2005-05-16

Contra a corrente

Jornal de Negócios 16 Maio 2005 13:59
António Mendonça*
amend@iseg.utl.pt

Será que os portugueses padecem de algum mal genético que os impede de traduzir em acções a elevada capacidade de proceder a diagnósticos e análises e de convergir no domínio das soluções?
Em Portugal vem-se assistindo nos últimos anos a um fenómeno bastante curioso para não dizer paradoxal.
Por um lado verifica-se uma convergência muito significativa, entre especialistas, agentes económicos e agentes políticos, no que respeita ao diagnóstico da situação de crise económica que o país atravessa e aos bloqueios que importa ultrapassar no sentido de retomar a trajectória de crescimento e de convergência com os parceiros mais desenvolvidos.
Mas, por outro lado, a situação económica geral do país não cessa de se degradar, indiferente à convergência de opiniões e à sucessão de medidas e contramedidas que os diferentes responsáveis políticos têm tomado, alimentando um discurso cada vez mais pessimista sobre as capacidades domésticas de inflectir sustentadamente a situação.
Naturalmente que a questão que se coloca é a de saber porque é que isto acontece em Portugal. Será que os portugueses padecem de algum mal genético que os impede de traduzir em acções a elevada capacidade de proceder a diagnósticos e análises e de convergir no domínio das soluções? Ou será que os constrangimentos económicos internos e externos evoluíram de tal modo que tornaram absolutamente ineficaz qualquer veleidade doméstica de alterar o rumo dos acontecimentos? Será que poderemos buscar, ainda, explicações noutros factores idiossincráticos da economia e da sociedade portuguesa contemporânea?
A primeira tentação é a de invocar factores de natureza exógena que restringem, obviamente, os graus de liberdade dos decisores económicos e políticos e condicionam o comportamento da economia portuguesa. A mais elementar lógica de análise económica obriga a considerar as restrições decorrentes da participação na Zona Euro, da aplicação do Pacto de Estabilidade e Crescimento ou do mais recente alargamento a leste. A um nível mais geral também não se podem ignorar os efeitos de verdadeiro «buraco negro» que a China está a provocar sobre a economia mundial e sobre a economia portuguesa, muito em particular.
Todavia, não se podendo ignorar os efeitos e os constrangimentos da nossa integração, activa e passiva, nas dinâmicas da economia europeia e da economia global, é importante ter presente que o que nos distingue no momento presente, não é tanto a experiência de dificuldades económicas mais ou menos graves que, duma forma ou doutra, atingem a generalidade dos nossos parceiros europeus, mas o facto de essas dificuldades atingirem entre nós uma dimensão crítica e, sobretudo, uma persistência, que nos têm colocado na cauda das «performances» de crescimento e desenvolvimento dentro da União Europeia, praticamente desde o inicio desta década, contribuindo para a degradação da imagem externa do país e para a deterioração do clima de confiança interna relativamente às possibilidades de atacar a fundo os problemas. Nesta perspectiva, faz todo o sentido considerar que os factores de natureza interna, não só têm uma quota importante de responsabilidade na explicação da crise económica que o país atravessa como mostram tendência a auto-alimentar-se dos seus próprios efeitos, tornando cada vez mais difícil romper o ciclo de produção de dificuldades.
Assumindo claramente o risco de ir contra a corrente, diria que duas atitudes, que têm sido dominantes nos últimos anos, quer no plano das concepções teóricas quer no plano da acção política e governamental, contribuíram decisivamente para a perda de eficácia das políticas públicas e, por arrastamento, para o insucesso ou menores resultados das estratégias e das políticas empresariais.
A primeira atitude tem-se reflectido na progressiva desvalorização da dimensão nacional da economia. Ou seja, tem-se insistido numa óptica de abordagem dos problemas que privilegia a dimensão da integração europeia da economia portuguesa ou, então, no extremo oposto, o espaço competitivo das empresas, relegando-se para segundo plano, ou omitindo-se completamente, o vector de projecção estratégica que está associado à consideração da economia na sua dimensão nacional específica. Esta desvalorização tem conduzido à erosão progressiva dos factores de identidade e de articulação interna da economia portuguesa contribuindo, não apenas para a sua perda geral de atractividade como, também, para a redução substancial de uma importante base de produção de factores específicos de competitividade. Em particular, esta desvalorização da importância da dimensão nacional da economia tem-se manifestado em duas posturas típicas dos responsáveis políticos e das elites decisoras: uma aceitação passiva e progressiva da diluição ibérica do espaço económico nacional que se manifesta, entre outras coisas, na incapacidade de delinear e concretizar até ao momento uma estratégia coerente e de transportes e de infra-estruturas, e uma recusa sistemática em considerar o potencial económico da projecção atlântica do país e da sua inserção num espaço histórico e cultural de vocação global que é o espaço lusófono.
A segunda atitude traduz-se na desacreditação sistemática da administração pública e das funções do Estado em geral e na veiculação da ideia de que existe uma contradição essencial entre a intervenção económica do Estado e a eficácia na afectação de recursos conduzindo a situações permanentes de suboptimidade do bem-estar social.
É interessante notar, no entanto, que longe de ter contribuído para uma redução efectiva do peso do Estado na economia e no aumento da sua eficácia social esta atitude apenas contribuiu para a desorganização da máquina administrativa, para a duplicação de estruturas e sobreposição de competências, para a desresponsabilização dos quadros dirigentes e para a apropriação por parte dos mais diversos interesses privados e corporativos de múltiplos canais de definição estratégica e de centros de decisão política. E contraditoriamente, ou talvez não, é precisamente no período em que as ideias anti-Estado mais se afirmaram e que, grosso modo, coincide com as duas últimas décadas do século passado, que o aumento do peso do Estado mais se verificou, contrariando a ideia comum que associa gigantismo da máquina estatal a forte intervencionismo económico.
Como é fácil concluir das observações efectuadas, a dimensão e as particularidades da crise económica estrutural que o país atravessa exigem que se ponham de lado preconceitos e se recuperem como preocupações centrais da estratégia governativa a valorização da dimensão nacional da economia portuguesa, e a credibilização e modernização da intervenção económica do Estado, da administração pública e dos serviços públicos em geral. Ao contrário do que pretende fazer crer, a inserção nas dinâmicas de integração económica e da globalização não tiraram sentido à dimensão nacional das economias ou à intervenção económica dos Estados nacionais, mas antes impõem a sua reconsideração estratégica de modo a transformá-los em instrumentos de produção de factores dinâmicos de competitividade. Quanto mais tarde se reconhecer esta realidade mais longe estará o país de recuperar o tempo perdido.
* Professor Universitário no ISEG, Lisboa.

