2021-04-11

“Operação Marquês” – De quem é a culpa afinal?

Artigo de António Garcia Pereira em 2021 04 10 em http://www.noticiasonline.eu/operacao-marques-de-quem-e-a-culpa-afinal/ : 

Com tantas emoções e até exaltações desencadeadas a propósito da decisão instrutória do juiz Ivo Rosa no chamado processo da “operação Marquês”, julgo ser importante que reflictamos, com toda a seriedade e toda a serenidade possíveis, sobre as questões que estão, ou deveriam estar, aqui em causa. E é precisamente com esse objectivo que, reafirmando aquilo que já escrevi em artigo anterior à dita decisão A “Operação Marquês” – tudo o que um processo-crime não deve ser! e convidando também os discordantes a exprimirem as suas discordâncias, venho aqui colocar as seguintes questões:

1º Compreendo perfeitamente a emoção, a indignação e a repulsa que causa a circunstância de algumas pessoas, desde ex-governantes a grandes senhores da Economia e da Finança, relativamente às quais se apuraram factos mais do que ética, politica e até criminalmente reprováveis, possam eximir-se às suas responsabilidades e escapar ao julgamento e eventual condenação judicial “simplesmente” porque os respectivos actos não foram adequadamente investigados, ou não foram correctamente acusados, ou se deixou correr o respectivo prazo de prescrição. Mas a questão essencial é esta – será que a responsabilidade desse inquietante e negativo resultado é de quem interpretou e aplicou a lei, ou é de quem, actuando como actuou, por acção ou omissão, o tornou inevitável?

Ou agora nós, cidadãos, e sobretudo nós, advogados, passámos a entender que, apesar de (lamentavelmente para o caso) a lei impor a não pronúncia dos arguidos, afinal e porque não gostamos deles, achamos que o juiz deveria antes esquecer e tornear a lei? 

E também porque permitimos que se evite fazer – e exigir para ela a competente resposta – a pergunta que julgo essencial: afinal, é ou não verdade que foi o Ministério Público, e mais concretamente que criou um ingerível mega-processo, que deixou passar o prazo de prescrição, que não apurou suficientemente todos os factos que deveria ter investigado, que substituiu por diversas vezes os mesmos factos por meros juízos conclusivos? O mesmo Ministério Público que julgou que tudo isso poderia passar em claro se conseguisse, por um lado e através de cirúrgicas violações do segredo de justiça, criar uma fortíssima e manipulada opinião pública, favorável às teses da acusação e propícia a pré-julgamentos na praça pública, e, por outro lado, contar com a ajuda e o apoio de um juiz de instrução criminal “amigo”, que se arvora em algo que a lei de todo lhe não permite, isto é, em polícia ou procurador, e que por isso lhe viabiliza todos os expedientes e manobras processuais (desde os ilegais “pré-inquéritos” até à “migração” de elementos de prova colhidos num dado processo e com determinados pressupostos para outro processo onde ande “à pesca” de elementos probatórios)?

2º É ou não verdade que esta forma de actuar do Ministério Público, e em particular da sua “força de élite” do DCIAP, consistente em mega-processos muito mediáticos mas muito gigantescos, e logo verdadeiramente ingeríveis, em sempre cirúrgicas e sempre impunes fugas de elementos em segredo de justiça, nos já referidos pré-inquéritos e P.A. (Processos Administrativos) não constitui um caso isolado mas antes corresponde a uma prática reiterada e até a uma certa e muito enraizada cultura corporativa, que já antes conduziu a estrondosos arquivamentos, despronúncias ou absolvições? 

Ou já “convenientemente” nos esquecemos, entre muitos outros, dos casos das dezenas de mortes de hemofílicos infectados com sangue contaminado com o HIV, dos ruinosos (para o Estado) negócios das parcerias público-privadas das auto-estradas e das pontes sobre o Tejo, bem como da compra pela TAP da Empresa de Manutenção da Varig (VEM) e da Portugália, das privatizações da TAP e dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, da compra e da manutenção dos submarinos, dos contratos de “swaps” celebrados por empresas do Sector Empresarial do Estado, dos Vistos Gold, etc, etc, etc? Também nesses casos o Mº Pº esteve bem e foram os juízes que despronunciaram ou que absolveram que estavam “feitos” com os poderosos?

3º Ninguém quer atentar na enorme gravidade da mais que indiciada batota e violação, em 2014, do basilar princípio do “juiz natural”no TCIC, quando a lei já impunha o sorteio electrónico e este (ao contrário do que falsamente invocou e declarou o Conselho Superior da Magistratura) já então estava em funcionamento, e aquilo que foi feito foi uma atribuição manual e individualizada do processo da “operação Marquês” ao juiz Carlos Alexandre?

E, mais, isso não deveria ter conduzido agora à nulidade não apenas dessa distribuição golpista e ilegal mas também à nulidade de todos os actos processuais subsequentes praticados por Carlos Alexandre (porque desprovido do competente poder jurisdicional), não se admitindo nem se reconhecendo – exactamente ao invés do que, muito benevolamente para a acusação, acabou de decidir o juiz Ivo Rosa – qualquer validade a tais actos?

4 º Ninguém fala na enorme e totalmente ilegítima pressão exercida sobre Ivo Rosa nas vésperas e até no próprio dia da leitura da decisão instrutória, desde logo por uma comunicação social absolutamente manipulatória e habituada a (sobre)viver das cachas e manchetes propiciadas pelas violações do segredo de justiça praticadas pelas “fontes próximas do processo” suas amigas, e na qual, “naturalmente” não couberam, nem cabem, vozes discordantes da corrente largamente dominante? 

E ninguém fala da insólita e totalmente ilegítima pressão exercida pelo órgão de gestão e disciplina dos juízes (o Conselho Superior da Magistratura), o qual, escassos dias antes da decisão instrutória, se permitiu, através do seu Presidente, criticar publicamente o juiz e afirmar ser inaceitável a duração da instrução dum processo monstruoso como este. O mesmo Conselho Superior da Magistratura que – no próprio dia da decisão, na qual se sabia perfeitamente que iria ser apreciada e decidida a supra-citada questão da distribuição manual em 2014! – tratou de aprovar uma deliberação a jurar a correcção e legalidade de todos os actos de distribuição de processos, em todos os tribunais e designadamente no de Carlos Alexandre e Ivo Rosa (TCIC)?

