2007-12-31

O desejo de futuro

Manuel Gusmão*
(Público 2007-12-30)

De há uns tempos para cá, vozes muito dissemelhantes parecem insinuar, se não explicitamente afirmar, que não há futuro para ninguém ou que vivemos tempos em que ninguém se arrisca a qualquer gesto de protensão ou actividade de prognose. Conheceríamos uma era em que teríamos já desistido ou teríamos de desistir de tentar imaginar ou desejar um rosto para o futuro. Esta situação dever-se-ia a um medo que inibe a própria imaginação e de que padeceríamos para além de todo e qualquer pessimismo individual ou grupal.
E contudo se não houver futuro, se não tivermos futuro, seremos como dizia o outro, “cadáveres adiados que procriam”. Porque aquele medo se torna uma patologia do desejo, uma tão brutal antecipação simbólica da morte que inibiria todo o imaginário, amputaria a capacidade de simbolização e tornaria toda a esperança uma ilusão ou um produto do sono da razão. Ora nós precisamos do futuro como do ar que respiramos.
A perda do desejo de futuro seria, segundo alguns, uma lição aprendida com a experiência social e histórica disponível. Pois não é verdade que todas as revoluções acabaram traídas pelos revolucionários? Pois não é verdade que a história do séc. XX é uma história de catástrofes e de massacres, é a história do fim das ideologias emancipatórias? Eis a “experiência histórica disponível” reduzida a essa pobre e desgraçada fórmula da resignação fatalista
- “sempre houve pobres e ricos e portanto sempre os há- de haver”. Respondamos perguntando o que significa “disponível”. Não seria melhor dizer “disponibilizada” pelos senhores da comunicação planetária?
E contudo não há experiência histórica, não há história sem a categoria do futuro, mesmo que essa categoria seja a de uma falta ou ausência, que se desloca e move no passado a reconstruir, e no presente que reencena o passado. Porque a história viva, ao reencenar o passado, só o pode articular através da disputa de determinados possíveis, uns que se concretizaram, outros que foram derrotados. Essa disputa interessa ao conflito entre os possíveis do presente em que o historiador ou o sujeito da experiência histórica se inclina sobre o passado, ao mesmo tempo que escrutina o seu presente. O que aconteceu podia não ter acontecido; mas de facto aconteceu.
Mas apagar a luta dos possíveis significa fixar, imobilizar ou paralisar o que aconteceu; a história desaparece na repetição do mesmo. Tal paralisia, desencadeando a repetição, tomando fatal todo o acontecido, torna a história uma narrativa profética, uma profecia dos vencedores: será sempre assim, porque sempre assim foi. Aliás, a tese sobre o “fim da história” começa por ser uma história mal contada e, mais do que um diagnóstico, representa unia tentativa de eternização de um presente reduzido e um bloqueamento do futuro por esgotamento dos possíveis. Nós, na “tradição dos oprimidos” (Walter Benjamin), aprendemos a não ceder aos desastres, aprendemos a trabalhar para este tempo contínuo das derrotas e a perscrutar os momentos em que algo de diferente foi possível, mesmo que por umas semanas ou meses ou décadas. O trabalho da esperança que magoa ensina-nos que o que foi possível, e logo derrotado, será possível (de outra forma) outra vez.
Para outros, a ausência de abertura ao futuro se ria resultado de uma limitação própria da acção humana orientada por fins gerais e últimos. O sujeito pós-moderno teria finalmente reconhecido que as acções humanas seriam no limite inconsequentes ou, no mínimo, de fraca consequência, quando não perversamente contraproducentes, uma vez que a evolução das sociedades seria um processo de tal forma multivectorial e complexo que seria de facto incomensurável para a inteligência, a consciência e acção humanas. As tentativas de orientar os processos sociais, para além de alguns ajustes e correcções com objectivos à vista, seriam uma tentação voluntarista, própria de um sujeito moderno, que implicaria de raiz uma violência destruidora, desencadeada sobre “o curso natural (= fatal) das coisas” e traria no seu cerne a ameaça do totalitarismo.
E contudo tudo se transforma. Transforma-se o mundo em nós e fora de nós. E da mudança dos tempos e das vontades, nós participamos. Não como animais caminhando para o abate, nem como demiurgos incondicionados. Mas como agentes procurando
o máximo de consciência possível, estendendo as mãos e tacteando os possíveis; fazendo de acordo com os tempos a vinda de um outro tempo. Não somos adivinhos, nem sabemos rigorosamente prever qual será o rosto do futuro, mas isso não nos impede de o desejar. O carácter profundamente transformador do trabalho humano, o facto de uma criança de dois anos ser capaz de produzir uma frase que nunca ouviu, o facto de a poesia reinventar a língua em que se escreve, o facto de as artes serem construções antropológicas e de os humanos se configurarem e reconfigurarem, segundo uma auto poiesis histórica, são fundamentos suficientes para que nos possamos, sem mais garantias, prometer um futuro, “uma terra sem amos”. Porque nós habitamos o mundo, e o mundo é a nossa tarefa.
*Ensaísta

2007-11-11

NÃO FOI BEM ASSIM

Diz João Leal no MONDE diplomatique de Novembro de 2007 (Edição portuguesa) na página 21. acerca do livro FOI ASSIM de Zita Seabra.
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Agora que cessou o interesse mediático suscitado por Foi Assim (Alêtheia Editores, Lisboa 2007), vale a pena comentar e corrigir informações e juízos que o livro contém, designadamente em relação à União de Estudantes Comunistas (UEC), de que Zita Seabra foi dirigente. Estando ainda por fazer uma história da UEC, e dada a importância que esta organização autónoma do PCP teve no desenvolvimento do movimento estudantil português entre 1972 e 1980, parece-me de facto importante indicar os limites da particular versão da história da UEC transmitida no livro de Zita Seabra. Faço-o na minha qualidade de activista do movimento estudantil entre 1971 e 1979 e de militante e dirigente da UEC entre 1974 e 1980. Além do que a minha memória guardou, tive o cuidado de consultar outros ex-militantes e ex-dirigentes da UEC e de compulsar documentação vária.

O relato da história da UEC a que Zita Seabra procede em Foi Assim caracteriza-se, antes de mais, por algumas inexactidões factuais. Aponto de seguida algumas delas (que se referem apenas a situações que eu vivi directamente).

Assim, Zita Seabra afirma que, em 1972, «A UEC tinha praticamente uma só associação de estudantes, no ISCSPU. Nesta escola, quando Veiga Simão enviou os “gorilas” o director Adriano Moreira opôs-se e ameaçou demitir-se se eles entrassem, coisa que efectivamente fez» (p. 185). Nesta frase há duas inexactidões. Primeira: antes do 25 de Abril, a UEC não «tinha» a associação de estudantes do ISCSPU. Esta era composta por um conjunto diversificado de activistas estudantis de esquerda, nenhum dos quais era então militante da UEC. Segunda: Adriano Moreira não era director do ISCSPU aquando da introdução dos «gorilas» nesta escola. Quem introduziu os «gorilas» no ISCSPU foi o seu então director Vasco Fortuna. Quanto a Adriano Moreira, tinha sido afastado da direcção da escola na sequência da crise académica de 1969. Não pôde pois, «efectivamente», demitir-se de um cargo que já não ocupava.

Na página 191 de Foi Assim, Zita Seabra escreve, referenciando-se ao período imediatamente anterior ao 25 de Abril: «A pouco e pouco, começámos a ter bons quadros e o organismo dirigente era fantástico: Francisco Bettencourt, o Sérgio, a Geninha Varela Gomes que controlava os liceus, a Milá do ISCSPU e a Inês de Letras». Há aqui um erro de datação: tanto «a Milú do ISCSPU» como a «Inês de Letras» não pertenceram, nem poderiam ter pertencido, a nenhum organismo dirigente da UEC antes do 25 de Abril, uma vez que só aderiram à UEC em 1974.

Na página 245, Zita Seabra refere que, em 1974, aquando de um «ataque» da UEC ao Técnico, «alguns UECs ficaram gravemente feridos», Não é verdade: dois estudantes da UEC — eu próprio e uma militante do Técnico — foram de facto «capturados» por militantes maoistas e conduzidos a um anfiteatro do Técnico, onde se iniciou um «julgamento popular» que foi depois abandonado a meio. Houve empurrões, bofetadas, mas ninguém ficou «gravemente ferido».
Na página 255, Zita Seabra escreve, a propósito do Serviço Cívico Estudantil, que este teria vindo «Na sequência das campanhas de alfabetização do MFA». Também não é verdade: quem organizou as campanhas de alfabetização do Verão de 1974 não foi o MFA, mas a Comissão Pró-União Nacional dos Estudantes Portugueses (Pró-UNEP), «controlada» então pela UEC.

Mas, mais além destas incorrecções, o livro de Zita Seabra fornece uma versão da história da UEC entre 1976 e 1980 (metade da história da UEC) que não corresponde à realidade. De acordo com essa versão, em Agosto de 1977, na sequência do assassinato de Sita Vales em Angola, a UEC teria entrado em profunda crise e, pouco depois, teria desaparecido. Assim, nas páginas 314-315, Zita Seabra escreve que «Em silêncio ou com gritos abafados, a organização entrou em crise. [...] A maioria dos militantes e dos funcionários saiu nessa altura da organização».E antes na página 311, tinha já estabelecido um vínculo entre a morte da Sita Vales e o fim da UEC: «na sequência dessa tragédia», «muitos militantes saíram, abandonaram a organização […] Saíram militantes, dirigentes e funcionários, e a UEC acabou pouco depois».

Tenho o maior respeito pela memória da Sita Vales — com quem trabalhei directamente — e, entre os militantes mais «velhos» da UEC, que a tinham conhecido, o seu assassinato foi de facto experienciado com perplexidade e revolta. Mas, por um lado, essa situação foi vivida de forma mais contraditória do que é sugerido por Zita Seabra: nos dois lados do confronto em Angola havia ex-militantes da UEC. Por outro lado, por maior que continue a ser a minha revolta em relação ao assassinato da Sita Vales, não é possível estabelecer um nexo causal entre as reacções que este suscitou em muitos militantes da UEC e o fim da organização.

De facto, a UEC só acabou em Maio de 1980, quando foi criada a Juventude Comunista Portuguesa (JCP). E a história da UEC nos anos que antecedem o seu fim é diferente daquela que Zita Seabra conta no seu livro.

Em 1976, na sequência de numerosos erros políticos cometidos durante o PREC, a UEC tinha batido no fundo. Era uma organização desmoralizada, em que eram cada vez mais audíveis as vozes críticas em relação à direcção, com uma imagem de sectarismo muito vincada e uma influência reduzidíssima no movimento estudantil. Em consequência, no 2º. semestre de 1976, iniciou-se um processo de profunda autocrítica e reestruturação da linha política da organização, acompanhado de perto pela direcção do PCP. Esse processo foi secundado pela saída gradual de alguns dirigentes históricos da UEC, que atingiu o seu ponto culminante em Junho de 1977, com a eleição de um novo Secretariado da Comissão Central da UEC, onde passou a «pontificar» Joaquim Pina Moura, entretanto eleito membro suplente do Comité Central do PCP. Uma das dirigentes substituídas na altura foi justamente Zita Seabra, que, de resto, desde finais de 1976, perdera grande parte da sua influência na direcção da UEC, uma vez que esta tinha passado a ser acompanhada directamente por Jorge Araújo, da Comissão Política e do Secretariado do PCP.

