Carlos Brito, na altura com 24 anos, é hoje o único sobrevivente dessa proeza espectacular mas ainda praticamente desconhecida sobretudo nos seus pormenores. Nas notas memorialistas que publicou nos anos noventa[2] conta-nos como conseguiram ludibriar as forças repressivas e evadir-se daquele presídio. Aqui ficam os principais excertos desse texto.
Os antecedentes
Nos princípios de 1957, a PIDE concentrou um grande número de presos políticos na cadeia do Aljube de Lisboa, o que não era habitual, visto ser a cadeia usada sobretudo para manter os presos no período mais intenso de interrogatórios e torturas.
A cadeia do Forte de Caxias, que funcionava como depósito de presos, tinha, entretanto, entrado em obras, mas a repressão e a prisão de oposicionistas à ditadura, especialmente de comunistas, não tinha parado. (...)A anormal população do Aljube (...) deu força aos presos para iniciarem um processo de luta por melhores condições prisionais, em relação ao regime de visitas, à alimentação, à higiene e outras.
A PIDE tentou conter este movimento com a sua táctica habitual de «isolar os cabecilhas» e assim transferiu das diferentes salas para o último andar da cadeia - uma enfermaria desactivada - os presos considerados mais perigosos. Éramos oito no início, depois ficámos dez, quase todos funcionários do PCP e três membros do Comité Central - Francisco Miguel, Blanqui Teixeira e Américo de Sousa - todos eles grandes obreiros da fuga, embora só o último tivesse fugido.
Os preparativos
Mal assentámos arraiais nas novas instalações, começámos a avaliar as possibilidades de fuga. Ao cabo de uma semana, não mais, de cogitações individuais e reflexões colectivas a resposta foi afirmativa: havia condições de fuga.
Pretendíamos explorar a circunstância de nos encontrarmos num andar recuado e de um pouco abaixo das janelas gradeadas correr um estreito algeroz, que concebido para a remoção das águas nos podia conduzir à liberdade.
Seria sempre um plano arrojado, pela altura, correspondente a um quinto andar, e o desamparo do percurso.
Colocava-se, entretanto, um grande número de interrogações: - Qual a consistência do algeroz? Onde ia dar? A que distância ficava do prédio vizinho? Como passar dos telhados para a rua?Também pressupunha grandes dificuldades: para aceder ao algeroz era preciso serrar as grades de uma das janelas. Mais interrogações: - Onde arranjar a serra? Como fazê-la entrar na cadeia?Ainda outras: - Qual o comportamento dos guardas durante a noite? E especialmente, como faziam a vigilância das grades?Só reunindo respostas para todos estas interrogações se podia pensar em elaborar um plano de fuga minimamente consistente.
Então o colectivo decidiu: toda a prioridade à fuga. E a partir daí a vida da sala ficou subordinada a este objectivo fundamental. (...)
Fez-se chegar ao Partido por meios ultra-clandestinos, naturalmente, o nossos propósitos e as nossas necessidades.[3] Tomaram-se variadas medidas para a recolha de informações.
Montámos a nossa própria vigilância à actividade nocturna da prisão. Durante toda a noite ficavam dois presos acordados, em turnos de duas horas, que registavam tudo o que viam e ouviam, especialmente o comportamento dos guardas de serviço à sala.
Para grande alegria nossa registámos que (...) as rondas nocturnas faziam uma observação muito superficial às grades, limitando-se a examiná-las com um foco de lanterna.
Um belo dia chegou-nos a resposta do Partido aprovando a fuga e prometendo os apoios pedidos. Pouco depois chegou-nos a serra dissimulada na prenda de anos para um de nós.[4]Podíamos iniciar a tarefa decisiva de serrar as grades. Quando passámos à prática (...) logo se verificou que esta fase iria arrastar-se por muito tempo.
O grande problema era aquele ruído inconfundível: um guincho penetrante que se ouvia longe e repercutia pelas paredes.
Só nos momentos em que se sabia que o guarda de serviço estava ocupado com outras preocupações é que se podia trabalhar com relativa segurança. As sessões de corte eram, por isso, bastante curtas. E era preciso serrar quatro grades relativamente grossas, em cruz, para se poder passar.
Em compensação, o disfarce da zona cortada, feito com miolo de pão pintado com aguarela da cor das grades, resultava em cheio. Os guardas miravam, miravam e parecia-lhes tudo bem.
O plano
Chegou-nos uma outra boa notícia: estava devoluto o último andar de um prédio vizinho, não o encostado à cadeia, mas o que se lhe segue naquela ala da Rua Augusto Rosa, exactamente o edifício onde viveu o actor e que está assinalado por uma lápide. Era uma informação da maior importância, pois podia resolver o problema de passar dos telhados para um andar que nos dava acesso à rua.
Nesta altura já tínhamos amadurecido o plano da fuga que compreendia as seguintes fases:
1ª - passar a grade para o algeroz;
2ª - caminhar no algeroz uns dez metros;
3ª - descer por corda, a pulso, uma altura de seis metros, entre o algeroz e o telhado do primeiro prédio;
4ª - atravessar o telhado do primeiro prédio e passar ao telhado do segundo;
5ª - tentar passar do telhado do segundo prédio para o andar devoluto e daqui procurar saída para a rua.
Era preciso fazer cordas para vencer os diferentes desníveis, os que conhecíamos e outros que podiam surgir. Os lençóis e os cobertores ofereceram bastante matéria prima.
Houve finalmente que escolher quem fugia. (...) a natureza da fuga exigia certas aptidões físicas. Levaram-se em consideração as características acrobáticas do plano (completamente desaconselhado para quem, por exemplo, sofresse de vertigens)[5], a situação jurídica (possibilidade de libertação, a mais ou menos, curto prazo) e a vontade de cada um.