Voltando assim à questão inicial e essencial da responsabilidade pelo resultado final decorrente da decisão instrutória da operação “Marquês” – ela é da responsabilidade de quem, pela sua conduta arrogante, irresponsável e incompetente, tornou tal resultado inevitável, ou é de quem, aplicando a lei com o rigor que se exige a um juiz de instrução criminal actuando em conformidade com a Lei e a Constituição, se limitou a proclamar, com todas as respectivas consequências legais, tal resultado?

É para mim óbvio que se o dia de ontem foi negro para a Justiça, tal se deveu aos justiceiros, que, esses sim, se lhes restasse um pingo de vergonha na cara, se deveriam ter demitido ou, pelo menos, reconhecido, com humildade, onde é que a sua postura e os seus métodos conduziram…

Defensor de José Sócrates é algo de que nunca poderei ser acusado. E não conheço pessoalmente o juiz Ivo Rosa. E nenhum tipo de relação destas devia, de qualquer forma, fazer toldar o nosso espírito crítico. Mas interessa-me, como sempre me interessou, acima de tudo, que os juízes façam cumprir a Lei, pois é para isso que eles existem, e que se faça Justiça. E se ela não foi ontem feita, a culpa reside única e exclusivamente aqui: Ministério Público

2020-09-15

Entrevista ao Prof José Morais (Continuação do post no Blog Memórias

 Este texto é a continuação do "post" do Memórias  que se encontra aqui: http://memoriasdopresente.blogspot.com/2020/09/blog-post_15.html  

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Prof. Carlos: O senhor comenta em alguns momentos os benefícios da prática da leitura partilhada. Poderia citar alguns?

Prof. José Morais: São enormes, mas aqui faço uma ressalva. Há estudos que demonstraram que há interações muito positivas e outras menos positivas, depende do modo como são feitas. Em vez de simplesmente ler para a criança, pode-se chamar a atenção dela, criar alguma interação, procurar que ela nomeie ou preveja o que vai aparecer no texto. Essa interação é importante.

Os benefícios são em muitos aspectos. Para além daquele que já evocamos, há o conhecimento do vocabulário, o desenvolvimento da sintaxe, todo o aspecto de visualização daquilo que pode ser descrito no texto – portanto imagens mentais que eles desenvolvem.

Prof. Carlos: A postura que a criança adota ao escutar histórias também é comentada pelo senhor…

Prof. José Morais: Sim, também a postura. E depois há o aspecto emocional: a partilha. Não só a leitura é partilhada; também se partilham o ambiente emocional, os afetos, as emoções, e isso é extremamente importante na relação dos pais com os filhos e dos filhos com os pais. É fundamental.

Prof. Carlos: Professor, em um outro momento do livro – já que o nosso trabalho é destinado a pais, embora alguns professores também nos acompanhem –, o senhor diz que a alfabetização é uma missão dos professores, mas destaca: “E por que não também dos pais, desde que devidamente informados e instruídos?”. Gostaria que você falasse um pouco sobre esse trecho do livro, pois há pais que pensam: “Se não sou formado em Pedagogia, como vou alfabetizar meus filhos se as escolas não estão cumprindo com seu papel?”.

Prof. José Morais: Não precisa de curso de Pedagogia. A primeira coisa necessária é ter vontade que o seu filho se desenvolva em nível de linguagem, em nível social, em todos esses aspectos. A alfabetização é talvez o primeiro grande tipo de aprendizagem. Talvez seja difícil afirmar isso, porque a numeração e vários outros aspectos devem ser levados em conta. Mas a idéia de que o pai tem apenas os deveres de alimentar, conversar, dar amor e que depois vem a escola, assumindo as demais funções, não tem muito sentido. Na realidade, são coisas que se sobrepõem. Do mesmo modo que os pais devem se preocupar com a alfabetização, também os professores devem se preocupar com a forma como a criança vive com sua família, suas relações, se ela é suficientemente apoiada nos aspectos de desenvolvimento cognitivo, etc. Não pode haver essa divisão total, como se fossem coisas completamente distintas  e que, a certa altura, quando a criança entra na escola, o mundo da escola não tem a ver com o mundo da família e vice-versa. O que é preciso? Que haja uma relação boa, sincera, de confiança entre o alfabetizador oficial, que é o professor, e o pai e a mãe, que podem também intervir na alfabetização da criança, sobretudo mostrando desde o início, para além da leitura partilhada, que a leitura e a escrita são coisas muito importantes. São meios de se desenvolver que suscitam muitas alegrias, muito prazer, muitas possibilidades de conhecer o mundo e os outros. Pensando assim acho que é o caminho e que os pais, portanto, devem se sentir à vontade nessa relação com a escola.

Prof. Carlos: Vou entrar em uma parte um pouco mais técnica: gostaria de falar um pouco sobre os métodos. O senhor hoje fez uma afirmação importantíssima: há uma confusão no campo da alfabetização quando pensamos que ler é compreender. O senhor fez uma distinção entre a idéia errônea de que “ler é compreender”  e a idéia de que “devemos ler para compreender”. Gostaria que o senhor destacasse isso. Nós sabemos que o fim da leitura é a compreensão, porém, para atingirmos a realidade semântica, parece que há algo no meio do caminho, e esse algo é a decodificação, o domínio do princípio alfabético.

Prof. José Morais: Exatamente. Enquanto leio preciso usar habilidades para poder decodificar. Na atividade de leitura há a habilidade que são os processos e mecanismos utilizados pelo leitor de maneira não controlada, inconsciente, de forma não intencional. Isso é habilidade. Depois há todos os processos conscientes que fazem parte da compreensão ou que conduzem à compreensão, porque vou ter de reter na memória algumas coisas, pois mais à frente vou encontrar outras informações que têm relação com aquelas. Entretanto vou pensando e tendo expectativas sobre o que vai acontecer mais à frente. Estou reagindo emocionalmente, estou vendo a ação que está descrita no texto. Tudo isso já é de natureza intencional e mais controlada, porque posso dizer: “Não, eu preciso compreender melhor isso que não entendi bem”. Trata-se de uma decisão intencional enquanto estou lendo. Mas o reconhecimento das palavras é essencial; é uma habilidade sem a qual não há compreensão. Se eu não consigo reconhecer as palavras do texto, não posso compreendê-lo. Essa habilidade precisa ser adquirida por meio da alfabetização.