No decurso do ano lectivo de 1976-77, graças tanto ao «refrescamento» da direcção da UEC como às consequências práticas do processo de auto-crítica encetado, a UEC começou a descolar do fundo. Essa descolagem foi particularmente significativa ao nível da chamada «influência de massas». Em Junho de 1977, 26 por cento do total de estudantes eleitos para as Assembleias de Representantes das escolas do ensino superior tinham sido eleitos em listas dinamizadas pela UEC e 12 Associações de Estudantes (AAEE) do ensino superior — num total de 33—eram agora influenciadas pela UEC. No ensino secundário, os números também eram expressivos: as listas organizadas pela UEC estavam representadas em 97 Conselhos Directivos e 50 — de um total de 119 AAEE — eram influenciadas pelos estudantes comunistas. De 1977 a 1980, a influência da UEC no movimento estudantil não cessou de crescer. De tal maneira que, em 1980, nas vésperas do Congresso de fundação da JCP, 21 em 42 AAEE do ensino superior eram influenciadas pela UEC, com destaque para Lisboa, onde a UEC detinha uma clara maioria, influenciando 15 em 22 AAEE. Também no final desse ano lectivo e ainda no ensino superior, 35 por cento dos estudantes eleitos para as Assembleias de Representantes tinham sido também eleitos em listas organizadas pela UEC. Para o ensino secundário há dados menos seguros, mas parece ter-se assistido a um crescimento idêntico da influência da UEC.

No chamado «plano orgânico» foi também de crescimento a nota dominante. Em 1978 — ano em que se realizou o 1° e único Congresso da UEC — era de cerca de 8000 o número de militantes da UEC, 2000 dos quais tinham aderido à UEC entre Setembro de 1977 e Janeiro de 1978. Nas vésperas do Congresso fundador da JCP, esse número tinha crescido para perto de 12 000 inscritos, máximo histórico com o qual a UEC pôs fim à sua existência.

Para escrever este texto falei com vários ex-militantes e ex-diligentes da UEC, alguns deles — como eu — sem qualquer vínculo actual com o PCP. Muitos deles não tinham lido Foi Assim e foram lê-lo. Muitos deles, também, sugeriram que «a Zita» tinha escrito o livro — na parte tocante à UEC — de má fé. Não creio que seja má fé. O escritor Mário de Carvalho — numa frase particularmente feliz — escreveu uma vez que há pessoas que confundem o «Manuel Germano com o Género Humano» (cito de cor). Penso que aconteceu isso com «a Zita»: confundiu a história da sua relação com a UEC com a história da UEC. É natural. Mas é também natural que quem não se reconheça nessa história apresente as razões porque o Género Humano não se reduz ao Manuel Germano.
• JOÃO LEAL

2007-11-05

A GRANDE NEGOCIAÇÃO COM O IRÃO

Shlomo Ben-Ami *

O espectro de uma bomba nuclear atemoriza árabes e israelitas sem distinção, mas são os Estados Unidos e Israel a força motriz por trás dos esforços para travar as ambições nucleares do Irão. O triângulo América-Irão-Israel é onde está a chave do problema e onde pode residir a sua solução.
Embora a revolução islâmica do ayatoilah Khomeini, em 1979, tenha desfeito a velha aliança de Israel com o Irão, os dois países continuaram a fazer negócios com a bênção americana. O caso Irão-Contras dos anos 1980, quando Israel fornecia anuas à República Islâmica na sua guerra com o Iraque, é um exemplo. Israel e o Irão, duas potências não-árabes num ambiente árabe hostil, partilhavam interesses fundamentais que a revolução islâmica não podia alterar.
Foi durante o governo de Yitzhak Rabin, no início dos anos 1990, que Israel e o Irão entraram em conflito aberto, devido a uma mudança de estratégica regional após a vitória da América na guerra do Golfo de 1991 e do colapso da União Soviética.
O processo de paz israelo-árabe patrocinado pelos EUA resultou numa série de extraordinários progressos - a Conferência de Paz de Madrid, os Acordos de Oslo, o tratado de paz de Israel com a Jordânia e a sua quase reaproximação à Síria, e ainda a entrada de Israel em Estados árabes, de Marrocos ao Qatar - que se tornaram no pior pesadelo de um Irão cada vez mais isolado.
Foi nesta encruzilhada que Israel e o Irão, duas potências aspirantes à supremacia num Médio Oriente em rápida mudança, decidiram colocar a sua competição estratégica em termos ideológicos. O conflito é agora entre Israel, um raio de democracia a lutar contra a expansão de um império obscurantista xiita, e um Irão que optou por proteger a sua revolução mobilizando as massas árabes em nome de valores islâmicos e contra os vis governantes que atraiçoaram os despojados palestinianos.
Mais um inimigo da reconciliação israelo-árabe do que propriamente de Israel, o recurso dos mullahs a um incendiário discurso antijudaico e pan-islâmico destina-se a pôr fim ao isolamento do Irão e a apresentar as suas ambições regionais de um modo atractivo às massas sunitas.
Num Médio Oriente árabe, o Irão é o inimigo natural; num mundo islâmico, o Irão é um potencial líder. Ironicamente, o Irão tem sido o principal apoiante da democracia árabe, porque a melhor maneira de prejudicar os actuais regimes é promover movimentos islamistas de base popular, como o Hezbollah no Líbano, a Irmandade Muçulmana no Egipto, o Hamas na Palestina e a maioria xiita no Iraque.
Yitzhak Rabia acreditava que a paz israelo-árabe poderia impedir um Irão nuclear, mas agora o seu pesadel6parece aproximar-se rapidamente. Como uma potência anti-statu quo, o Irão não procura capacidade nuclear para destruir Israel mas para ganhar prestígio e influência num ambiente hostil e como escudo no seu desafio à ordem mundial.
No entanto, Israel tem todas as razões para se inquietar porque um Irão nuclear vai destruir a promessa do sionismo de garantir um refúgio aos judeus o núcleo da própria estratégia israelita de “ambiguidade nuclear”
- e reforçará os seus inimigos por toda a região. Também provocaria uma incontrolável proliferação nuclear, com a Arábia Saudita e o Egipto a liderarem a corrida.
Um ataque militar às instalações nucleares do Irão é muito perigoso e os seus resultados incertos. E, por mais severas que sejam, as sanções económicas não farão o Irão ajoelhar-se. Também não é claro que a divisão na elite iraniana entre puristas revolucionários e aqueles com mentalidade de classe mercantil possa conduzir em breve a uma mudança de regime. Contudo, ser radical não significa, necessariamente, ser irracional, e o Irão revolucionário já deu frequentemente provas do seu pragmatismo.
Na equação americano-iraniana foram os Estados Unidos, não o Irão, a conduzir uma rígida diplomacia ideológica. O Irão apoiou os EUA durante a guerra do Golfo de 1991, mas ficou de fora da Conferência de Paz de Madrid. O Irão também apoiou a América na sua guerra para derrubar os taliban no Afeganistão. E quando as forças norte-americanas derrotaram o exército de Saddam Hussein na Primavera de 2003, os cercados iranianos propuseram uma grande negociação que colocaria todas os contenciosos na mesa, da questão nuclear a Israel, do Hezbollah ao Hamas. Os iranianos também prometeram deixar de obstruir o processo de paz israelo-árabe. Mas a intransigência dos neoconservadores - “Nós não falamos com o Diabo” - excluiu qualquer resposta pragmática à démarche iraniana.
O sentimento iraniano mudou quando toda a estratégia da América para o Médio Oriente naufragou, mas a grande negociação continua a ser a única saída viável para o impasse. Isto não se conseguirá, porém, através de um inevitável regime de imperfeitas sanções, ou pelo recurso da América à lógica da Guerra Fria com vista a quebrar a espinha do Irão arrastando-o para uma ruinosa corrida às armas.
A crescente influência regional do Irão não deriva das suas despesas militares, que são muito inferiores às dos seus inimigos, mas do seu desafio à América e a Israel através de um astuto uso de soft power.
Não há melhor maneira de esvaziar a estratégia regional do Irão de desestabilização do que uma ampla paz israelo-árabe acompanhada de maciços investimentos em desenvolvimento humano e seguida de um sistema internacional de paz e segurança num Médio Oriente livre de armas nucleares, incluindo Israel.
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* Ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel

PÚBLICO/Projectsyndicate
www.project-syndicate.org

2007-09-13

A PROPÓSITO... DISCUTAM-SE OS TRANSGÉNICOS !

