a) um ser com entusiasmo e fé
no progresso da comunidade, e a vontade e a capacidade de lutar por esse
progresso. Eis aqui, sinteticamente expresso, o meu ideal de educação do
povo.
Na sociedade em que vivemos, dominada pelo dinheiro, parece-nos pelo menos
idílica esta visão, mas por aí mesmo aferiremos a imensidão do que nos falta fazer;
por outro lado e infelizmente soam-nos actualíssimas estas palavras ainda cheias de
futuro:
[...]todo o ensino o…cial no nosso país está viciado, de alto a baixo. Falta-
lhe um ideal, falta-lhe um ambiente, falta-lhe uma organização cientí…ca
e harmónica com as necessidades actuais. Mas não é desse ensino que
tenho de tratar aqui. O que desejo frisar é que o ensino do povo, como eu
o concebo, será inteiramente e profundamente diferente do actual ensino
o…cial[...]

Naturalmente que para levar avante o seu projecto reivindica Ferreira de Macedo:
Os melhores instrumentos pedagógicos têm de ser utilizados, os melhores
métodos, os mais perfeitos programas!
A.A. Ferreira de Macedo
Não reste dúvida de que se quisermos fazer reviver a Universidade Popular Por-
tuguesa — certamente a melhor homenagem que poderíamos prestar a Ferreira de
Macedo e a Caraça — muito temos a aproveitar com as re‡exões, empapadas de
prática, destes dois matemáticos. Ao deparar com a sua lucidez límpida e simples
ocorrem-nos as palavras de mais um matemático, tão perseguido quanto os outros
dois; referimo-nos a António Lobo Vilela:
De ora em quando, no meio deste marasmo desolador, ouvem-se rumores
abafados de vozes vibrantes que mal encontram eco, como se fossem pro-
feridas no fundo de uma cisterna, ou gritadas num deserto imenso. Es-
sas vozes traduzem o pouco que entre nós ainda sobrevive de sinceridade
e de independência moral, mas as condições acústicas do ambiente são
tão más que elas se perdem como se fossem simples lamentos de almas
impotentes[9].