Prof. Carlos: Agora nós precisamos falar aos pais o seguinte: Por que os métodos fônicos são os mais eficazes?

Prof. José Morais: São os mais eficazes porque fazem com que a criança adquira a chave do sistema alfabético. Como nós temos de aprender o sistema alfabético, nossa escrita é alfabética, é muito mais produtivo mostrar como na língua nós temos fonemas que correspondem a coisas escritas que podem ser uma letra ou mais que uma letra. Quando a criança adquire essa chave, ela entende o princípio. O princípio alfabético é o princípio de correspondência entre grafemas e fonemas. Quando a criança o adquire, deverá então adquirir o conhecimento do conjunto das correspondências entre grafemas e fonemas. E depois há ainda outra aquisição a fazer, que é aplicar isso de maneira repetida, de maneira a dominar cada vez melhor essa decodificação.

O importante é que ela tenha todos os elementos para poder ler tudo o que apareça, conhecido ou não conhecido. Quanto ao método silábico, como a língua é formada também por sílabas, é claro que a criança pode conseguir ler bastantes coisas por meio desse método. Contudo, o número de sílabas é muito maior que o de fonemas. Mas ainda maior é o número de palavras. Porque poderíamos fazer assim: vamos apresentar “casa”, “cor”, “amarelo” e tantas outras palavras. Se nós quisermos que a criança apresenta a representação escrita de cada palavra, isso é impossível!

Além disso, há sempre coisas novas, há pseudo-palavras que podem adquirir muitos significados. O léxico em uma língua se move, não é algo fixo. Descobrem-se coisas que precisam ser nomeadas, surgem novos nomes. Aprender a ler e escrever com base nas palavras simplesmente não dá.

Prof. Carlos: Professor, antes de encerrar a entrevista, nós temos aqui no blog o costume de sempre deixar uma dica prática para os pais. Eles estão cansados de teorias pedagógicas, e nós sabemos que você é um pesquisador que analisa quais os métodos mais eficazes para a alfabetização. Para aquele pai que quer alfabetizar o filho com segurança, quais os passos que deve seguir?

Prof. José Morais: Primeira coisa: mostre ao seu filho ou sua filha que você gosta de ler. Compre livros, mostre que lê, não fique diante da televisão todas as noites seguindo o futebol ou a novela. É importante que você mostre ao seu filho que o livro é um objeto precioso e que ler é uma coisa extraordinária. Essa é a primeira coisa que sugiro. Em segundo lugar, na seqüência disso e para além da leitura partilhada, quando a criança já está lendo, continue a ler com ela e sobretudo indicando obras. Diga: “Filho, encontrei um livro maravilhoso, que diz isso e mais isso. Você quer ler?”. Depois discuta a obra com seu filho. Isso me aconteceu quando criança, com meus pais, e também o fiz com meus filhos. Minha filha mais nova tem hoje 20 anos e já não conversamos tanto assim, mas sempre falamos de livros, discutimos sobre as obras. O livro tem de ser um bem precioso durante a vida toda, não só quando são crianças, mesmo mais tarde. Os livros são um entretenimento, um elo entre pais e filhos.

Prof. Carlos: Prof. José Morais, muitíssimo obrigado pela entrevista. Quem proporcionou essa entrevista foi o professor Luiz Carlos, e por isso vou convidá-lo a sentar-se aqui e agradecer por você ter aceito ao convite em fazer parte desse projeto muito simples, muito humilde, mas que tem atingido pais em todo o Brasil, o trabalho do blog Como Educar Seus Filhos. Muito obrigado!

Prof. José Morais: Obrigado! Muito obrigado.

Prof. Luiz: O professor Carlos Nadalim acabou de ter essa proveitosíssima conversa com o professor José Morais, a quem conheço desde 2003.

Prof. José Morais: Exatamente! Luiz Carlos, é um prazer estar aqui com você. Pode me tratar por José e não por professor, já temos muitos anos de convívio e somos amigos.

Prof. Luiz: Pois então! Quero contar isto: nos conhecemos desde 2003 aqui no Brasil, quando José Morais veio dar uma grande colaboração no relatório solicitado pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados. Há um grupo de cientistas que foi solicitado a se manifestar sobre a situação educacional no Brasil e para fazer um resumo sobre o estado da arte no mundo no campo da ciência cognitiva da leitura.

Prof. José Morais: Eu tenho muitas razões para gostar do Brasil. A primeira é que meu avô paterno nasceu no Brasil, em Belém do Pará, de pai português e mãe brasileira. Aos 20 anos foi para Portugal, ficou por lá e teve de se naturalizar português para se casar com uma portuguesa. Tenho então uma ascendência de certo modo brasileira, embora ele estivesse naturalizado português. Além disso, quando eu era jovem, e voltando aos livros, havia em Lisboa uma coleção de livros chamada Livros do Brasil. Eu lia muito, gostava muito de ler, e os meus pais tinham muitos livros de Érico Veríssimo. Imagine a quantidade de obras que li: O retratoO tempo e o vento e por aí vai. Graciliano Ramos, Lins do Rego, mais tarde outros autores como Guimarães Rosa e Jorge Amado. O primeiro livro que ofereci à minha esposa, que conheci bem mais tarde, foi Capitães de areia, de Jorge Amado. A minha vida está intimamente ligada ao Brasil e há muitos anos que venho aqui e gosto muito. Só não venho viver definitivamente no Brasil porque tenho quatro filhos, minha mulher vive, mora e trabalha em Bruxelas. Eu já estou livre, uma vez que sou emérito, mas tenho minha esposa, meus quatro filhos e netos que trabalham e vivem todos em Bruxelas.

Prof. Luiz: Está ótimo! Posso dizer a você que vamos continuar nos relacionando e fazendo todos os esforços para corresponder ao seu esforço profissional de pesquisar e estudar para fazer com que isso nos traga benefícios. Para além de continuar cultivando essa amizade entre Brasil e Portugal, assim espero. Estou muito feliz de estar aqui e sou imensamente grato pela nossa amizade.