Artigo de VICTOR LOURO, Engº Silvicultor, antigo deputado à AR, publicado esta semana no Público:
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"É curiosa a crispação de algumas entidades relativamente à acção desencadeada no Algarve contra o milho transgénico. O que leva essas pessoas a se preocuparem exclusivamente com uma das facetas da mesma, exactamente a do atentado à propriedade privada ?
A quantidade de tempo dedicado ao facto pela SIC; as “resmas” de texto elaboradas por Pacheco Pereira; as declarações ministeriais; e até os recados presidenciais, não condizem com aquilo que eu, cidadão comum, entendo da questão. Não está, para mim, em causa a questão do direito à propriedade privada: também sou proprietário, e mais do que isso, sou um cidadão que faz questão de respeitar a legalidade democrática.
Então não acreditamos que as autoridades competentes aí estão para desencadear as acções adequadas ? E achamos que o proprietário – lesado – não é capaz, por si só, de apresentar as devidas queixas ? Cremos, ou não, que o Estado de Direito é uma realidade e não precisa de muletas ? Acreditamos mesmo naquilo que se invoca, ou usa-se como alibi para esconder uma atitude paternalista, descrente das potencialidades e capacidades que dizemos existirem ?
Sei que a questão da propriedade da terra é das mais sensíveis da sociedade portuguesa. Mas não é isso que desejo abordar agora. Só o refiro para deixar claro que a minha posição não é tão naif como pode parecer.
O essencial, porém, é aquilo que motivou a acção de protesto: o recurso aos organismos geneticamente modificados (OGM), no caso o milho transgénico.
Não tenho qualquer razão para duvidar da legalidade da plantação, nem sou polícia. Nem tenho que questionar o direito do agricultor proprietário da plantação por ter feito essa escolha: tomou a opção dentro do quadro que a legalidade lhe oferecia, de acordo com os seus critérios de gestão.
O que me preocupa, isso sim, é o recurso aos OGM, mesmo que legal. Ou pior: porque é legal.
A questão dos OGM tem passado um tanto em claro na opinião pública portuguesa. E devemos perguntar-nos porque é que ela tem preocupado os povos, ou as élites de tantos países ? São todos diletantes, esses que pelo mundo fora se têm preocupado com isso ? Ou somos nós ignorantes, ao ponto de não nos preocuparmos ? Se – como os arautos da cruzada anti-acção não se cansam de sublinhar – não há unanimidade científica sobre os efeitos dos transgénicos, isso legitima que se avance, designadamente na concepção legislativa, sem discutir o assunto na Sociedade ? A apregoada capacidade decisória do Governo é motivo para escamotear os assuntos mais sensíveis da discussão pública ?
Haverá mesmo algum tema em relação ao qual as comunidades científicas sejam unânimes ? E mesmo que houvesse, será que os cidadãos comuns, exteriores às comunidades científicas, não têm uma palavra a dizer ? Quem elege os decisores ? Quem paga os impostos ?
Então, onde está a oportunidade para os cidadãos discutirem este problema ? Agora que ele está legislado, parece que tudo o que se disser ou fizer contra o avanço dos OGM será contra a lei ! Desculpem, mas essa, não !
Nestas observações não se pode, evidentemente, ver qualquer apologia do desrespeito da propriedade privada, ou mesmo das leis do País. Mas não é sabido que as leis são fruto dum ambiente e dum processo social ? São as leis imutáveis ? Quantas vezes o legislador se encosta à falta de conhecimento público para impôr soluções que doutro modo não passariam ? Não é esse, mesmo, um dos critérios para aferir a distância a que o Poder (em qualquer parte) se encontra da Sociedade ? Podemos servir-nos do alibi de que a “Europa” decidiu que não há inconveniente na utilização dos OGM dentro de determinadas condições, para justificar o teor da própria legislação nacional ? Se assim fosse, porque se estaria discutindo sobre a “Constituição Europeia” preparada nas costas dos cidadãos europeus ? Se assim fosse, porque se discutiriam as causas do afastamento dos cidadãos relativamente aos produtores das medidas políticas (legislativas e outras) ?
Aquilo que é legal não é indiscutível. Doutro modo as leis não evoluiriam.
E em Portugal assistimos, por exemplo, nas décadas de 80 e 90, a acções contra a eucaliptização indiscriminada, nem todas respeitadoras da legalidade instituída. No entanto, foi graças a tais acções (algumas também atentatórias da propriedade privada), que a eucaliptização selvagem foi sendo travada, dando origem a legislação mais atenta ao Bem Público. Mas nem nessa altura se viu a berraria a que temos assistido a propósito desta acção relativa ao milho transgénico !
Depois de o movimento social tornar os cidadãos mais conscientes da problemática dos OGM; e os cientistas terem de ter mais cuidado na expressão das “verdades científicas”: poderão os ministros dum Governo democrático serem tão categóricos nas afirmações de inofensividade desses OGM, ou aterem-se à mera questão do respeito da legalidade ? Ou não terão de vir ao encontro do pulsar da Sociedade, e entrarem positivamente no debate (que eles próprios deviam promover, ou, pelo menos, estimular; ou, no mínimo, aceitar democraticamente) ?
Custa-me ver, neste Portugal democrático, e pela acção de pessoas por quem tenho o maior respeito democrático, que os actores troquem os papeis, e, embora o reclamem, não deixem às polícias o que lhes compete, evitando interrogatórios ardilosos daqueles a quem convidam para “entrevistar”, por exemplo. O passado contra que lutei (tantos de nós lutaram, até provavelmente alguns desses que agora tomam essas atitudes) impõe-me o dever de não pactuar com novos denunciantes. E porque de certeza não lhes fico atrás nas preocupações sobre o reforço das condições democráticas, condeno aqueles que em momentos críticos, tendo junto da opinião pública a audiência que têm, não contribuem para o debate democrático, antes o enviesam – e é, para mim, tanto mais imperdoável, quanto mais inteligentes são esses personagens, e mais acesso têm à opinião pública.
É tempo para criar oportunidades de debater o problema que era a própria razão de ser da acção criticada: porque são perigosos os OGM ? Porque devemos todos envolver-nos nesse esclarecimento ? Qual a necessidade de fazer prevalecer o princípio da precaução ?
Depois de se dar a poluição genética das culturas tradicionais...será tarde: Inês é morta ! E o ensurdecedor silêncio oficial não ajuda – antes contraria – uma tomada de consciência esclarecida por parte dos cidadãos – e, também, dos próprios decisores, mesmo que sejam ministros. Em nome do desenvolvimento da Cidadania, gaste-se pelo menos tanto tempo quanto se tem gasto em torno deste caso, na polemização dos OGM: eu (já que não posso ousar falar pela Sociedade, porque não estou investido de tal mandato !) agradecerei, e creio que os nossos filhos também.
Se não, quem se ri são as Multinacionais – essas, sim, sem rosto ! – que vendem os OGM mais os pesticidas necessários para acompanhar as respectivas culturas, tudo à custa não apenas do bolso dos compradores, mas, pior, da Saúde Pública e do Ambiente que é de todos e não pode ser substituído por outra coisa qualquer.
Preocupemo-nos menos com quem paga as despesas dos activistas (lembram-se quando a PIDE invocava que os democratas recebiam dinheiro da Rússia ?...), e mais com a razão que lhes possa assistir na defesa dum Mundo melhor."

2007-08-21

Resposta a Vital Moreira (1)

O Público de Domingo (2007-08-19) publicou um artigo de opinião de José Manuel Correia Pinto* em que contesta posições políticas de Vital Moreira expressas - presume-se - principalmente nos seus artigos de opinião, no Público e outros órgãos de comunicação social.
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* JMCP - É alto funcionário do Ministério dos Negócios Estranjeiros, com carreira ligada principalmente à cooperação internacional, é jurista e docente universitário, amigo de Vital Moreira desde as lides e lutas académicas de Coimbra dos anos 60/70.
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Eis o artigo de Correia Pinto que teve entretanto resposta de Vital Moreira, primeiro no Causa Nossa e hoje, de forma mais desenvolvida, no Público (para o qual colocarei um link logo que esteja na Aba da Causa).
Eis o artigo de Correia Pinto saído no Público:

O PODER DISCRICIONÁRIO

(Resposta a Vital Moreira)

Constituiu motivo de preocupação o artigo que o VM escreveu no Público sobre os poderes da Administração, nomeadamente no exercício do poder discricionário bem como na prática dos chamados actos de governo. Tanto pelo que nele se diz, como, principalmente, pelo que nele se omite. Comecemos pelo poder discricionário. Não adianta recordar ao Vital que o poder discricionário constitui quase uma aberração, uma excrescência de tempos passados, num Estado de direito democrático moderno, devendo, por isso, o seu controlo pelos tribunais fazer-se até aos limites do juridicamente admissível.

É certo que o poder discricionário concedido pelo legislador à Administração ou a aplicação por esta de conceitos jurídicos indeterminados constantes de normas legais lhe conferem uma liberdade de actuação maior do que aquela que ela dispõe nos chamados casos de competência vinculada, que constituem a regra. Este espaço de liberdade para a acção ou para a decisão que caracteriza o poder discricionário não significa, porém, que a Administração possa actuar arbitrariamente. Sem respeito por regras nem por princípios, ao abrigo do livre arbítrio de quem decide. Esse modo de actuação não existe no moderno Estado de Direito. Mas no moderno Estado de direito também não existe um poder discricionário puro – o que há é um poder discricionário”conforme ao seu dever” ou “um poder discricionário juridicamente vinculado”. Ou seja, esta maior liberdade de actuação que a lei confere à Administração tem limites: desde logo, os impostos pelo conceito de Estado de direito e pela lei, nomeadamente a constitucional, bem como os decorrentes do fim em vista do qual o poder discricionário foi conferido.

A Administração está, em todos os casos, constitucionalmente obrigada a uma actuação regida pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade, assim como está igualmente obrigada a actuar com respeito pelo conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Tanto uns como outros constituem barreiras objectivas ao exercício do poder discricionário. Aliás, o respeito pelos direitos fundamentais e por outros princípios constitucionais pode mesmo reduzir a zero o poder discricionário, nomeadamente naqueles casos em que qualquer actuação que não a “devida”implique um uso indevido do poder discricionário.
Por outro lado, na jurisprudência e na doutrina dos Estados democráticos começa a ganhar cada vez mais relevo, dentre os limites do poder discricionário, o imposto pela configuração do caso concreto. Ou seja, a Administração está igualmente vinculada pela necessidade de encontrar a melhor solução para o caso concreto. Uma solução que atenda ao interesse público, mas que contemple também o interesse privado. O particular tem o direito de exigir um uso correcto do poder discricionário. E o uso correcto é o que atende equitativa e proporcionalmente aos interesses em presença. O facto de o poder discricionário conceptualmente se caracterizar por uma pluralidade de soluções suportadas pela lei não significa que todas elas sejam igual e indiferentemente adequadas para todos os casos. Significa que algumas delas são adequadas para certos casos e outras para outros casos compreendidos na lei. A discricionariedade ao nível da norma não significa necessariamente que ela exista com a mesma amplitude perante o caso concreto. Pode até acontecer que a configuração do caso concreto não apenas exclua certas soluções, como, além disso, imponha uma como única adequada. Dai que se torne legítimo por parte do tribunal a formulação de um juízo de razoabilidade que sirva, no caso em apreço, de padrão aferidor da justeza da decisão administrativa. O particular tem, no sentido exposto, direito a um uso correcto do poder discricionário – um uso que atenda equitativa e proporcionalmente aos interesses em presença.

Não, não adianta lembrar nada disto ao Vital. Ele conhece muito bem tudo isto e muito mais. Lamento é que o não tenha dito. Como não adianta falar-lhe nas mais grosseiras violações do exercício do poder discricionário caracterizadas pelo chamado desvio de poder que igualmente justificam a intervenção correctiva dos tribunais.

Passemos agora muito sumariamente aos actos de governo. Também aqui não vale a pena recordar que a invocação do móbil político da decisão administrativa deixou há muito de ser elemento determinante da caracterização do acto como acto de governo, logo insindicável. De facto, este entendimento muito lato da razão de Estado não pode hoje ser invocado como critério para afastar o controlo jurisdicional de tais actos. Em França já as coisas assim se passam desde que o Conseil d’État, no célebre acórdão de 19 de Fevereiro de 1875 (!), “Prince Napoléon”, deixou de considerar o móbil político invocado pela Administração como fundamento suficiente para afastar o controlo jurisdicional de tais actos.