Ponderadas todas estas razões foram seleccionados: o Américo Sousa[6] (...) eu próprio que era funcionário do Partido (...) e Rolando Verdial[7] (...)
[A fachada do Ajjube vendo-se ao cimo o andar recuado e o algeroz por onde se fez a fuga.
Em baixo no edifício à esquerda a porta mais alta por onde acederam à rua.]
A fuga
Antes de iniciarmos a partida, depois da ronda das duas da madrugada, ainda havia algumas tarefas de grande melindre, como o último puxão para arrancar a cruz cortada nas grades. Tinha sido totalmente serrada em três hastes, ficando a quarta com uma espessura residual suficiente para manter no sítio a peça toda.Feito isto, começámos. O primeiro a sair foi o Américo. Eu estava especialmente ansioso. Depois chegou a minha vez. Deitei-me de costas na mesa que tínhamos encostado à janela, para facilitar a saída. Fiquei então absolutamente calmo e totalmente concentrado em cada gesto. Passei os braços e depois a cabeça pelo espaço aberto nas grades. Trepei por estas até ficar totalmente de fora. Desci para o algeroz, reparei de relance na respeitável altura a que me encontrava e lá em baixo, ao fundo, no guarda da GNR. Caminhei de lado, inclinado para a frente e apoiado na parede, que era recoberta de telhas como nas águas-furtadas. Fui juntar-me ao Américo e ajudá-lo a amarrar a corda de lençóis numa janela que havia mais à frente, numa sala que nos servia de refeitório. Feita esta operação, continuámos, no mesmo jeito de caminhar, até à extremidade do algeroz que contornava a frontaria do edifício e acabava um meio metro depois, na parede lateral. Tinha uma sensação de completo desamparo, como se boiasse no ar sobre uma Lisboa nocturna, magnífica nas suas pistas iluminadas, até à mancha negra do rio. Lançámos a corda, que eu fixei no baixo parapeito do algeroz enquanto o meu companheiro da frente a descia a pulso. A corda era curta. A distância excedia os seis metros calculados. O Américo teve dificuldade em firmar os pés no telhado. Fez-se barulho. Entretanto, o terceiro da fuga chegou junto de mim. Agora fixava ele a corda, enquanto eu descia a pulso. Em baixo o Américo amparou-me, o que ambos fizemos a seguir ao Verdial, tornando a chegada ao telhado mais suave.Atravessámos o primeiro edifício, procurando a cumeeira do telhado onde as telhas ofereciam maior consistência. Passámos para o segundo edifício. O desnível ainda era grande mas não foi preciso corda. Avançámos até ao beiral. Estávamos sobre o andar devoluto. Sabíamos que era possível saltar para uma varanda e sabíamos que nesta alguém tinha deixado uma janela aberta para nos dar passagem. Tinha sido a camarada Deolinda Franco[8], que visitara a casa na véspera, como se a quisesse alugar, e que, além disso, desempenhou um importante papel em todo o apoio exterior à fuga. Saltámos para a varanda com alguma dificuldade e algum ruído que ecoou pelas muralhas marmóreas da Sé.A janela estava realmente aberta, entrámos na casa, fomos à porta da escada, puxámos os trincos, podíamos sair. Foi, então, o momento de calçarmos os sapatos e vestir os casacos que trazíamos amarrados à cintura e também de compor o cabelo. Depois descemos as escadas como quaisquer cidadãos regressados de uma paródia nocturna. Chegámos à porta da rua que estava a uma distância de cinquenta metros da sentinela da Guarda Republicana de serviço à entrada do Aljube. O guarda fazia um pequeno passeio, para lá e para cá da porta da prisão.
Aproveitámos o trajecto em que ia de costas para nos esgueirarmos até à esquina que era próxima, onde está hoje a Tasca da Sé. Depois caminhámos rápido. Seguimos uma rua onde devia estar um carro à nossa espera. Mas não estava. Foi o maior contratempo de todo o plano.[9]Para grandes males grandes remédios, fizemos um galope até ao Largo da Graça onde apanhámos um táxi. Em breve estávamos a salvo.[10]
Assim se faziam as vitórias da luta clandestina.
[1] - Assim intitulava o Avante! da primeira quinzena de Junho de 1957 a notícia da evasão.
[2] - Carlos Brito, Tempo de Subversão, páginas vividas da resistência, Editorial Avante, 1998, pp.45-55
[3] - As mensagens codificadas eram passadas em papel de mortalha para fumar bem dissimuladas na roupa suja, para o exterior e, de forma inversa, na roupa lavada.
[4] - Como prenda de aniversário, Américo de Sousa recebeu uma caixa com um par de sapatos novos. Nestes, disfarçada na sola (feita propositadamente) encontrava-se o material necessário.[5] - Era o caso de Blanqui Teixeira que assim ficou impossibilitado de fugir
[6] - Américo de Sousa viria a falecer em Março de 1993
[7] -Rolando Verdial chegou a ter tarefas de responsabilidade partidária, mas mais tarde veio a trair na polícia. Morreu antes de 25 de Abril de 1974
[8] - Deolinda Franco era casada na altura com Carlos Brito.
[9] - O automóvel falhou por uma troca de datas resultante da cifra em que foi indicada.
[10] - Refugiaram-se na casa de Arnaldo Aboim, na zona da Escola Politécnica onde ao fim de dois dias Carlos Brito e Américo de Sousa, já disfarçados, passaram para uma outra casa que era então um ponto de apoio da Direcção de Lisboa do PCP, à Calçada dos Barbadinhos.