Prof. José Morais: Obrigado, grande abraço a você!

2020-02-16

O que os bispos têm dito sobre a eutanásia

O que os bispos têm dito sobre a eutanásia

14 fev, 2020 - 18:59 • Filipe d'Avillez

A Conferência Episcopal Portuguesa já se manifestou de forma firme contra a legalização da eutanásia. Mas para além dessa posição conjunta, vários bispos já se manifestaram individualmente.

São poucos os bispos portugueses que não tomaram posições pessoais contra a legalização da eutanásia. Alguns, como D. Nuno Brás, do Funchal, não têm feito declarações, mas usam as suas contas nas redes sociais para partilhar artigos que alertam para os perigos desta medida, que vai a votos na Assembleia da República no dia 20 de fevereiro.
Renascença apresenta-lhe um apanhado de algumas das principais afirmações dos bispos portugueses sobre a eutanásia, de norte a sul.
(Continua aqui )

2018-09-04

2018-08-01

NúCLEO MUSEOLÓGICO MERCADO DE ESCRAVOS - LAGOS

A parede lateral do NÚCLEO MUSEOLÓGICO MERCADO DE ESCRAVOS situado na praça do Infante, em Lagos, tem a seguinte inscrição ao longo de toda a parede



Chegaram as caravelas a Lagos (…) e no outro dia Lançarote (…) disse ao infante (…) ser bom que de manhã os mandeis tirar das caravelas e levar aquele campo que está além da porta da vila (fazendo) deles cinco partes (…), e seja vossa mercê chegardes aí e escolher uma das partes qual mais vos prouver. [Escrito completo na parede do Núcleo Museológico Mercado dos escravos em Lagos].
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http://www.fcsh.unl.pt/cham/eve/img/template/linha_picotado.gif

Autor: Jorge Fonseca 

Lagos, no Algarve, foi o principal ponto de entrada de escravos africanos em Portugal nas primeiras décadas do tráfico negreiro, a partir dos anos 40 do século XV. Isso deveu-se ao facto de o infante D. Henrique, depois da conquista de Ceuta, ter eleito a vila como sede dos seus empreendimentos marítimos, ainda antes de a mesma lhe ter sido doada, em 1453. Dela saiu Lançarote, almoxarife do rei, com seis caravelas, para a costa de Arguim, na primavera de 1443 ou 1444, regressando no começo de agosto com o primeiro grande carregamento de cativos negros chegados ao país, 235. Gomes Eanes de Zurara (1410-1474) evocou magistralmente, na Crónica da Guiné, o dramatismo do desembarque na praia de Lagos dessa carga humana, na presença do infante, que poderia ter servido de modelo a muitas outras descrições de acontecimentos semelhantes, ao longo de séculos, se tivessem existido, o que não voltou a acontecer da parte de portugueses, dada a banalização em que o tráfico caiu: 
“… qual seria o coração, por duro que ser pudesse, que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo-se assim aquela companha? Que uns tinham as caras baixas e os rostros lavados com lágrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo mui dolorosamente, esguardando a altura dos céus (…) bradando altamente, como se pedissem acorro ao Padre da natureza; outros feriam seu rostro com suas palmas, lançando-se tendidos no meio do chão; outros faziam suas lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra …”.

Os escravos trazidos tinham sido capturados em assaltos a aldeias da costa africana, mas na década seguinte já era aos mercados locais que os Portugueses, por decisão de D. Henrique, recorriam para obter cativos e não já à guerra. Disso deu conta o veneziano Alvise Cá da Mosto, no relato das suas viagens. O comércio passou a ser muito mais fácil e lucrativo que a pilhagem, recebendo o infante, como antes, a quinta parte do respetivo produto. 

Em Lagos funcionou inicialmente a feitoria dos Tratos da Guiné e a mão-de-obra cativa continuou a chegar ao seu porto até ao fim do século e mesmo depois. Em 1490 e em 1490-96 o almoxarifado da vila recebeu 739 peças de escravos. 

Mas na década de 80, com o aumento do afluxo e a necessidade de controlo fiscal por parte da coroa, Lisboa passou a ter a prioridade neste comércio. E um alvará de D. Manuel I, de 24 de outubro de 1512, veio a canalizar obrigatoriamente para a cidade do Tejo a entrada de escravos no reino, exceto por razões de força maior, como intempéries que impedissem os navios de aportar à mesma. 
As descargas faziam-se no cais da Ribeira, junto aos muros da vila, recuperado em 2008 por uma campanha arqueológica, que o pôs a descoberto depois de ter estado soterrado desde a década de 1940, devido à construção da avenida marginal da cidade. Próximo dele fazia-se a venda dos cativos. Um edifício seiscentista, a Vedoria do Exército, adquiriu na tradição local a designação de Mercado de escravos, provavelmente por ser junto a ele que, antes e mesmo depois da sua construção, se processava essa atividade. Em 2010 foi instalado nesse edifício o Núcleo Museológico do Mercado de Escravos, albergando uma exposição sobre o tráfico negreiro. 
Outro testemunho do papel de Lagos como porto ligado ao comércio escravista foi descoberto em 2009, numa zona recentemente urbanizada da cidade e durante as obras de abertura de um silo para estacionamento de automóveis: uma vala usada para enterramento de cadáveres, em que as deposições mais antigas datam de meados do século XV, apogeu da entrada de escravos na vila. Na centena e meia de esqueletos encontrados, muitos foram atribuídos a africanos devido às suas caraterísticas antropomórficas e a objetos de fabrico africano associados a alguns deles. Poderá tratar-se de cativos chegados já mortos nos navios de tráfico, ainda não cristianizados, pelo facto de terem sido lançados de forma caótica num depósito comum, ao contrário do que sucederia àqueles que, já integrados e convertidos ao Cristianismo, iriam ser sepultados nas igrejas e respetivos adros. Alguns desses vestígios foram expostos no Núcleo Museológico acima referido. 