Em suma, o que por outras palavras eu quero dizer é que as pressões tendentes a limitar a actuação dos tribunais não são bem-vindas, principalmente naqueles domínios onde o tal princípio da separação de poderes, que o VM tanto invoca, mais justifica uma actuação livre dos órgãos encarregados de velar pelo respeito da legalidade democrática. Esta defesa ilimitada dos actos da Administração não augura nada de bom. É dela que sempre partem as grandes agressões aos direitos dos cidadãos. Se os tribunais se inibem de os defender, pressionados por um clima doutrinal ou político hostil, a democracia representativa fica reduzida a uma caricatura. Este artigo do VM, em articulação com outros, nada felizes, sobre a liberdade dos jornalistas, a autonomia universitária, a cerceação da democracia participativa, dá uma visão distorcida e limitada do poder dos tribunais no controlo da legalidade democrática e pode ajudar a abrir a porta aos piores entendimentos ou aos maiores retrocessos nesta matéria. Por isso, é tempo de dizer basta! E de desejar que tudo não passe de um mal “passageiro”. Ligam-me ao Vital Moreira laços de amizade e camaradagem há mais de quatro décadas. O meu compromisso com a cidadania não me permitiu, porém, ficar calado…
José Manuel Correia Pinto.
(Jurista)

2007-08-20

Moral e Política na queda de Bush

Artigo de Sarsfield Cabral no Público de 2007-08-20.
__________________________
Há uma semana, demitiu-se o mais influente conselheiro do Presidente dos Estados Unidos. Amigo de George W. Bush há 34 anos, Karl Rove levou a governador do Texas e à Casa Branca (dois mandatos em cada cargo) alguém que, antes, havia falhado na política e nos negócios.
Rove demitiu-se porque nada mais tinha a fazer em Washington. A sua especialidade é ganhar eleições, e ganhou muitas. Mas, em Novembro passado, os republicanos perderam para os democratas as duas câmaras do Congresso. Agora, a pensar nas eleições de Novembro de 2008 (presidenciais e não só), nenhum candidato republicano quer ter por perto gente ligada a Bush.
A revolta republicana contra Bush tem a ver, claro, com o desastre no Iraque. Mas também na política interna este Presidente somou fracassos. Bush não conseguiu reformar a segurança social. Nem convenceu os seus correligionários a votarem uma nova lei de imigração. Além disso, a sua administração reagiu desastradamente aos estragos do furacão Katrina em Nova Orleães. Os quais viraram muitos americanos contra a posição anti-ecológica do Presidente.
Bush logrou baixar impostos, sobretudo para os mais ricos, mas ficou longe de equilibrar o orçamento federal, que Clinton deixara com um confortável excedente. A sua política gastadora, de big government, indispôs os conservadores tradicionais.
Karl Rove foi decisivo na mobilização das bases do Partido Republicano e na ligação à “direita cristã” (em boa parte fundamentalista), criando uma formidável máquina eleitoral e ideológica. Só que falhou o sonho de Rove: marginalizar os democratas do poder durante gerações e refazer a América em moldes conservadores. Porquê?
O Iraque não explica tudo. Nem os falhanços acima referidos ou alguns problemas do pessoal da Casa Branca (incluindo Karl Rove) com a justiça são razão suficiente para a baixa popularidade actual de Bush. A dimensão moral desses e de outros factos negativos é que assumiu uma importância política invulgar.
A bandeira da moral foi das principais armas políticas da direita conservadora apoiante de Bush. Arma utilizada ainda antes de ele ser Presidente, no caso Monica Lewinsky e na campanha contra o casal Clinton por causa de uns negócios no Arkansas. Ora tal bandeira contrasta dramaticamente com a prática da Administração Bush.
A começar pela sucessão de mentiras com que a Casa Branca procurou justificar a invasão do lraque, já prevista antes do 11 de Setembro de 2001. Depois vieram Guantánamo, Abu Grahib e toda uma série de violações às liberdades e ao direito, a pretexto da luta contra o terrorismo. O attorney-general (ministro da Justiça) Alberto Gonzales está hoje desqualificado, na sequência do escândalo do afastamento por motivos políticos de nove procuradores federais. Mas continua no Governo este homem que defendeu a tortura contra suspeitos de terrorismo, dentro e fora dos EUA.
Essa traição aos valores de civilização das sociedades livres é a maior derrota dos EUA na luta contra o terrorismo. Os americanos perderam coerência e credibilidade morais.
Sem dúvida um hábil estratego político, Karl Rove também contribuiu para a imagem de cinismo amoral que hoje está colada à Administração Bush. Sob a sua influência, os serviços do Estado federal foram partidarizados de forma inédita, mesmo para americanos. Por outro lado, há oito anos Eush proclamava-se um moderado “conservador compassivo”. E foi eleito em 2000 por uma margem mínima (ainda hoje contestada). Mas Rove levou-o a assumir um radicalismo agressivo, sobretudo após o 11 de Setembro.
Mais grave, as tácticas eleitorais de Rove nunca se caracterizaram por quaisquer escrúpulos. Delas fazia parte o “assassinato de carácter” dos adversários, tal como acusar de traidores à pátria ou de amigos dos terroristas os políticos que discordavam da aventura iraquiana. E Karl Rove não hesitava em recorrer às piores calúnias. Como a que lançou contra John McCain em 2000, na corrida para a investidura do candidato presidencial do Partido Republicano.
Entretanto, alguns dos mais ardentes defensores da moral entre os congressistas republicanos viram-se envolvidos em escândalos sexuais e de corrupção. Tudo somado, o feitiço virou-se contra o feiticeiro. Costuma acontecer quando se usa a moral para tirar dividendos políticos. Jornalista

2007-08-07

Emails de RN para Zita Seabra para que retifique

----- Original Message -----
From: Raimundo Narciso
Sent: Friday, July 13, 2007 11:30 AM
Subject: Zita Seabra

Este email é dirigido à deputada Zita Seabra. Não encontrei no sítio do Parlamento nenhum email pessoal de Zita Seabra. Peço a vossa compreensão para o caso de esta não ser a forma adequada de com ela contactar e fazerem o favor de procederem no sentido dos vossos serviços encaminharem para a senhora deputada este email.

Cara Zita Seabra
Felicito-te pela grande repercussão que tem tido o teu novo livro. Regressei de férias ontem e só agora o comprei. Folheei-o e ainda só li umas páginas. Tinham-me, no entanto, alertado para as referências que fazes a meu respeito. No terceiro parágrafo da página 390 evocas o episódio da devassa da tua casa onde narras que a pretexto da identificações de microfones da CIA terá um grupo de dez militantes do PCP às ordens de Domingos Abrantes colocado ou tentado colocar escutas do PCP na tua residência. A acção que descreves evoca o ambiente do filme "As vidas dos outros" sobre a STASI.
Mas minha Cara Zita há um lapso na identificação que fazes no livro das pessoas que te "assaltaram" a residência. Eu não pertencia a esse grupo e não fui a tua casa. Na realidade nunca estive em tua casa nem nessa altura, nem antes nem depois. Não participei nem tomei conhecimento desse acto de intimidação contra ti. Era aliás natural que assim fosse porque eu não pertencia ao "serviço" de informação do PCP nem ao "serviço de segurança". E sendo naturalmente tais organismos do PCP e em especial a sua actividade secreta não era natural que misturassem em tais acções militantes de outras organizações. Eu, como saberás, tinha para além de actividades genéricas comuns a vários membros do Comité Central, a tarefa específica das questões de Defesa Nacional e das Forças Armadas. Nunca pertenci a esses organismos do PCP.
Tendo em conta o carácter particularmente gravoso, digno do maior repúdio, da acção que descreves, vinha pedir-te que na primeira oportunidade que tenhas retifiques publicamente o equívoco da minha presença em tal episódio. Quem escreve memórias, e sei do que falo, por vezes acontece termos absolutas certezas que acabam por se revelar absolutas reconstruções da memória.
...
Raimundo Narciso


Novo Email. Agora para o endereço que Zita Seabra me deu da Aletheia:

----- Original Message -----
From: Raimundo Narciso
To: Zita Seabra [apaguei o link para o enederço]
Sent: Monday, July 23, 2007 2:00 PM
Subject: Foi Assim

Cara Zita Seabra
...
Alguém me disse ou li que preparavas uma segunda edição por isso vinha recordar a nossa conversa telefónica de há cerca de uma semana no sentido de não te esqueceres de corrigires a indicação de que eu participei na operação de "vistoria" da tua casa a pedido (imposição) do secretariado do CC do PCP que, como dizes no teu livro, te foi transmitida por Domingos Abrantes. Reafirmo que não participei, não tive conhecimento prévio nem tive nenhuma relação directa ou indirecta com tal operação. Já nos basta ter participado em tanta coisa errada que não quero ser acusado de coisas que não fiz.
...

Raimundo Narciso

2007-06-08

Estalou a polémica. Ou talvez não.

O meu amigo João Tunes não tem razão nas considerações que faz aqui sobre a controversa instalação de um sistema “defensivo” anti-míssil pelos EUA em dois países da União Europeia, a República Checa e a Polónia. Esta é uma questão de grande relevância para a UE, mas ao contrário do que ele diz, nada tem a ver com a defesa daqueles países.É uma provocação dos EUA à Rússia com dois objectivos: diminuir a importância estratégica da panóplia nuclear russa ( o que está no direito dos EUA ou de qualquer potência. Aliás o direito é nestes casos uma estrita emanação do poder de cada um!) e o objectivo de dificultar a harmonização dos interesses da UE com os da Rússia em prejuízo de ambas.

Porque aceita a Europa tal situação? Por duas razões também. Por um lado os países membros têm como se sabe grande autonomia em termos de relações internacionais em especial se forem com os EUA. Por outro lado porque a Europa não tem defesa própria. Nem face à Rússia e menos ainda face aos EUA. Porque apesar de os tempos serem outros as armas nucleares russas e os respectivos vectores têm sobre os congéneres europeus grande superioridade. Por isso como na economia e em tudo o resto quando a Europa quer bater o pé a Washington na defesa dos seus interesses se a intransigência americana for total a Europa não pode fazer mais do que comer e calar.
Mas sigamos a argumentação do meu amigo João Tunes quando enfaticamente chama a atenção para o carácter meramente defensivo do escudo anti-míssil e mais, supostamente colocado ali naqueles países para a defesa deles.

1) O sistema de “defesa” anti-míssil não é um sistema meramente defensivo. Todo o sistema de desarmamento negociado anteriormente pelas então duas super-potências assentava no equilíbrio do terror. Nenhuma das super potências conseguia destruir a outra sem o risco de também ser destruída. Se uma das super-potências nucleares montar um sistema anti-míssel fica com a possibilidade de atingir a outra parte e não ser atingida por ela. É por isso tão “defensivo” como os mais ofensivos sistemas de mísseis!

Ninguém pode proibir, mesmo que com um excelente argumento moral uma potência, no caso os EUA, de adquirir essa superioridade bélica. Mas não pode ser levada a sério o patético fingimento de que se trata de uma pacífica e inofensiva medida de estrita defesa. É de facto uma medida que provoca tensão político-militar e que provocará uma corrida aos armamentos, por parte da Rússia, da China ou da Índia, na medida das suas capacidades.O escudo anti-míssil é um sistema para interceptar mísseis intercontinentais ou outros de longo alcance. É para interceptar vectores que sobem a elevadas altitudes e voam durante o tempo suficiente para serem interceptados por mísseis anti-mísseis.

2) O meu amigo João Tunes parte do princípio que a Administração W.Bush decidiu colocar um escudo anti-míssil na República Checa e na Polónia para defender estes países de um eventual ataque nuclear da Rússia. Mas não é isso que diz W. Bush. Ele diz que o sistema anti-míssil na Europa Oriental é para defender a Europa e os EUA de um ataque da Coreia do Norte e do Irão.Assim sendo, caro João Tunes gastaste em vão as tuas razões a defender aqueles países que na União Europeia não estão manifestamente sob o perigo de tutela russa. Lembra-te até que, mercê das transformações engendradas na antiga União Soviética foi esta com Gorbatchov, que facilitou a descolonização da Europa de Leste. Não foi nem a Europa nem os EUA que foram libertar a Polónia ou a República Checa!

O sistema "defensivo" anti-míssel não é – diz W. Bush sem se rir - para interceptar eventuais mísseis intercontinentais da Rússia. É os da Coreia do Norte e do Irão!! Porquê então em dois países do antigo bloco do Tratado de Varsóvia? Porque vítimas da síndrome anti- soviética naturalmente transferida para a Rússia são por razões históricas presas fáceis de nova satelização e prestam-se mais que outros e por baixo preço, a ser peões americanos na União Europeia.


