2006-01-17

PODER NÃO PARTILHADO

José Manuel Correia Pinto, jurista e docente universitário, é um especialista em relações internacionais. A sua vasta cultura nos domínios da História e da Filosofia vai a par da sua argúcia política. Disso é exemplo este importante e oportuno comentário que aqui deixo à vossa apreciação.
(Nota: a azul a parte publicada no Puxapalavra)



"As declarações de Cavaco sobre como o Governo se deveria organizar e as ameaças veladas de que nada acontecerá ao Governo se governar “bem”, para além das constantes afirmações, contidas, de que não vai ser eleito para assistir passivamente à governação, já que o “povo” chama por ele – o “povo” a que ele se orgulha de pertencer – prefiguram um dos mais graves ataques ao equilíbrio institucional consagrado na Constituição Portuguesa, representativo de um amplo consenso das forças democráticas que deram corpo e vida ao regime político saído do 25 de Abril.

Com efeito, ao opinar com o ar imperativo que sempre caracteriza as suas intervenções (é bom não esquecer que as nossas dúvidas variam na razão directa da nossa sabedoria) sobre o modo de constituição e de funcionamento do Governo numa área específica, Cavaco ameaçou violar um dos preceitos fundamentais do equilíbrio institucional consagrado na Constituição – a competência exclusiva do Governo quanto à sua organização e funcionamento.

Aquela declaração é a ponta do iceberg que se pretende esconder por detrás de falas aparentemente mansas e comedidas, drasticamente impostas pelos marqueteiros da candidatura, mas é também suficientemente elucidativa para evidenciar o que desde a primeira hora verdadeiramente anima o candidato e a sua mais próxima entourage: um projecto de concentração de poder como meio indispensável à “salvação da Pátria”. Já assim foi antes, assim será novamente se Cavaco ganhar, com as diferenças e os matizes impostos agora pelo contexto político internacional e regional em que vivemos e convivemos.

A direita portuguesa, pelo seu atraso, também pela sua incultura, pela sua incapacidade de compreender o mundo moderno, é, sempre foi, uma direita que rejeita o diálogo, o controlo do poder, em suma, a democracia na sua essência. Por detrás da direita portuguesa, de toda a direita portuguesa, esconde-se, com mais ou menos visibilidade consoante a conjuntura, um pensamento antidemocrático, de concentração de poder, ciente de que somente num ambiente político sem controlos poderá alcançar os seus verdadeiros objectivos.

Os dez anos de Cavaco como Primeiro – Ministro são disso a prova evidente. Impossibilitado pela correlação de forças então existente de concretizar o velho sonho de poder não partilhado, nem por isso deixou, nos momentos de maior aperto, de o expressar quer sob a exclamação demagógica do “Deixem-me trabalhar! Deixem-me trabalhar!”, quer sob a invectiva grosseira contra as “Forças de bloqueio” – expressão onde a ausência de pudor do seu autor apenas concorre com a sua ignorância sobre tudo o que seja a história do pensamento político ocidental, a filosofia política, enfim, todas estas “banalidades” de que se não ocupa a “ciência” dos economistas portugueses do stablishment a que Cavaco pertence.

Interessa, no entanto, sublinhar que aquela atitude de Cavaco, aliás em consonância com os grupos de interesses e sociais que o apoiam, não revela, como alguns ingenuamente supõem, “uma deriva presidencialista” do regime. Nada disso. O regime pode ser presidencialista sem no essencial deixar de respeitar o equilíbrio dos poderes. São disso exemplo dois dos mais conhecidos e importantes regimes presidencialistas do nosso tempo: os EUA e o Brasil. O que está em causa não é a transformação do nosso regime num regime presidencialista. O que está em causa, repito, é um projecto de concentração de poder, apoiado pelas forças mais reaccionárias e obscurantistas da sociedade portuguesa, representadas no presente momento histórico pelos grandes interesses económicos, por um núcleo de economistas e gestores incompetentes, portadores de um pensamento anticientífico, de que é exemplo mais frisante o “Compromisso Portugal” e por sectores ignorantes da pequena burguesia maltratada que sempre foram um apoio seguro para exercícios de poder não partilhado, fundamentalmente por acreditarem estar nessa forma de exercício do poder o meio mais adequado à “salvação da Pátria”.

De facto, um regime presidencialista supõe uma divisão vertical completa do poder, com leve predominância, se alguma existe, do legislativo sobre o executivo. A perversão do regime político português – semi-presidencialista moderado – levaria a uma situação muito diferente da que vem de ser referida, já que ela, a ocorrer, permitiria, de forma aparentemente constitucional, ao Presidente governar, ou seja, tornar-se na prática no Chefe do Executivo, mediante escolha de um PM, antes tornado chefe partidário, completamente identificado com o seu pensamento político, a quem caberia a função de “escolher um legislativo” domesticável.

Pergunta-se, como poderá o Presidente perverter deste modo o regime? O PR tem na Constituição Portuguesa um poder que nos regimes presidencialistas não existe (exactamente porque o Presidente não é o Chefe do Executivo, mas um árbitro, um zelador pelo regular funcionamento das instituições): o de dissolver o Parlamento e de exonerar o Primeiro-Ministro, embora neste caso apenas quando esteja em causa o regular funcionamento das instituições democráticas. Isto significa que o Presidente, se animado por um projecto de concentração de poder, depois de muita guerrilha institucional e de desgaste do Governo, facilmente encontrará um bom pretexto para dissolver o Parlamento, se o ambiente eleitoral for propício a uma vitória das forças de direita e se, entretanto, já tiver colocado na liderança destas um homem da sua confiança política (não que o actual se não preste ao desempenho desse papel, o que acontece é que Cavaco o considera incompetente para o fim em vista). Cavaco quer no Governo não apenas um homem que por ele se deixe conduzir, mas acima de tudo um homem que no essencial pense como ele. Que a liderança do actual presidente do partido de Cavaco é uma liderança a prazo curto, é algo que evidentemente sobressai da moção aprovada pelos cavaquistas no congresso que o elegeu. Só que o “Messias n.º 2” pode não ser o que naquela moção estava implícito, mas outro, mais dócil e mais identificado com o pensamento do Chefe…

De nada valerá argumentar com o exemplo da V República Francesa, que consagra um regime parcialmente semelhante ao nosso, para daí concluir que se tal concentração nunca ocorreu em França também não ocorrerá entre nós. Em primeiro lugar, não é verdade que tal nunca tenha ocorrido em França. Com De Gaulle ocorreu nos primeiros mandatos e depois deixou de ocorrer não apenas por ausência de um líder suficientemente forte para reimpor o modelo, mas acima de tudo pela natureza heterogénea da direita francesa, a qual, salvo em momentos de crise grave, não se deixa facilmente hegemonizar pelo executivo. Em segundo lugar, não comparemos a tradição democrática francesa com a portuguesa…

E assim teríamos com Cavaco criadas as condições para um projecto de poder não partilhado, assente na cúpula do Estado – o Presidente da República – que o exerceria através das suas correias de transmissão institucionais (Governo e Legislativo). Resta o Judiciário… Será o Judiciário suficientemente forte para resistir à pressão intensa, permanente, no sentido do seu alinhamento com as forças hegemónicas? A resposta não é fácil de dar antecipadamente, embora a história, a estrutura e a natureza deste poder em Portugal não augurem nada de positivo no plano institucional, sendo, por isso, de admitir que após alguma reformas estruturais na área da justiça estejam criadas as condições para o exercício de um poder Judiciário muito diferente do que hoje temos."

Eleições Presidenciais 2006, Janeiro

José Manuel Correia Pinto