Bibliografia: ALBUQUERQUE, Luís de (1971) “Lançarote”, Dicionário de História de Portugal (Dir. Joel Serrão), v. II, Lisboa: Iniciativas Editoriais, pp. 655-656; CADAMOSTO, Luís de (1988) Viagens de Luís de Cadamosto e de Pero de Sintra, Lisboa: Academia Portuguesa de História; COSTA, João Paulo Oliveira e (2013), Henrique, o Infante, Lisboa, Esfera dos Livros; COSTA, João Paulo Oliveira e (Coord.) (2014) História da expansão e do império português, Lisboa: Esfera dos Livros; GODINHO, Vitorino Magalhães (1983) Os descobrimentos e a economia mundial, v. IV, Lisboa: Presença; ZURARA, Gomes Eanes de (1973) Crónica de Guiné, Porto, Civilização. Documento da Internet:
http://museudigitalafroportugues.wordpress.com/sobre/reino-do-algarve/o-cemiterio-de-escravos-de-lagos/. 

2018-05-08

O segredo dos escravos reprodutores - Expresso 2015-12-08





Reprodução de “Chafariz d’el Rey no séc. XVI” (pintura flamenga, 1570-80, de autor desconhecido, óleo sobre madeira, 93 x 163 cm, Coleção Berardo), onde são visíveis vários africanos a desempenhar diferentes tarefas. Na imagem mais pequena, reprodução da primeira página do documento que está na Biblioteca Nacional da Ajuda, cópia do século XVIII do original de Venturino, que relata o episódio dos escravos reprodutores de Vila Viçosa. Ao lado, imagem atual do espaço onde existiu a “ilha” no paço ducal da Casa de Bragança, então habitado por escravos. Ainda hoje os trabalhadores referem-se à zona pelo mesmo nome.


Desumanização. Documento pouco conhecido do século XVI relata criação de escravos, em Vila Viçosa, como se fossem cavalos para reprodução.

A passagem foi escrita em italiano, no século XVI, e é assim que surge no espólio da Biblioteca da Ajuda. Traduzida, revela um português estranho aos leitores contemporâneos e uma realidade difícil de acreditar. “Tem criação de escravos mouros, alguns dos quais reservados unicamente para fecundação de grande número de mulheres, como garanhões, tomando-se registo deles como das raças de cavalos em Itália. Deixam essas mulheres ser montadas por quem quiserem, pois a cria pertence sempre ao dono da escrava e diz-se que são bastantes as grávidas. Não é permitido ao mouro garanhão cobrir as grávidas, sob a pena de 50 açoites, apenas cobre as que o não estão, porque depois as respetivas crias são vendidas por 30 ou 40 escudos cada uma. Destes rebanhos de fêmeas há muitos em Portugal e nas Índias, somente para a venda de crias.”
O relato da existência de escravos reprodutores no Paço Ducal de Vila Viçosa, a mais importante casa nobre portuguesa, foi feito por João Baptista Venturino da Fabriano, secretário do cardeal Alexandrino Miguel Bonello, enviado papal à corte portuguesa em 1571 para propor Margarida de Valois como noiva de D. Sebastião. A união do rei de Portugal com a filha de Henrique II e Catarina de Médici — que acabaria por casar-se no ano seguinte com Henrique IV e tornar-se a rainha Margot de França, célebre pela morte de milhares de protestantes —, não se concretizou. E quanto aos escravos, nada mais se soube.

No século XVI viveriam 350 pessoas no paço ducal e a criação de escravos teria lugar num terreno ao lado da casa principal, uma zona ainda hoje conhecida pelos trabalhadores locais como a “ilha”. Atualmente só resta o chão, coberto de pedras, nas imediações do picadeiro e do local onde terá estado o torreão onde, em 1512, foi degolada D. Leonor, de 23 anos, pelo seu marido, o quarto duque de Bragança, D. Jaime, acusada de ter um pajem de 16 anos por amante.

O paço era então liderado pelo sexto duque de Bragança, D. João I, que três anos mais tarde acompanhou D. Sebastião na primeira incursão em África, levando com ele 600 cavaleiros e dois mil infantes. Não participou, contudo, na desastrosa expedição de 1578 devido a violentas febres, tendo enviado o primogénito D. Teodósio II, que com dez anos foi ferido em Alcácer-Quibir e viria a ser pai de D. João IV, aclamado rei de Portugal em 1640.

O “segredo”, com mais de 400 anos, continua a ser desconhecido por muitos dos investigadores da escravatura em Portugal. Os historiadores que o conhecem defendem que o episódio tem de ser estudado para que se compreenda se foi um caso único ou se representa a ponta de um novelo espesso.O primeiro a ficar incomodado com o relato foi Alexandre Herculano, no século XIX. Nos “Opúsculos”, volume VI, refere o texto de Venturino, com pudor: “Falando dos escravos, a linguagem do autor é bastante solta, e por isso não transcreveremos esta passagem. Basta saber que estes desgraçados eram considerados e tratados como as raças de cavalos em Itália, e pelo mesmo método, que o que se buscava era ter muitas crias para as vender a trinta e quarenta escudos”.

Foram as lacunas de Herculano que levaram Jorge Fonseca, estudioso da escravatura, a procurar o documento original. Encontrou-o na Biblioteca da Ajuda, traduziu a passagem e publicou-a em 2010 no livro “Escravos e Senhores na Lisboa Quinhentista”. Um ano depois, Isabel Castro Henriques, a maior especialista portuguesa da área, cita-a em “Os Africanos em Portugal, História e Memória, séculos XV-XXI”. E é ela quem mais se insurge com a inexistência de estudos: “Impõem-se investigações rigorosas. Este é um documento de extrema violência, em que os escravos são tratados como cavalos. A investigação é difícil mas tem de ser feita”, afirmou recentemente numa conferência sobre a escravatura, na Biblioteca Nacional, em Lisboa.

SINAIS DE ALERTA

Antes de Venturino, Nicolau Clenardo escrevera cartas em que, embora não tão explícita, é referida uma estrutura de produção com fins comerciais: “Os mais ricos têm escravos de ambos os sexos e há indivíduos que fazem bons lucros com a venda dos filhos das escravas nascidos em casa. Chega-me a parecer que os criam como pombas para levar ao mercado. Longe de se ofenderem com as ribaldias das escravas, estimam até que tal suceda.” Testemunha do Portugal do século XVI, Clenardo chegou ao país em 1533 para ser mestre do infante D. Henrique, irmão do rei D. João III e sem meias-palavras, relatou: “Mal pus os pés em Évora, julguei-me transportado a uma cidade do inferno: por toda a parte topava negros.”