3) Como ninguém pode levar a sério uma boutade destas: ataque da Coreia do Norte e do Irão!!! a União Europeia (os parceiros europeus da NATO) têm de fingir que sim senhor que se trata de um escudo contra a Coreia do Norte e contra o Irão. É uma afronta à inteligência e uma humilhação.

A Rússia protesta e ameaça retaliar (enfim agora um urso com menos garras) e alguns jornalistas europeus viciados no anti-sovietismo da guerra fria, lamentam e advertem Putin por, com os seus protestos, estar a ressuscitar a guerra fria. Não é Bush, é Putin “esse velho espia do KGB” que infelizmente pensa e não está ébrio como Ieltsin, o herói de Washington. Portanto a Rússia protesta, experimenta novos mísseis e a Europa pensa e com razão que ela poderá pensar na arma do petróleo e do gás de que a Europa precisa e virar-se preferencialmente para Oriente.
É difícil ter sol na eira e chuva no nabal. Claro que a UE sabe que Putin desconfiará de uma Europa que aceita alegremente o escudo anti-míssel de Bush e simultaneamente se espanta com o facto de a Rússia não agradecer. Cabe aqui com toda a pertinência o desabafo de Lord Crrington relatado por Filipe González num livro-entrevista conduzida por Juan Luís Cebrián (el futuro no es lo que era – Ed. Aguilar, 2001)Dizia Lorde Carrington para González « Ustedes e nosotros hemos sido países com impérios, e sabemos que a los impérios se les respecta porque se les teme. Pero estos americanos son mui raros. Son um império, pero además desean que les quieran»
A Europa tem de escolher entre uma situação de tensão com a Rússia contra os seus interesses por imposição dos EUA ou conversar com o seu poderoso aliado na NATO, os EUA, em pé, já não digo de igualdade que não pode, mas com menos subserviência.
A opção de aproximação à Rússia é do interesse desta e da União Europeia. Interesse económico e interesse político. O aprofundamento de parcerias é uma garantia para a evolução da Rússia no sentido da democracia e modernidade. Mas esse não é o interesse dos EUA que querem uma Rússia fraca e uma Europa que não seja um concorrente económico forte.

Quando o Tratado de Varsóvia fechou portas e os tanques soviéticos regressaram à Rússia Mitterrand e outros políticos europeus lembraram que agora (então) a NATO e as bases americanas na Europa já não faziam sentido. No entanto Richard Holbrooke, o subsecretário de Estado da administração Clinton para a Europa, lembrou que os interesses da América na Europa iam muito para além da sua aliança contra o comunismo.

2007-06-07

VISÃO - entrevista em 2007-06-06

Entrevista conduzida por Miguel Carvalho. Fotos de Luís Barra

Não diz Álvaro. Diz Cunhal. Nem sequer Álvaro Cunhal
Quem conhece o PCP, sabe que isso é a marca de um divórcio, a distância definitiva. Álvaro Cunhal e a dissidência da terceira via (edições Ambar) é a história de uma separação dolorosa, amarga, por vezes contada num tom azedo. Afinal, é o livro de um homem de 68 anos, com quase três décadas de PCP, ex-dirigente da ARA, a organização armada dos comunistas para minar o fascismo português. Afastado da política activa, militante do PS, gestor e consultor, avô babado, Raimundo Narciso ainda «puxa palavra» num blog com o mesmo nome. Puxemos agora pela conversa...
Porquê este livro após tantos anos e depois da morte de Álvaro Cunhal?
Publicá-lo em cima dos acontecimentos podia ser interpretado como vontade de intervir na vida do PC. Estava escrito há anos, apenas o retoquei. Foi mero acaso sair depois da morte do Cunhal. A decisão de publicar é anterior.


O que sentiu no dia em que ele morreu?
O funeral foi um acontecimento memorável, tendo em conta o que ele representa
para a história do PCP e do século XX. Mas não senti mais do que isso.
Descreve o PCP como um partido onde a iliteracia, o atraso cultural e a fé caracterizam os militantes. Quem lê, não acredita...
Era a realidade e hoje, creio, agravou-se. O PCP deve a sua imagem exterior favorável ao facto de parte da mais importante intelectualidade ter passado por lá. A maioria dos militantes é trabalhadora, operária, com poucos estudos. Não teve oportunidades nem frequentou grandes meios culturais. Daí o apego à fé, à crença e aos dogmas.
Como assistiu à segunda vaga de dissidência nos anos mais recentes?
Alguns, como o Carlos Brito, tinham posições distintas da direcção. Edgar Correia e Carlos Figueira foram surpresas. Houve quem nos deixasse de falar e, posteriormente, fizesse nova aproximação. Mas não faço juízos: cada um tem o seu momento.
Escreve que o MDP/CDE era o purgatório dos que, na prisão, não resistiam às torturas e não guardaram os segredos do partido...
Antes do 25 de Abril, era uma frente onde o PCP já tinha um papel determinante, apesar dos independentes. Depois, quem não resistiu às torturas, mas conservava os ideais era encaminhado para o MDP, para se redimir dos «pecados. Esta forma rigorosa de avaliar comportamentos foi transitória. Seria injusto dizer que o MDP foi só isso.Por ele passaram pessoas de elevada craveira como José Manuel Tengarrinha.
Onde começa e acaba a intenção de mudar o PCP e depois... mudar-se do PCP?
Antes de 1987, ano em que as coisas se precipitaram, já havia dúvidas e críticas. Mas sem questionar o essencial. No confronto com o centralismo democrático, a «terceira via» verificou que o sistema só era democrático para quem estava de acordo com a linha oficial. O PCP já era incapaz de dar resposta aos novos fenómenos da sociedade.
Só reparou nos males antes de sair?
Havia muitos traços negativos, mas a nossa fé no destino final radioso levava-nos a secundarizar e relativizar.
Insinua que Vítor Dias e Rúben de Carvalho também partilhavam algumas críticas, mas fugiam ao primeiro sinal de perigo...
Havia gente destacada com uma capacidade de análise importante. Esses dois, mas também Luís Sá, Domingos Lopes... Tinham idênticas preocupações a nível nacional e internacional. A dada altura, nós quisemos aprofundar a crítica e clarificar posições. Outros não, como Vítor Dias e Rúben.
Diz que hoje o PCP representa um comunismo de sociedade recreativa...
É uma ironia. Face a uma realidade tão diferente daquilo que o PCP imaginava, o partido tem doutrinas para um mundo que não existe.
Como é que o PCP ajudou o PRD?
Cunhal disse em público que havia um espaço político vazio entre o PS e o PCP Quando algumas pessoas se decidiram a criar o PRD, o PCP mostrou-se disposto a ajudar. Incentivaram-se alguns militantes e simpatizantes a dar apoio ao partido do general Eanes. Constava, na altura, que militantes menos conhecidos teriam ingressado no PRD. Mas o PRD não é uma criação do PCP.
E «Os Verdes», como nascem?
Foi criado por militantes de confiança capazes de guardar um segredo. É uma pequenina sucursal do PCP. Matou-se à nascença um partido ecologista que nunca fez o teste de ir a votos por sua conta e risco.
Como olha para a CGTP, hoje?
Mostra ter uma capacidade de reagir às questões de uma forma mais actualizada, sobretudo Carvalho da Silva. Mas é estritamente controlada pelo PCP.
Diz que o PCP é um partido com convicções fora de tempo, mas critica os partidos que não sabem para onde vão. Está a falar do PS?
No PS, as referências, os ideais e objectivos são menos visíveis. Por vezes, é bom, mas acaba por não se perceber se há mais objectivos do que os nossos interesses imediatos. Mas o PS tem grande liberdade interna.
No livro fala de espionagem dentro do PCP...
O PCP foi muito perseguido pela ditadura. Fazia sentido estar alerta nos primeiros tempos de democracia, hoje já não.
Mas descreve um ambiente quase pidesco...
Havia um espírito de autodefesa, persecutório e pidesco, sim. Aconteceu com Zita
Seabra e alguns de nós, da «terceira via». Até aí considerávamos legítimos os procedimentos, quase uma exigência. O PCP preocupou-se sempre com o comportamento moral dos seus quadros.
Casamentos e divórcios incluídos?
O partido não se metia no casa e descasa, mas com as infidelidades era diferente. Se fossem notadas, as pessoas eram chamadas, não só por causa de um certo código moral, mas também devido à necessidade de preservar a imagem exterior do partido. Mas esta relação com as pessoas era também fraternal. Ajudava camaradas a solucionar problemas económicos, sociais, psicológicos. Era parecido com a relação que temos com os filhos: se os abraçamos com muita força eles sentem necessidade de nos empurrar. Se não o fazemos, ficam carentes.
Como vê a escolha do seu amigo Pina Moura para administrador da Media Capital?
Os espanhóis não são parvos! Escolheram um bom gestor. As leituras que foram feitas sobre uma alegada tentativa de controlo da TVI através dele e do PS são paroquiais e provincianas. As Prisas, as Iberdrolas, as PT’s e as EDP’s são constituídas por capitais de todo o mundo, esses é que mandam. Já Marx tinha explicado que o capital internacional é igual em todo o lado...
Costuma citar Marx muitas vezes?
Nem agora nem antes. O marxismo faz tanto sentido hoje como a Geometria de Euclides. Amiúde reparei que os capitalistas utilizaram Marx melhor do que os comunistas.
Mário Lino, seu camarada da «terceira via», passa por um momento menos bom...
O momento difícil que atravessa deriva da forma como hoje se olha para a política. A Comunicação Social é cada vez mais um negócio que não quer saber das realidades profundas...
Até parece o PCP a falar!
Mário Lino foi infeliz na afirmação, mas é capaz e competente. Só não é um político profissional. Não tem artifícios.
Este é, por vezes, um livro azedo e amargo...
Não foi intencional. Mas alguns factos são tão contundentes, desagradáveis e desqualificadores que não há bonomia de escrita que possa disfarçá-los. Não é um ajuste de contas. Escrevi um livro sobre a minha entrada para o PCP e agora escrevi sobre a saída.
Concorda que o Governo está a contribuir para um clima de intimidação no País?
Isso é uma invenção. Mas o caso concreto do funcionário da DREN é grave. A directora regional só tinha de penalizar o bufo que lhe foi fazer queixinhas e admoestá-lo. Não podemos valorizar os bufos.

