2007-12-31

O desejo de futuro

Manuel Gusmão*
(Público 2007-12-30)

De há uns tempos para cá, vozes muito dissemelhantes parecem insinuar, se não explicitamente afirmar, que não há futuro para ninguém ou que vivemos tempos em que ninguém se arrisca a qualquer gesto de protensão ou actividade de prognose. Conheceríamos uma era em que teríamos já desistido ou teríamos de desistir de tentar imaginar ou desejar um rosto para o futuro. Esta situação dever-se-ia a um medo que inibe a própria imaginação e de que padeceríamos para além de todo e qualquer pessimismo individual ou grupal.
E contudo se não houver futuro, se não tivermos futuro, seremos como dizia o outro, “cadáveres adiados que procriam”. Porque aquele medo se torna uma patologia do desejo, uma tão brutal antecipação simbólica da morte que inibiria todo o imaginário, amputaria a capacidade de simbolização e tornaria toda a esperança uma ilusão ou um produto do sono da razão. Ora nós precisamos do futuro como do ar que respiramos.
A perda do desejo de futuro seria, segundo alguns, uma lição aprendida com a experiência social e histórica disponível. Pois não é verdade que todas as revoluções acabaram traídas pelos revolucionários? Pois não é verdade que a história do séc. XX é uma história de catástrofes e de massacres, é a história do fim das ideologias emancipatórias? Eis a “experiência histórica disponível” reduzida a essa pobre e desgraçada fórmula da resignação fatalista
- “sempre houve pobres e ricos e portanto sempre os há- de haver”. Respondamos perguntando o que significa “disponível”. Não seria melhor dizer “disponibilizada” pelos senhores da comunicação planetária?
E contudo não há experiência histórica, não há história sem a categoria do futuro, mesmo que essa categoria seja a de uma falta ou ausência, que se desloca e move no passado a reconstruir, e no presente que reencena o passado. Porque a história viva, ao reencenar o passado, só o pode articular através da disputa de determinados possíveis, uns que se concretizaram, outros que foram derrotados. Essa disputa interessa ao conflito entre os possíveis do presente em que o historiador ou o sujeito da experiência histórica se inclina sobre o passado, ao mesmo tempo que escrutina o seu presente. O que aconteceu podia não ter acontecido; mas de facto aconteceu.
Mas apagar a luta dos possíveis significa fixar, imobilizar ou paralisar o que aconteceu; a história desaparece na repetição do mesmo. Tal paralisia, desencadeando a repetição, tomando fatal todo o acontecido, torna a história uma narrativa profética, uma profecia dos vencedores: será sempre assim, porque sempre assim foi. Aliás, a tese sobre o “fim da história” começa por ser uma história mal contada e, mais do que um diagnóstico, representa unia tentativa de eternização de um presente reduzido e um bloqueamento do futuro por esgotamento dos possíveis. Nós, na “tradição dos oprimidos” (Walter Benjamin), aprendemos a não ceder aos desastres, aprendemos a trabalhar para este tempo contínuo das derrotas e a perscrutar os momentos em que algo de diferente foi possível, mesmo que por umas semanas ou meses ou décadas. O trabalho da esperança que magoa ensina-nos que o que foi possível, e logo derrotado, será possível (de outra forma) outra vez.
Para outros, a ausência de abertura ao futuro se ria resultado de uma limitação própria da acção humana orientada por fins gerais e últimos. O sujeito pós-moderno teria finalmente reconhecido que as acções humanas seriam no limite inconsequentes ou, no mínimo, de fraca consequência, quando não perversamente contraproducentes, uma vez que a evolução das sociedades seria um processo de tal forma multivectorial e complexo que seria de facto incomensurável para a inteligência, a consciência e acção humanas. As tentativas de orientar os processos sociais, para além de alguns ajustes e correcções com objectivos à vista, seriam uma tentação voluntarista, própria de um sujeito moderno, que implicaria de raiz uma violência destruidora, desencadeada sobre “o curso natural (= fatal) das coisas” e traria no seu cerne a ameaça do totalitarismo.
E contudo tudo se transforma. Transforma-se o mundo em nós e fora de nós. E da mudança dos tempos e das vontades, nós participamos. Não como animais caminhando para o abate, nem como demiurgos incondicionados. Mas como agentes procurando
o máximo de consciência possível, estendendo as mãos e tacteando os possíveis; fazendo de acordo com os tempos a vinda de um outro tempo. Não somos adivinhos, nem sabemos rigorosamente prever qual será o rosto do futuro, mas isso não nos impede de o desejar. O carácter profundamente transformador do trabalho humano, o facto de uma criança de dois anos ser capaz de produzir uma frase que nunca ouviu, o facto de a poesia reinventar a língua em que se escreve, o facto de as artes serem construções antropológicas e de os humanos se configurarem e reconfigurarem, segundo uma auto poiesis histórica, são fundamentos suficientes para que nos possamos, sem mais garantias, prometer um futuro, “uma terra sem amos”. Porque nós habitamos o mundo, e o mundo é a nossa tarefa.
*Ensaísta