Na publicação “A herança africana em Portugal”, Isabel Castro Henriques explica que “desde o início de quinhentos, os autores sobretudo estrangeiros davam conta de uma atividade de produção, marcada por um carácter insólito e cruel: a criação de escravos, como se de animais se tratassem, destinada a abastecer o mercado nacional, mas também para exportação”. E transcreve uma passagem da Collecção da Legislação Portuguesa (1763-1790), que denunciava a existência de pessoas “em todo o Reino do Algarve, e em algumas províncias de Portugal (que tinham) escravas reprodutoras, algumas mais brancas do que os próprios donos, outras mestiças e ainda outras verdadeiramente negras, (designadas) ‘pretas’ ou ‘negras’, pela repreensível propagação delas perpetuarem os cativeiros”.

Questionada sobre as razões da falta de estudos sobre os escravos, Mafalda Soares da Cunha, professora da Universidade de Évora e considerada a mais importante estudiosa da Casa de Bragança, não tem dúvidas: “A investigação histórica mais recente, incentivada pelas novas agendas historiográficas internacionais, começa a tratar de forma mais sistemática e menos dependente ideologicamente da questão da presença dos escravos na história de Portugal. Os resultados são manifestamente insuficientes, mas o tema deixou de ser maldito e silenciado como o foi no passado mais recente. Creio mesmo que desperta interesse entre as gerações mais jovens de historiadores que, de certa forma também entendem o estudo da escravatura como uma forma de participação nas lutas pelos direitos humanos. Mas ainda estamos num estádio muito embrionário.”
Fantasmas históricos, os escravos não são personagens principais. “O estudo de populações com pouco acesso à escrita e aos recursos de poder é sempre difícil. Não sendo atores reconhecidos pelo sistema político, pouco falam por si, a menos que colidam com o sistema instituído. As referências de época são muitas vezes indiretas e distorcidas e os conhecimentos desses grupos, e em particular dos escravos, exige sempre um esforço grande de desconstrução das visões dominantes da época e dos contextos em que se produziram as referências”, explica a especialista.

Há pouca informação, por exemplo, sobre os escravos agrícolas porque a sua existência não tinha outro interesse para a época senão como parte dos equipamentos de uma qualquer exploração agrícola. Mas como sublinha Mafalda Soares da Cunha, “eles existiam e agiam”. Num artigo na revista “Callipole”, Jorge Fonseca relata que o duque D. Teodósio I, em 1564, teria 48 escravos, dos quais 20 serviam na estrebaria, quatro na cozinha e na copa e quatro eram varredeiros, entre outras funções. A contabilização parece ser o mais longe que se consegue ir.

Quanto ao episódio dos reprodutores, relatado por Venturino, Mafalda Soares da Cunha desconhecia-o antes do contacto do Expresso e alerta ser necessário perceber o contexto do relato para compreender a intencionalidade da narrativa e a sua veracidade, mas conclui: “Não excluo evidentemente a possibilidade. A documentação que conheço da Casa de Bragança é totalmente omissa quanto a isso, mas a probabilidade de acontecer parece-me evidente.”

PERGUNTAS & RESPOSTAS

Quando chegaram a Portugal os primeiros escravos africanos?
Os primeiros escravos negros entraram em Portugal ainda no século XV, através de Marrocos, havendo registo de apreensões desde 1441, embora o uso de mão de obra escrava fosse largamente difundido desde o século XIV. Em 1444 teve lugar o primeiro carregamento de 235 escravos, trazidos do Golfo de Arguim, atual Mauritânia. O próprio Infante D. Henrique terá estado presente no primeiro leilão de escravos em Lagos, o passo inaugural para um importante negócio de exportação sobretudo para Sevilha, Cádis e Valência.

Quantos escravos existiam em Portugal no século XVI?~
Lisboa abrigava quase dez mil escravos, o que equivaleria a cerca de 10% da população da capital na altura. A maior parte dos escravos encontrava-se no Algarve, região seguida pelo Baixo Alentejo, Vale do Tejo e pelo distrito de Évora. No século XVII, o número diminuiu substancialmente devido ao desvio para o cultivo de açúcar no Brasil.

Qual a influência da procura de escravos no continente americano no seu preço?

A partir de 1540, o aumento da procura de escravos para as plantações de açúcar nas Antilhas, primeiro, e depois no Brasil, fez com que o preço dos escravos aumentasse exponencialmente, tendo sido registada uma valorização de mais de 500% em três décadas, segundo o historiador António de Almeida Mendes.

Quais os escravos mais cobiçados pelo tráfico negreiro?

Os escravos “minas”, originários da Costa da Mina, no Golfo da Guiné (Gana, Togo, Benim e Nigéria), eram os mais procurados nos mercados consumidores, devido à maior resistência física. Os “angolas” eram considerados mais frágeis e com uma maior tendência a cometer suicídio. Em 1644, um decreto do D. João VI autorizaria os comerciantes a comprarem diretamente a mão de obra àquela região, como explica o historiador João Pedro Marques no livro “Portugal e a Escravatura dos Africanos”.

Quantos escravos morriam nas viagens nos navios negreiros? 
Cerca de um quarto dos escravos morria durante o transporte transatlântico. Outros, cujo número é difícil de precisar, morriam nas viagens do interior até aos portos de embarque. Alguns, ainda, não resistiam à espera pelo embarque nos navios. Chegados ao destino, a vida nas colónias também os matava, o que permitiria totalizar a morte acumulada em todo o processo num patamar superior a 70%.

Qual o maior destino mundial de escravos?
O Brasil, entre meados do século XVI e até cerca de 1850, quando 42% do tráfico negreiro, o equivalente a cinco milhões de pessoas, terá partido de África em direção ao território brasileiro. Estima-se que atualmente cerca de um terço da população brasileira descenda de angolanos. Os maiores traficantes mundiais de escravos foram os portugueses radicados no Brasil.