2007-05-29

POR ESTE RIO ACIMA

O Barco vai de saída

(FAUSTO )

O barco vai de saída
Adeus ó cais de Alfama
Se agora vou de partida
Levo-te comigo ó cana verde
Lembra-te de mim ó meu amor
Lembra-te de mim nesta aventura
P'ra lá da loucura
P'ra lá do Equador

Ah mas que ingrata ventura
Bem me posso queixar
da Pátria a pouca fartura
Cheia de mágoas ai quebra-mar
Com tantos perigos ai minha vida
Com tantos medos e sobressaltos
Que eu já vou aos saltos
Que eu vou de fugida

Sem contar essa história escondida
Por servir de criado essa senhora
Serviu-se ela também tão sedutora
Foi pecado
Foi pecado
E foi pecado sim senhor
Que vida boa era a de Lisboa

Gingão de roda batida
corsário sem cruzado
ao som do baile mandado
em terra de pimenta e maravilha
com sonhos de prata e fantasiac
om sonhos da cor do arco-íris
desvaira se os vires
desvairas magias

Já tenho a vela enfunada
marrano sem vergonha
judeu sem coisa nem fronha
vou de viagem ai que largada
só vejo cores ai que alegria
só vejo piratas e tesouros
são pratas, são ouros,s
ão noites, são dias

Vou no espantoso trono das águas
vou no tremendo assopro dos ventos
vou por cima dos meus pensamentos
arrepia
arrepia
e arrepia sim senhor
que vida boa era a de Lisboa

O mar das águas ardendo
o delírio do céua fúria do barlavento
arreia a vela e vai marujo ao leme
vira o barco e cai marujo ao mar
vira o barco na curva da morte
e olha a minha sorte
e olha o meu azar

e depois do barco virado
grandes urros e gritos
na salvação dos aflitos
estala, mata, agarra, ai quem me ajuda
reza, implora, escapa, ai que pagode
rezam tremem heróis e eunucos
são mouros são turcos
são mouros acode!

Aquilo é uma tempesta
de medonha
aquilo vai p'ra lá do que é eterno
aquilo era o retrato do inferno
vai ao fundo
vai ao fundo
e vai ao fundo sim senhor
que vida boa era a de Lisboa

2007-05-27

Mário Lino na apresentação do livro "AC .."

Mário Lino ao apresentar, com Mário de Carvalho, o livro Alvaro Cunhal e a dissidência da terceira via, em 2007-05-17, na Livraria Fnac/Chiado em Lisboa disse o seguinte:

O livro Álvaro Cunhal e a Dissidência da Terceira Via é o segundo livro escrito pelo Raimundo Narciso e, tal como o primeiro, aborda a organização, o funcionamento e a actividade do PCP em períodos em que o autor teve um papel muito relevante nesse partido.
Aquando da sessão de lançamento do seu primeiro livro – ARA: Acção Revolucionária Armada. A História Secreta do Braço Armado do PCP, realizada em Dezembro de 2000, o nosso saudoso camarada e amigo José Barros Moura, que fez a respectiva apresentação, referiu: «este livro não é um livro de teoria política, nem um ensaio histórico, nem um romance, nem um livro de memórias. É um pouco de tudo isto ao mesmo tempo e nessa característica reside muito do seu valor». Penso que a mesma apreciação se aplica perfeitamente a este segundo livro do Raimundo Narciso. Mas sendo o Raimundo um protagonista importante, ou mesmo um dos protagonistas centrais deste livro, considero apropriado que tanto o livro como o seu autor/protagonista sejam objecto desta minha contribuição para a apresentação do livro.

Comecemos, pois, pelo autor.

Conheci o Raimundo Narciso em finais de 1959, princípios de 1960, pouco tempo depois de, vindo de Moçambique onde vivia com os meus pais, ter chegado a Lisboa para frequentar o curso de engenharia no Instituto Superior Técnico. Tinha então alugado um quarto próximo do Técnico e tinha adoptado a pastelaria Pão de Açúcar como local de estudo e de convívio com outros estudantes. O Raimundo, já então aluno do Técnico e frequentador do Pão de Açúcar, foi um dos primeiros estudantes com quem estabeleci uma relação de amizade que hoje se continua a manter. Datam deste período outras boas amizades que também ainda hoje se mantêm, como o Rui Martins e o Ernâni Pinto Bastos, aqui presentes, o José Gameiro, já falecido, e tantos outros, também já então amigos do Raimundo.
Foi o período em que dei os primeiros passos no Movimento Associativo, através da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico, e em que comecei a partilhar com o Raimundo e os outros estudantes amigos, já envolvidos nesse Movimento, preocupações de natureza política e social que conduziram a uma crescente tomada de consciência sobre a situação do País e do Mundo, a imperiosidade da luta contra o fascismo, a ditadura, a opressão, o colonialismo, o racismo, a descriminação da mulher; mas também envolveram a frequência do Cineclube Universitário de Lisboa e o desenvolvimento do gosto pelo cinema e pelo teatro, a frequência do Clube Universitário de Jazz e dos concertos de música dita clássica. E depois o envolvimento na Crise Académica de 1962 e em tantas outras lutas, preocupações e anseios.

Ao longo desses primeiros anos de convivência com o Raimundo Narciso, não pude deixar de registar alguns dos traços do seu carácter que muito me impressionaram e que hoje continuam a marcar a sua forte personalidade: verticalidade, honradez, coragem, firmeza de princípios, humanidade, solidariedade, companheirismo, grande sensibilidade social, simplicidade, sentido de responsabilidade. Também bom conversador e de fino humor. Um carácter muito marcante e cativante.
Julgo que estes traços de carácter são, aliás, claramente perceptíveis ao longo dos seus dois livros.

Em 1964, inesperadamente para mim, e julgo que para muitos amigos, o Raimundo bruscamente desapareceu. Pouco tempo depois vim a saber que era há já alguns anos militante do PCP e que tinha mergulhado na clandestinidade para se dedicar, a tempo inteiro, à actividade política. Nesse ano aderi também ao PCP, mas como militante não clandestino.
Passaram-se vários anos sem me esquecer do Raimundo, mas também sem saber praticamente nada da sua actividade. Até que em 1970, confesso que sem que tal tivesse constituído uma grande surpresa, recebi um telefonema do Raimundo e combinamos um encontro, tudo feito com as devidas cautelas conspirativas. Vim então a saber que ele estava organizado na ARA-Acção Revolucionária Armada e, respondendo à sua proposta, passei a dar a minha colaboração à actividade desenvolvida pelo Raimundo.

Com o 25 de Abril, acabou-se a clandestinidade, e retomei o convívio frequente e de grande amizade com o Raimundo, partilhando igualmente a militância activa no PCP, embora em organizações diferentes.
Como é descrito neste livro, acabámos por ser expulsos do PCP em Novembro de 1991, juntamente com o José Barros Moura. E até hoje, já lá vão 47 anos, a nossa amizade mantém-se intacta, tendo passado a envolver também, ao longo destes anos, os nossos familiares mais chegados.
O Raimundo foi militante do PCP durante 32 anos, partido onde, entre outras responsabilidades, foi membro da direcção da ARA e membro do Comité Central. Esteve na clandestinidade durante 10 anos, com tudo o que tal situação significa de grande abnegação, de risco de prisão e tortura e de sacrifício pessoal. Mas sempre com a mesma simplicidade, mas também com a mesma firmeza e determinação.
Entretanto, evidenciou-se uma nova qualidade do Raimundo: a de escritor, já materializada pela autoria de dois excelentes livros, daqueles que se lêem de um só fôlego, e nos quais se manifestam muitos traços da sua personalidade: simplicidade, rigor, objectividade, humor fino, frescura; mas que também mostram que está bem com o seu passado, com a sua consciência, sem rancores e sem arrependimentos mesmo face a factos certamente muito dolorosos que teve que enfrentar.
Através destes livros ficamos a conhecer melhor a vida, a actividade, a forma de organização e de funcionamento do PCP, em particular no que se refere ao período e às actividades em que o Raimundo esteve mais envolvido e exerceu maiores responsabilidades. E ficamos a conhecer também melhor o seu autor.
Estamos portanto perante livros úteis, bem escritos e que dão prazer ler.
O livro que hoje aqui é lançado constitui, como é dito na sua contracapa, «o relato do debate político, em particular nas reuniões do comité central, que acompanhou a maior crise do PCP depois do 25 de Abril de 1974. É também um testemunho da perturbação e das reacções que ele provocou na direcção deste partido». O livro permite-nos, portanto, conhecer melhor a génese e a evolução das principais dissidências internas, depois do 25 de Abril, de um partido que teve, sem qualquer dúvida, um papel determinante na dura luta contra o fascismo e na implantação da democracia em Portugal.
Assim, o livro começa por nos descrever a evolução da situação do PCP entre 1980 e 1990, período em que se revela, cada vez melhor, a incapacidade do PCP em adequar o seu tradicional acervo conceptual a uma realidade em rápida mudança, agravada pela perestroika e glasnost de Gorbachev; descreve o papel e actuação de Álvaro Cunhal e de outros dirigentes partidários nessa evolução; mostra o processo de despertar de consciências ao longo desse período, passando pelas primeiras desafinações no seio do Comité Central até às tomadas de posição do Grupo dos 6 que envolvia Veiga de Oliveira, Vital Moreira, Vitor Louro, Silva Graça, Sousa Marques e Dulce Martins.
O livro passa depois a descrever o processo de separação das águas dentro do Comité Central, resultante da afirmação e explicitação das divergências, o processo Zita Seabra, o surgimento e desenvolvimento do movimento da terceira via tendo como motivação directa a marcação da data de realização e a definição da forma de organização e funcionamento do XII Congresso do PCP. O livro evidencia os objectivos centrais dos dissidentes, de reformar o partido por dentro, designadamente a partir do seu Comité Central, destacando o papel de Barros Moura, José Luís Judas, Pina Moura, António Graça, Vitor Neto, Fernando Castro e muitos outros, grande parte dos quais aqui presentes, nesse período.

O livro descreve também as consequências destes acontecimentos, traduzidas pela saída e abandono de inúmeros funcionários, quadros e militantes do partido, e a radicação da consciência da impossibilidade de reformar o PCP por dentro.
Refere-se ainda o percurso seguido por muitos destes ex-militantes e também por muitos ainda militantes que se vieram a envolver na criação, em 1990, e na actividade do INES-Instituto Nacional de Estudos Sociais que teve grande impacte mediático e que promoveu diversas conferências e debates durante o período de desagregação final da ex-URSS, agora já com o objectivo de provocar a reforma do PCP, não por dentro mas por fora.
E, depois, recorda-se a reunião do Hotel Roma, em Agosto de 1991, onde um vasto conjunto de membros do PCP procedeu à denúncia pública da posição, assumida pela direcção do seu partido, de justificação do golpe de Estado perpetrado contra Gorbachev, e de que veio a resultar, em Novembro desse ano, a expulsão do PCP de Raimundo Narciso, José Barros Moura e de mim próprio.
A partir daqui, o livro recorda o percurso seguido por muitos dos principais intervenientes nos acontecimentos anteriormente relatados, com principal destaque para a criação da Plataforma de Esquerda, a aproximação deste movimento ao Partido Socialista, designadamente o seu envolvimento nas eleições autárquicas e legislativas de 1995 e, posteriormente, a adesão de muitos dos membros da Plataforma ao PS bem como de alguns outros ao Bloco de Esquerda.

Merece ainda referência no livro o facto de vários militantes destacados do PCP, que tiveram em todos estes acontecimentos uma posição crítica das dissidências, muitas vezes feita em termos de grande agressividade, terem posteriormente vindo a assumir também posições dissidentes e a afastar-se ou a ser afastados do PCP.
O livro inclui ainda um importante conjunto de fotografias e de Anexos com documentos produzidos durante este período, relacionados com os acontecimentos relatados.
O livro permite assim, aos que menos conhecem esta fase da história do PCP, penetrar no universo deste partido pela mão de quem o conhecia muito bem. É uma visita guiada de um protagonista privilegiado dos acontecimentos relatados, um protagonista que, em consequência dos acontecimentos em que participou, viu cortada a sua relação de amizade e solidariedade com amigos de muitos anos, teve de romper com uma longa experiência de vida e dedicação, que foi submetido a situações aviltantes de vigilância, mas que consegue analisar todos estes acontecimentos com grande objectividade, sem rancor ou qualquer espírito de vingança ou perseguição, feita até com algum distanciamento.