2. O futuro

A Universidade tal qual existe hoje na maioria dos países democráticos corresponde
nalguns aspectos ao ideal de Universidade Popular; a massi…cação do ensino nesses
países ao longo do século XX abriu as portas da Universidade a todas as classes e a
Universidade deixou de ser aí em grande medida uma reserva das élites económicas,
élites estas que continuam porém a ter o controlo dos meios decisivos de in‡uenciar a
sociedade: o ensino e a informação. E que tipo de ensino e de informação é oferecido?
O que conduz à formação integral do indivíduo? Não!! e é exactamente por isso que
a ideia da Universidade Popular é hoje ainda, infelizmente, de grande actualidade.
O ensino, hoje, em toda a Europa, visa sobretudo e cada vez mais o fabrico
de eleitores, consumidores e contribuintes relegando para segundo plano a riqueza
individual de cada um e cerceando as formas efectivas de participação colectiva. Só
o pensamento e a acção livres, num concerto de diversidade de opinião e de prática
solidária, a…rma a dignidade humana. Nós, eleitores, consumidores e contribuintes
somos ainda pessoas que recusam um rótulo único, que sentem a complexidade das
coisas, oposta às interpretações simplistas dos meios de informação, que têm imensas
dúvidas, que adoram a controvérsia, que descon…am dos consensos da mediocridade,
que suspeitam dos choques de civilizações; queremos enriquecer-nos com a diversidade
e não queremos empobrecer-nos na uniformidade. Queremos conhecer mas queremos
sobretudo compreender.
A Universidade Popular há-de opor-se aos aspectos negativos da massi…cação,
há-de aceitar a dúvida, há-de promover a controvérsia, há-de dar-nos os meios para
compreender o diferente, há-de fazer-nos dizer alto que de nada vale teimar em com-
preender o desconhecido se há quem se aproveite do conhecimento cientí…co para, à
solidariedade, privilegiar a guerra.
As universidades, hoje, em toda a Europa, são sobretudo escolas de formação
pro…ssional, donde se pretende que saiam rebanhos de jovens abúlicos sem a cons-
ciência do seu decisivo poder e obedientemente tomando o seu assento como os leões
no espectáculo do circo; a contenção forçada da nossa juventude nos quadros estreitos
de uma participação …ctícia onde o pensamento crítico inexiste só pode conduzir
a explosões selvagens quer no anonimato do hooliganismo, quer no anonimato dos
que no silêncio da socapa caucionam as guerras em que sem dar por isso nos vemos
envolvidos.
A Universidade Popular há-de ser um local onde se adquira a consciência do esforço
que ao longo de milénios sempre foi necessário para ter uma ideia nova, nesse esforço
persistente consistindo o essencial do espírito cientí…co; há-de ser um local onde se
entenda claramente que os erros são necessários para lograr algum acerto e que a
ideologia do sucesso é uma fraude publicitária.
As universidades europeias, que na origem eram corporações de mestres e alunos,
veiculando na raiz universitas a ideia de unidade do diverso, de enriquecimento mútuo,
tinham a sua criatividade assente na necessidade de acarinhar a crise permanente,
prevenindo a violência de crises maiores; só podiam pois essas universidades combater
a especialização prematura criando nos alunos, isso sim, a autonomia necessária para a
adquirir mais tarde e da forma mais conveniente. A Universidade Popular não terá por
objectivo formar especialistas mas há-de dar ocasião aos especialistas para resgatar
para si toda a dignidade de pessoas a que têm direito. A Universidade Popular há-
de ser um lugar de libertação para as potencialidades de cada um, e um lugar de
reabilitação da dignidade individual e colectiva. A Universidade Popular há-de ser
um grito de Liberdade!
A Universidade Popular chamará a si cada um de nós, sem rejeitar qualquer parcela
de saber ou de experiência, sendo por demais claro não terem aceite, muitas vezes,
um lugar no terreiro da massi…cação medíocre, aqueles que são porventura os nossos
melhores, rejeitados por uma sociedade que os não conseguiu formatar. Os reforma-
dos, e os desempregados, benvindos à Universidade Popular, serão uma minoria no
meio da multidão de desenganados que lhe dará vigor e de que todos precisamos. A
Universidade Popular libertará em muitos o que há de melhor em si e pretende levar
esse somatório de iniciativas individuais ao “despertar da alma colectiva das massas”,
como preconizava Bento de Jesus Caraça.[1]
A CGTP-IN, em cerimónia comemorativa do centenário do nascimento de Bento de
Jesus Caraça, anunciou publicamente, pela voz do Secretário-Geral Manuel Carvalho
da Silva, e na presença do Presidente da República, Jorge Sampaio, o seu empenho
determinado em levar por diante o projecto da Universidade Popular Portuguesa para
o que seria prudente convocar um amplo espectro de colaboradores e de agremiações;
pensamos por exemplo na Sociedade da Língua Portuguesa, cuja biblioteca de mais de
50.000 volumes bem poderia constituir um elemento precioso no projecto. Foi então
dito que “o papel dos sindicatos, neste conturbado contexto histórico, é difícil mas
ainda mais necessário. Aos sindicatos cabe contribuir para ‘promover a cultura dos
seus membros’.” Estamos por isso certos do apoio da grande massa dos trabalhadores
à futura Universidade Popular Portuguesa como estamos certos da presença do Presi-
dente da República, na futura sessão inaugural em que poderá repetir as palavras
que proferiu, na cerimónia do centenário do nascimento, referindo-se a Bento de Jesus
Caraça : “Uma parte do futuro a que apontava é o nosso presente”.

Referências

[1] Bento de Jesus Caraça. A Cultura Integral do Indivíduo, problema central do
nosso tempo. Cadernos de Cultura Vanguardista, No. 1. Edições Mocidade Livre,
Lisboa, 1933.
[2] Bento de Jesus Caraça. Conferências e Outros Escritos. s. ed., Lisboa, 1978 (2a.
ed.).
[3] Ferreira Deusdado. Educadores Portugueses. Clássicos da Cultura Portuguesa.
Lello & Irmão-Editores, Porto, 1995.
[4] Alberto Ferreira. Estudos de Cultura Portuguesa (Séc. XIX). Margens do texto,15.
Moraes Editores, Lisboa, 1980.
[5] A. A. Ferreira de Macedo. A Educação Moral dos Trabalhadores. Universidade
Livre, 1923.
[6] A. A. Ferreira de Macedo. A Educação do Povo. Seara Nova, 1945.
[7] Armando Myre Dores. O papel da Universidade Popular Portuguesa ao serviço
da cultura do povo. O Erro, (1), 2001.
[8] António Ventura. No centenário de António Augusto Ferreira de Macedo. Rev.
da Bibl. Nac., (2 (1)), 1987.
[9] A. Lôbo Vilela. A Crise da Universidade,. Renovação Democrática, Cadernos de
Cultura Democratista, Figueira da Foz, 1933.
Lisboa, 2 de Novembro de 2001 Paulo Almeida