Portugal foi o primeiro país a acabar com a escravatura?
Não. Em 1761, o marquês de Pombal, através de um alvará régio, acabou com o tráfico de escravos para a metrópole. A 10 de dezembro de 1836, uma lei proibiu o tráfico de escravos nos domínios portugueses ao sul do Equador. A escravatura continuou no Brasil até 1888, quando o país já era independente. Portugal só a aboliu totalmente em 1875. Em 1794, o Haiti foi o primeiro país a abolir a escravatura na sequência de uma revolta de escravos, seguindo-se a Dinamarca em 1804.

Texto publicado na edição do Expresso de 5 dezembro 2015

2018-04-11

Controlada por uma seita, abusada pelo pai e afastada dos filhos — esta é a história de Rachel Jeffs

É uma história de horror. Não é na Arábia Saudita ou numa tribo do Afeganistão, é nos EUA.
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link:  https://nit.pt/coolt/livros/controlada-seita-abusada-pai-historia-rachel-jeffs          Texto Andreia Costa  03/04/2018
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Foi educada na poligamia e o líder mórmon, o pai, era um dos mais procurados pelo FBI. “Filha do Profeta” conta tudo e a NiT mostra-lhe um capítulo em exclusivo.
O Pai (é assim, com letra maiúscula, que é referido) controlava tudo, desde os nomes e a educação dos miúdos — mesmo os que não eram dele — àquilo que os maridos podiam ou não praticar com as inúmeras mulheres na intimidade. Pior do que tudo isso era o que fazia na sua própria família: começou a abusar da filha Rachel quando ela tinha oito anos e casou com crianças de 12. 

Warren Jeffs, líder da Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (um culto dentro da igreja mórmon), fazia parte da lista das dez pessoas mais procuradas pelo FBI. Foi condenado a prisão perpétua mas, mesmo preso, continua a controlar   o que se passa na sua seita poligâmica.

Rachel com os filhos (fotos de editora Planet  

Rachel Jeffs, uma de 53 filhos, conseguiu fugir e decidiu contar a sua experiência em “Filha do Profeta” 

Em miúda, o pai levava-a a bibliotecas para lhe mostrar pornografia e depois recriar com ela as imagens; conheceu o marido na véspera casamento e dividiu-o com esposas-irmãs, que não gostavam  dela e lhe trancavam os filhos em closets escuros; acusada de crimes falsos, foi enviada para casas de refúgio e afastada da família; a própria mãe foi considerada indigna quando lhe diagnosticaram cancro.
As histórias macabras e surreais sucedem-se nas cerca de 300 páginas deste livro. A NiT mostra-lhe, em exclusivo, um dos capítulos de “Filha do Profeta"                                                                                      
12. Terra de Refúgio
“Assim que fiquei apta a viajar, o Rich levou-me e ao nosso novo bebé de volta ao R23. Depois de cinco semanas no R17, no Texas, com a família do Pai, estava ansiosa por partir. Senti-me mal pelos meus irmãos e irmãs, que tinham de viver lá, rodeados de stress e do medo de serem expulsos à mínima infracção.
Mas a distância pouco fez para nos livrar do controlo do Pai. Quando ele deu o nome de Martha à minha segunda filha, eu disse ao Rich:
– Gostava tanto que pudéssemos ser nós a dar nomes aos nossos bebés. O Pai dá-lhes nomes tão feios e antiquados.
(A mãe do Rich chamava-se Martha.)

– Não digas isso, Rachel. É um privilégio ter o teu Pai a escolher os nomes para os nossos filhos. É o Pai do Céu que o inspira e devias sentir-te grata.
Graças ao antibiótico que a parteira me deu, desenvolvi uma infecção fúngica grave, chamada candidíase, que fez com que os meus mamilos inchassem de forma dolorosa e começassem a sangrar. Por isso, tornou-se difícil amamentar a minha recém-nascida. A intervenção médica não era uma opção, já que era suposto que nos mantivéssemos escondidos do mundo exterior e o Pai dizia que os médicos estavam guardados apenas para situações de vida ou de morte (e mesmo aí, como provara com a doença da minha mãe, podia ser que ele não permitisse). Em vez disso, devíamos rezar a Deus pela cura.
O Rich ficou contente por eu não poder dar de             Com o marido, Rich          mamar, porque em Fevereiro o Pai tinha dado formação aos homens em «moral celestial» e tinha-lhes dito que nunca deveriam ter relações sexuais com uma mulher que estivesse grávida ou             
a amamentar. O Rich encorajou-me a alimentar a Martha com                 
biberão. 
A minha infecção durou vários meses, até que o Rich pediu a um dos homens que ia a Short Creek para pedir Diflucan a uma das enfermeiras certificadas que trabalhavam no Centro de Saúde de Hildale. O Diflucan acabou com a infecção mas nunca mais pude amamentar a minha bebé, porque tinha perdido o leite.
A nossa família vivia num apartamento no armazém com uma pequena cozinha/zona de refeições, uma pequena sala de estar e quatro quartos. O Rich pôs-me no quarto junto ao dele, e tanto a Susan como a Molly tinham os seus próprios quartos. A Trish ainda estava em Short Creek, mas tínhamos as duas filhas dela connosco, o que significava que todas as mulheres tinham duas ou mais crianças a partilhar os quartos.
As minhas esposas-irmãs estavam cada vez mais ciumentas. Elas pensavam que como não estava a amamentar eu e o Rich tínhamos sexo todas as vezes que estávamos sozinhos. Por causa disso, estavam sempre a inventar formas 
criativas de se vingarem de mim e das minhas filhas. Por vezes, o Rich levava-me com ele para tratar de recados para o meu Pai e dizia-me para deixar em casa a Barbie, que ainda não tinha dois anos. Quando voltava, via que a tinham deixado por sua conta durante a minha ausência. Ela tinha de se vestir sozinha e perceber como se limpar quando sujava as calças. Os sinais não deixavam margem para dúvidas: ela tinha um ar desgrenhado e o meu quarto e casa de banho estavam uma confusão.
Ficava furiosa, mas não havia nada que pudesse fazer. O Rich dizia-me apenas:
– Ama e perdoa as tuas esposas-irmãs. É a única maneira de ajudar a Barbie.
Quando não estávamos a competir pela atenção do Rich, todas nós aprendemos muito sobre sobrevivência durante aqueles primeiros anos no Dakota do Sul. A nossa água tinha de ser transportada de uma cidade distante e havia alturas em que o camião se avariava e chegávamos a passar dois dias sem água. No Inverno, juntávamos neve em panelas e derretíamo-la para termos água para limpar e cozinhar. Fez-me perceber quão ingrata tinha sido sempre em relação ao luxo de ter água corrente.
As quatro passávamos muito tempo a coser roupas para a nossa família. De início tudo parecia bastante terrível e amador, mas lá acabámos por aprender a coser depressa e bem. Até nos divertíamos ao fazê-lo, desde que o Rich não estivesse por perto, para nos tornar a todas ciumentas.
O Rich estava encarregue do armazém e pediu-me para gerir os registos do inventário e a contabilidade. Aprendi sozinha a usar o QuickBooks para registar tudo. Também me pôs na estufa, onde eu semeava sementes e colhia as plantas de flores, frutos e vegetais para o nosso jardim. Não percebia muito do assunto, mas aprendi através da tentativa e erro  e           Com três das esposas-irmãs                             de todos e quaisquer livros que encontrasse sobre o assunto.
As minha esposa-irmã Molly mugia as vacas e tomava conta das galinhas. Levava muitas vezes as crianças com ela para a ajudar a dar comida e levar a cabo outras tarefas relacionadas com os animais. Elas gostavam muito.
Isto revelou-se uma bênção, uma vez que no início de 2005 o Pai nos enviou uma revelação de que o Senhor não queria que as crianças tivessem qualquer tipo de brinquedo. Ele disse que Deus considerava as bonecas uma paródia da Sua imagem e um ídolo. Bicicletas, skates, jogos – qualquer coisa divertida ou que as mantivesse entretidas era vista como obra do diabo.
[…]
A única coisa que nos restava para fazer era trabalhar, e havia trabalho de sobra, mesmo que fosse só para assegurar que tínhamos tudo aquilo de que precisávamos, incluindo medicamentos. Cultivávamos todas as ervas que o clima do Dakota do Sul permitia. Quando as crianças adoeciam, fazíamos-lhes chás de ervas e desenvolvíamos os nossos remédios naturais para as curarmos. Certo dia, enquanto fui a uma reunião geral, deixei as minhas filhas com a minha irmã Melanie, que agora vivia lá. A Melanie irrompeu pela reunião, com a Martha ao colo, que gritava sem parar. A minha irmã tinha adormecido enquanto a pequena Martha saltava na cama. Ela tinha saltado para fora da cama, aterrado num aquecedor e o pé ficara preso. A Melanie acordou quando ouviu os gritos da Martha.
Agarrei na minha filha e corri para a casa de banho, para pôr o pé dela debaixo de água fria. Assisti à pele dela a cair do pequeno tornozelo e da parte de baixo do pé.