De tudo isto o que fica? Foi a militância no PCP uma grande desilusão, um grande embuste?

Conheço um grande número de ex-membros do PCP que viveram estes acontecimentos, mas, salvo muito raras excepções, e tal como eu ou, estou convicto, o Raimundo Narciso, nenhum se mostra arrependido dos anos dedicados à militância neste Partido.
Reconhecemos, certamente, grandes defeitos ao PCP, mas também encontramos na nossa experiência partidária grandes virtudes.
Para todos foi, certamente, exaltante a defesa de ideais nobres de transformação da sociedade, de forma a torná-la mais justa, mais solidária, sem exploração do homem pelo homem. Para todos foi marcante o espírito de dedicação, de despojamento, de abnegação, de coragem, de sacrifício evidenciado pela generalidade do colectivo partidário. Para todos foi empolgante a luta por causas que consideram justas e por princípios que consideram fundamentais. Para todos foi determinante o sentimento de pertença a um colectivo mobilizador da concretização destes objectivos.
Mas todos reconhecem também a falência do caminho seguido pelo PCP para concretizar os seus objectivos mais nobres de vida e de luta. Todos estão cientes da desactualização e falência de conceitos como o centralismo democrático, a ditadura do proletariado ou o carácter de vanguarda do partido. Todos repudiam o autoritarismo e o despotismo iluminado exercido pela direcção do Partido como forma correcta de mobilização do colectivo partidário. Todos reconhecem a importância decisiva da liberdade individual e da democracia no partido e na sociedade, como a melhor forma do exercício da vontade colectiva e da responsabilidade social. Todos partilham a convicção de que a vida interna e as práticas do partido devem reflectir o que queremos para a sociedade.
Por isso, grande parte dos ex-membros do PCP mantêm intactas as suas convicções, o seu empenho na luta pelas causas que marcaram, desde a sua juventude, o seu pensamento e a sua acção, os mais nobres traços de carácter que desenvolveram e interiorizaram durante a sua passagem pelo PCP.
Afinal, para mim, e certamente para o Raimundo e para a maior parte de vós, os objectivos de luta mantêm-se os mesmos. E se continuamos a lutar é porque estamos vivos.

2007-05-26

Há 50 Anos, "Fuga Audaciosa do Aljube"

Há 50 anos, precisamente na noite de 25 para 26 de Maio de 1957, tinha lugar uma fuga da cadeia do Aljube de Lisboa protagonizada por Carlos Brito, Rolando Verdial e Américo de Sousa todos dirigentes do Partido Comunista Português sendo o último membro destacado do seu Comité Central.
Carlos Brito, na altura com 24 anos, é hoje o único sobrevivente dessa proeza espectacular mas ainda praticamente desconhecida sobretudo nos seus pormenores. Nas notas memorialistas que publicou nos anos noventa[2] conta-nos como conseguiram ludibriar as forças repressivas e evadir-se daquele presídio. Aqui ficam os principais excertos desse texto.

Os antecedentes

Nos princípios de 1957, a PIDE concentrou um grande número de presos políticos na cadeia do Aljube de Lisboa, o que não era habitual, visto ser a cadeia usada sobretudo para manter os presos no período mais intenso de interrogatórios e torturas.
A cadeia do Forte de Caxias, que funcionava como depósito de presos, tinha, entretanto, entrado em obras, mas a repressão e a prisão de oposicionistas à ditadura, especialmente de comunistas, não tinha parado. (...)A anormal população do Aljube (...) deu força aos presos para iniciarem um processo de luta por melhores condições prisionais, em relação ao regime de visitas, à alimentação, à higiene e outras.
A PIDE tentou conter este movimento com a sua táctica habitual de «isolar os cabecilhas» e assim transferiu das diferentes salas para o último andar da cadeia - uma enfermaria desactivada - os presos considerados mais perigosos. Éramos oito no início, depois ficámos dez, quase todos funcionários do PCP e três membros do Comité Central - Francisco Miguel, Blanqui Teixeira e Américo de Sousa - todos eles grandes obreiros da fuga, embora só o último tivesse fugido.

Os preparativos

Mal assentámos arraiais nas novas instalações, começámos a avaliar as possibilidades de fuga. Ao cabo de uma semana, não mais, de cogitações individuais e reflexões colectivas a resposta foi afirmativa: havia condições de fuga.
Pretendíamos explorar a circunstância de nos encontrarmos num andar recuado e de um pouco abaixo das janelas gradeadas correr um estreito algeroz, que concebido para a remoção das águas nos podia conduzir à liberdade.
Seria sempre um plano arrojado, pela altura, correspondente a um quinto andar, e o desamparo do percurso.
Colocava-se, entretanto, um grande número de interrogações: - Qual a consistência do algeroz? Onde ia dar? A que distância ficava do prédio vizinho? Como passar dos telhados para a rua?Também pressupunha grandes dificuldades: para aceder ao algeroz era preciso serrar as grades de uma das janelas. Mais interrogações: - Onde arranjar a serra? Como fazê-la entrar na cadeia?Ainda outras: - Qual o comportamento dos guardas durante a noite? E especialmente, como faziam a vigilância das grades?Só reunindo respostas para todos estas interrogações se podia pensar em elaborar um plano de fuga minimamente consistente.
Então o colectivo decidiu: toda a prioridade à fuga. E a partir daí a vida da sala ficou subordinada a este objectivo fundamental. (...)
Fez-se chegar ao Partido por meios ultra-clandestinos, naturalmente, o nossos propósitos e as nossas necessidades.[3] Tomaram-se variadas medidas para a recolha de informações.
Montámos a nossa própria vigilância à actividade nocturna da prisão. Durante toda a noite ficavam dois presos acordados, em turnos de duas horas, que registavam tudo o que viam e ouviam, especialmente o comportamento dos guardas de serviço à sala.
Para grande alegria nossa registámos que (...) as rondas nocturnas faziam uma observação muito superficial às grades, limitando-se a examiná-las com um foco de lanterna.
Um belo dia chegou-nos a resposta do Partido aprovando a fuga e prometendo os apoios pedidos. Pouco depois chegou-nos a serra dissimulada na prenda de anos para um de nós.[4]Podíamos iniciar a tarefa decisiva de serrar as grades. Quando passámos à prática (...) logo se verificou que esta fase iria arrastar-se por muito tempo.
O grande problema era aquele ruído inconfundível: um guincho penetrante que se ouvia longe e repercutia pelas paredes.
Só nos momentos em que se sabia que o guarda de serviço estava ocupado com outras preocupações é que se podia trabalhar com relativa segurança. As sessões de corte eram, por isso, bastante curtas. E era preciso serrar quatro grades relativamente grossas, em cruz, para se poder passar.
Em compensação, o disfarce da zona cortada, feito com miolo de pão pintado com aguarela da cor das grades, resultava em cheio. Os guardas miravam, miravam e parecia-lhes tudo bem.

O plano

Chegou-nos uma outra boa notícia: estava devoluto o último andar de um prédio vizinho, não o encostado à cadeia, mas o que se lhe segue naquela ala da Rua Augusto Rosa, exactamente o edifício onde viveu o actor e que está assinalado por uma lápide. Era uma informação da maior importância, pois podia resolver o problema de passar dos telhados para um andar que nos dava acesso à rua.
Nesta altura já tínhamos amadurecido o plano da fuga que compreendia as seguintes fases:
1ª - passar a grade para o algeroz;
2ª - caminhar no algeroz uns dez metros;
3ª - descer por corda, a pulso, uma altura de seis metros, entre o algeroz e o telhado do primeiro prédio;
4ª - atravessar o telhado do primeiro prédio e passar ao telhado do segundo;
5ª - tentar passar do telhado do segundo prédio para o andar devoluto e daqui procurar saída para a rua.
Era preciso fazer cordas para vencer os diferentes desníveis, os que conhecíamos e outros que podiam surgir. Os lençóis e os cobertores ofereceram bastante matéria prima.
Houve finalmente que escolher quem fugia. (...) a natureza da fuga exigia certas aptidões físicas. Levaram-se em consideração as características acrobáticas do plano (completamente desaconselhado para quem, por exemplo, sofresse de vertigens)[5], a situação jurídica (possibilidade de libertação, a mais ou menos, curto prazo) e a vontade de cada um.
Ponderadas todas estas razões foram seleccionados: o Américo Sousa[6] (...) eu próprio que era funcionário do Partido (...) e Rolando Verdial[7] (...)

[A fachada do Ajjube vendo-se ao cimo o andar recuado e o algeroz por onde se fez a fuga.
Em baixo no edifício à esquerda a porta mais alta por onde acederam à rua.]


A fuga

Antes de iniciarmos a partida, depois da ronda das duas da madrugada, ainda havia algumas tarefas de grande melindre, como o último puxão para arrancar a cruz cortada nas grades. Tinha sido totalmente serrada em três hastes, ficando a quarta com uma espessura residual suficiente para manter no sítio a peça toda.Feito isto, começámos. O primeiro a sair foi o Américo. Eu estava especialmente ansioso. Depois chegou a minha vez. Deitei-me de costas na mesa que tínhamos encostado à janela, para facilitar a saída. Fiquei então absolutamente calmo e totalmente concentrado em cada gesto. Passei os braços e depois a cabeça pelo espaço aberto nas grades. Trepei por estas até ficar totalmente de fora. Desci para o algeroz, reparei de relance na respeitável altura a que me encontrava e lá em baixo, ao fundo, no guarda da GNR. Caminhei de lado, inclinado para a frente e apoiado na parede, que era recoberta de telhas como nas águas-furtadas. Fui juntar-me ao Américo e ajudá-lo a amarrar a corda de lençóis numa janela que havia mais à frente, numa sala que nos servia de refeitório. Feita esta operação, continuámos, no mesmo jeito de caminhar, até à extremidade do algeroz que contornava a frontaria do edifício e acabava um meio metro depois, na parede lateral. Tinha uma sensação de completo desamparo, como se boiasse no ar sobre uma Lisboa nocturna, magnífica nas suas pistas iluminadas, até à mancha negra do rio. Lançámos a corda, que eu fixei no baixo parapeito do algeroz enquanto o meu companheiro da frente a descia a pulso. A corda era curta. A distância excedia os seis metros calculados. O Américo teve dificuldade em firmar os pés no telhado. Fez-se barulho. Entretanto, o terceiro da fuga chegou junto de mim. Agora fixava ele a corda, enquanto eu descia a pulso. Em baixo o Américo amparou-me, o que ambos fizemos a seguir ao Verdial, tornando a chegada ao telhado mais suave.Atravessámos o primeiro edifício, procurando a cumeeira do telhado onde as telhas ofereciam maior consistência. Passámos para o segundo edifício. O desnível ainda era grande mas não foi preciso corda. Avançámos até ao beiral. Estávamos sobre o andar devoluto. Sabíamos que era possível saltar para uma varanda e sabíamos que nesta alguém tinha deixado uma janela aberta para nos dar passagem. Tinha sido a camarada Deolinda Franco[8], que visitara a casa na véspera, como se a quisesse alugar, e que, além disso, desempenhou um importante papel em todo o apoio exterior à fuga. Saltámos para a varanda com alguma dificuldade e algum ruído que ecoou pelas muralhas marmóreas da Sé.A janela estava realmente aberta, entrámos na casa, fomos à porta da escada, puxámos os trincos, podíamos sair. Foi, então, o momento de calçarmos os sapatos e vestir os casacos que trazíamos amarrados à cintura e também de compor o cabelo. Depois descemos as escadas como quaisquer cidadãos regressados de uma paródia nocturna. Chegámos à porta da rua que estava a uma distância de cinquenta metros da sentinela da Guarda Republicana de serviço à entrada do Aljube. O guarda fazia um pequeno passeio, para lá e para cá da porta da prisão.
Aproveitámos o trajecto em que ia de costas para nos esgueirarmos até à esquina que era próxima, onde está hoje a Tasca da Sé. Depois caminhámos rápido. Seguimos uma rua onde devia estar um carro à nossa espera. Mas não estava. Foi o maior contratempo de todo o plano.[9]Para grandes males grandes remédios, fizemos um galope até ao Largo da Graça onde apanhámos um táxi. Em breve estávamos a salvo.[10]
Assim se faziam as vitórias da luta clandestina.