As outras mulheres trancavam uma das filhas de Rachel um closet o dia todo

A Melanie sentiu-se culpada e ajudou-me a cuidar da Martha. Fiz-lhe um unguento com ervas e mudava-lho a cada cinco horas. Por sorte, passados dois dias já a Martha andava e as queimaduras sararam tão bem que quase não deixaram cicatrizes, embora ela tenha perdido a sensibilidade em algumas zonas por causa da gravidade dos ferimentos em certas terminações nervosas.
A maior parte das mulheres da igreja ficava de esperanças quando o filho mais novo tinha cerca de um ano. Mas depois da Martha não fui capaz de engravidar, o que fez as minhas esposas-irmãs ficarem ainda mais ciumentas e mais inclinadas a acharem que eu e o Rich andávamos a ter sexo a toda a hora. (Não andávamos.) Comecei a ficar desesperada por engravidar, nem que fosse porque não queria que estivessem todos zangados comigo. As esposas também estavam zangadas com o Rich e ele começou a passar cada vez menos tempo comigo para lhes agradar.

Entretanto, os problemas do Pai agravavam-se. Em Junho de 2005, as autoridades agiram por fim contra ele. Um grande júri do condado de Mohave, no Arizona, acusou-o de má conduta sexual com uma menor, de conspiração para cometer má conduta sexual com uma menor e de arranjar um casamento plural entre uma adolescente e um homem mais velho. Nesse mesmo mês, procuradores federais acusaram-no de fuga ilícita para evitar a acusação. O procurador-geral do Utah pediu a um juiz para congelar os bens da igreja, que ascendiam a mais de 100 milhões de dólares. Durante anos a igreja deteve e operou uma série de negócios, incluindo construção e usinagem, que resultaram em enormes receitas usadas para financiar a compra e construção das várias terras de refúgio e outras propriedades da igreja. Em Julho, o Utah e o Arizona juntaram-se para anunciar em conjunto uma recompensa de 10 mil dólares por inf. que levasse à detenção do pai.
Em Novembro, o irmão mais novo do Pai, Seth, foi mandado parar no Colorado, com mais de 140 mil dólares em dinheiro, cartões de telefone pré-pagos e cartões de crédito, e molhos de cartas dirigidas ao Pai, fosse como «Warren Jeffs» ou como «O Profeta». Seth admitiu às autoridades estar a levar estas coisas ao Pai mas recusou-se a revelar-lhes o seu paradeiro.
[…]
O Pai veio ao Dakota do Sul visitar-nos em Maio de 2006, mais ou menos na mesma altura em que o procurador-geral dos EUA o acusou de fuga ilícita e que o FBI o incluiu na lista dos 10 mais procurados, com uma recompensa de 100 mil dólares por informações que conduzissem à sua captura.
O Pai não nos contou nada disto e, uma vez que não tínhamos acesso à televisão ou à rádio, não tínhamos maneira de saber. Em vez disso, disse-nos a todos para escrevermos cartas de confissão, enume-     Ao lado do pai, Warren Jeffs. Com 12 anos  rando-lhe os nossos pecados. Na minha carta, disse-lhe que estava zangada com as minhas esposas-irmãs por causa da forma como me tratavam e às minhas filhas. O Pai,   
  que agora  era procurado pelo governo federal, lado a lado com assassinos e traficantes de droga,
     mandou-me uma mensagem de penitência, onde dizia que eu não era digna de o ver e que toda a nossa família tinha pecado.
O nosso castigo seria insano.”