[1] - Assim intitulava o Avante! da primeira quinzena de Junho de 1957 a notícia da evasão.
[2] - Carlos Brito, Tempo de Subversão, páginas vividas da resistência, Editorial Avante, 1998, pp.45-55
[3] - As mensagens codificadas eram passadas em papel de mortalha para fumar bem dissimuladas na roupa suja, para o exterior e, de forma inversa, na roupa lavada.
[4] - Como prenda de aniversário, Américo de Sousa recebeu uma caixa com um par de sapatos novos. Nestes, disfarçada na sola (feita propositadamente) encontrava-se o material necessário.[5] - Era o caso de Blanqui Teixeira que assim ficou impossibilitado de fugir
[6] - Américo de Sousa viria a falecer em Março de 1993
[7] -Rolando Verdial chegou a ter tarefas de responsabilidade partidária, mas mais tarde veio a trair na polícia. Morreu antes de 25 de Abril de 1974
[8] - Deolinda Franco era casada na altura com Carlos Brito.
[9] - O automóvel falhou por uma troca de datas resultante da cifra em que foi indicada.
[10] - Refugiaram-se na casa de Arnaldo Aboim, na zona da Escola Politécnica onde ao fim de dois dias Carlos Brito e Américo de Sousa, já disfarçados, passaram para uma outra casa que era então um ponto de apoio da Direcção de Lisboa do PCP, à Calçada dos Barbadinhos.

2007-05-05

AUGUSTO GIL


BALADA DA NEVE


Batem leve, levemente,
Como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
– Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos...
a neve deixa inda vê los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê los!...

Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
– e cai no meu coração.

(In DOTeCOMe - Poesia)

2007-04-16

La misión global de la UE

Joseph E. Stiglitz
(El País 2007-04-08)

Las recientes celebraciones que marcaron el quincuagésimo aniversario del nacimiento de la Unión Europea han estado dominadas en algunos âmbitos, triste es decirlo, por el pesimismo. Sin duda alguna, la incomodidad con respecto al futuro de la UIE es comprensible, especialmente a la vista de la incertidumbre que rodea a los esfuerzos por reavivar el Tratado Constitucional. Sin embargo, el proyecto europeo ha sido un enorme êxito, no sólo para Europa sino para el mundo.

Los europeos no deben desalentarse por las comparaciones entre el PIB de Europa y, digamos, el de Estados Unidos. No cabe duda de que Europa se enfrenta a grandes retos en la tarea de perfeccionar su unión económica, incluida la necesidad de reducir el desempleo y de impulsar el dinamismo de la economia. Pero por más que se haya incrementado el PIB de Estados Unidos, la mayoría de los estadounidenses está peor en este momento que hace cinco años. Una economía que, año tras año, da lugar a que la mayor parte de sus ciudadanos estén peor no es un éxito.

Pero lo más importante es que el êxito de la UE no debe medirse sólo por cada acto legislativo y regulador en particular, ni siquiera por la prosperidad que ha acompañado a la integración económica. Después de todo, la motivación principal de los fundadores de la UE fue alcanzar una paz duradera. Se esperaba que la integración económica condujera a un mayor entendimiento, apoyado, por la miríada de interacciones a las que da lugar el comercio. El aumento de la interdependencia haria impensable el surgimiento de los conflictos.

La Unión Europea ha concretado ese sueño. En ninguna parte del mundo viven los vecinos de manera más pacífica ni se mueven las personas con mayor libertad y seguridad que en Europa, lo cual se debe, en parte, a una nueva identidad europea que no está vinculada a la ciudadania nacional. Este es un ejemplo que el resto del mundo debe emular:
compartir derechos y responsabilidades, incluída la obligación de ayudar a los menos afortunados También. en esto, Europa ha da do ejemplo al prestar más ayuda a los países en vias de desarroilo que cualquier otro país (y destinando un porcentaje más alto de su PIB que Estados Unidos).

En los últimos seis años, el mundo tuvo que hacer frente a un periodo dificil. El compromiso con el multilateralismo democrático ha sido desafiado, y los derechos garantizados por las convenciones intemacionales han sido suspendidos, como ocurríó con la Convención contra la Tortura. De eso han surgido muchas enseñanzas, entre las que cabe destacar los peligros del orgulo y los limites de! poder militar, y la necesidad de un mundo multipolar.
Europa, con mayor número de habitantes que cualquier otro país, salvo China e India, y con el mayor PIB del mundo, debe convertirse en uno de los pilares centrales de ese mundo proyectando lo que se ha dado en llamar poder blando. que es el poder y la in fluencia de las ideas y del ejemplo. Sin duda, el êxito de Europa se debe en parte a su promoción de un conjunto de valores que, aunque esencialmente europeos, son al mismo tiempo universales.

De estos valores, el fundamental es la democracia, pero no entendida como una mera convocatona periódica de elecciones, sino tambián como una participación activa y significativa en la toma de decisiones, lo cual exige una sociedad civil comprometida, una gran flexibilidad de las normas que regulan la información, y unos medios de comunicación vivos y diversificados que no estén sometidos al contml ni del Estado ni de un reducido grupo de oligarcas.
El segundo valor en importancia es la justicia social. Un sistema económico y social debe ser juzgado por la medida en que los individuos tienen la posibilidad de crecer y de realizar su potencial. Como individuos somos parte de un circulo de comunidades cada vez más amplio, y podemos realizar nuestro potencial sólo si vivimos en armonía los unos con los otros A su vez, esto requiere un sentido de la responsabilidad y de la solidaridad.

La UE demostró ese sentido de manera rotunda con su ayuda a los países de la Europa poscomunista. La transición del comunismo a la economia de mercado no ha sido fácil, pero la generosidad sin precedentes de Europa ha merecido la pena: los países que se han adherido ala UE han superado a todos los demás, y no precisamente por haber accedido a los mercados europeos Toda via más importante que eso fue la infraestructura institucional, que comprende el compromiso vinculante con la democracia y la vasta serie de leyes y reglamentos que a menudo no sabemos valorar.

Europa ha tenido éxito en parte porque reconoce que los derechos de los individuos son inalienables y universales, y porque creó instituciones para proteger-los Emcambio, Estados Unidos ha sido testigo de un asalto a gran escala a esos derechos, incluso el del hábeas corpus, el derecho a recusar la propia detención ante un juez independiente. Se han hecho, por ejemplo, sutiles distinciones entre los derechos de los ciudadanos y de los no ciudadanos
Hoy en día, sólo Europa puede hablar con credibilidad sobre la cuestión de los derechos humanos Para bien de todos nosotros, Europa debe seguir haciéndolo, incluso con más contudencia que en el pasado.

De igual modo, mientras que el proyecto europeo trata de fomentar la “armonia” para que la gente pueda vivir junta y en paz, todos nosotros debemos, también, vivir en armonía con el medio ambiente, eI más escaso de todos nuestros recursos. También en este âmbito se ha puesto Europa a la cabeza, especialmente en lo que respecta aI calentamiento global, demostrando que se pueden dejar de lado los pequeños egoísmos para conseguir un bien común.
En el mundo actual hay muchas cosas que no funcionan bien. Mientras que la integración económica ayudó a conseguir un conjunto de metas más amplio en Europa, en otras partes la globalización económica ha contribuído a ensanchar la brecha que separa a los ricos de los pobres dentro de cada país y la que existe entre países ricos y países pobres.

Otro mundo es posible. Pero le corresponde a Europa tomar la iniciativa para lograrlo.

Josepb E. Stiglitz es premio Nobel de Economia.
Traducción de Emilio O. Mufliz © Project Syndicate, 2007
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2007-04-13

O exemplo de Sócrates

Vasco Pulido Valente no Público de 2007-04-13:

"José Sócrates faz parte daquela geração que já “nasceu para a política”. A política (no PSD ou, depois, sob o patrocínio de Guterres) foi desde o princípio a sua única e autêntica carreira. O resto, a educação formal entrou por hábito, talvez por prudência e manifestamente pela necessidade de um estatuto “respeitável”, que apolítica ainda hoje não dispensa. É hipócrita dizer, como se disse e ele próprio disse, que Portugal aceitaria sem reagir um primeiro-ministro com o secundário ou até com o título obscuro de “engenheiro técnico”. Não aceitaria. E Sócrates, como é natural, tentou arranjar uma licenciatura para o que desse e viesse. Não o preocupou muito (e porque haveria de o preocupar?) se o ISEL e a Universidade Independente lhe dariam uma péssima ou excelente formação profissional. Para o que ele queria da vida, só interessava o papel. Não lhe ocorreu com certeza na altura que o papel, só por si, valia pouco. Que a sua origem contava. Que a maneira como o tinha adquirido contava. Ou que as formalidades da sua concessão também contavam. Para um estranho à academia, coleccionar 55 cadeiras presumivelmente basta. Mas 55 são 55 cadeiras. Não são um curso (no sentido literal de “caminho”) que gradualmente transmite um método e treina uma cabeça. Nada mais lógico do que este engano. Sócrates tirou o seu verdadeiro curso no partido, na Assembleia da República, no Governo e na RTP (com Santana Lopes): e a campanha acabou, na prática, por ser uma espécie de doutoramento. Aqui houve ordem, desígnio, progressão; e “aproveitamento”. Não no ISEL e na Universidade Independente.

Quanto à substância do “caso” em litígio, não é possível examinar uma a uma as peripécias que levaram à licenciatura te Sócrates. Só é possível, e além disso indispensável, deixar claro, cristalinamente claro, que nenhum estudante deve em circunstância alguma seguir o exemplo dele: um exemplo que, segundo Sócrates, revela “nobreza te carácter” e que anteontem ofereceu com “orgulho” aos portugueses. Ninguém que pretende genuinamente aprender anda a saltar de escola em escola, ou escolhe uma universidade porque “é mais perto”, ou pede equivalências sob palavra, ou aceita o mesmo professor no mesmo ano para quatro cadeiras, ou se importa em especial com títulos. Sócrates simboliza tudo o que está errado no ensino que por aí existe. Como o acabrunhante espectáculo de quarta-feira, aliás, provou.