2005-05-12

Anticastrista Posada Carriles trabalhava para a CIA
(Transcrito do Público de 2005-05-12. Secção "Mundo" pág 20.

Documentos do FBI, os serviços de investigação norte-americanos, confirmam aparentemente que o dissidente Luis Posada Carriles esteve de facto por detrás do atentado contra um avião cubano em 1976, e isso já enquanto agente da CIA, a espionagem americana. O prófugo estará nos Estados Unidos, onde terá pedido asilo político. Um dos papéis, datado de 3 de Novembro de 1976, cita um informador segundo o qual o anticastrista, formalmente um agente da inteligência venezuelana, fez parte do grupo que preparou "o derrube do avião das linhas aéreas cubanas". O avião foi efectivamente atacado, em 1976, atentado em que morreram 73 pessoas. Detido às ordens dos tribunais na Venezuela, Carriles conseguiu no entanto fugir, em 1985, para lugar incerto, para reaparecer como o inspirador dos atentados à bomba de Havana, em 1997, contra várias instalações turísticas, um dos quais matou um turista italiano, e da conjura para matar o Presidente cubano Fidel Castro, em 2000, durante a Cimeira Ibero-Americana do Panamá. Acusado de conspiração e condenado pela justiça panamiana, o bombista, realmente um agente da CIA, que serviu durante dez anos, voltaria de novo à liberdade, mas agora através de um indulto da ex-Presidente Mireya Moscoso. O perdão abrangeu três cúmplices. Em Abril terá entrado nos Estados Unidos e pedido asilo político, afirmam Havana e Caracas, que o quer julgar, o que Washington desmente. O vice-presidente venezuelano, Vicente Rangel, e o Presidente cubano, Fidel Castro, acusam o Governo americano de dar guarida a um terrorista e, com isso, entrar em contradição com a sua política contra o terrorismo.

2005-05-09

A morte de Hitler no Portugal de Salazar

Um artigo muito interessante de António Melo no Público de 2005-05-08:

A morte de Hitler vista por "O Século" ...

O fim da guerra foi relatado de forma muito diferente pelo "O Século", o maior diário da época e entusiástico apoiante do Estado Novo, e pelo "República", o pequeno vespertino que sempre procurou dar voz às oposições. A vitória das democracias abriu então um período de esperança, pois muitos julgaram que a derrota das potências do "Eixo" arrastaria a queda de Salazar. Enganaram-se. E se a vitória aliada foi celebrada nas ruas, se o regime foi obrigado a convovar eleições, o seu carácter repressivo não desapareceu: só em 1945, já depois do fim da guerra, foram mortos mais quatro oposicionistas, um anarquista que morreu no Tarrafal e três comunistas, um deles Alfredo Dinis, morto por uma brigada na PVDE na estrada de Bucelas.

Quando "O Século", na edição de 3 Maio 1945, quinta-feira, noticiou na primeira página a morte de Hitler, titulou-a assim: "Morrendo no seu porto o Führer deixa a garantia da eternidade ao povo alemão". Segue-se o obituário, elaborado a partir de um jornal do partido nazi, "Front Blatt", onde se diz que ao escolher o suicídio, "Hitler entra na História não apenas como herói, mas como mártir". A foto mostra um Hitler solene a cumprimentar o almirante Doenitz, com o título a enunciar um inventado programa do sucessor no Reich moribundo: "Continuo o combate ao bolchevismo e terei de lutar com a Inglaterra e a América enquanto me impedirem a execução deste propósito".

O assunto continua na página 4, onde em subtítulo final se dá conta das "Manifestações fúnebres em Portugal". Aí se relata que "por motivo do falecimento do chefe de Estado da Alemanha, nos edifícios públicos e nos quartéis a bandeira nacional foi içada ontem a meia adriça, mantendo-se assim até amanhã, às 12 h.". Em Coimbra, diz-se no parágrafo seguinte, "foi colocada a bandeira a meia haste na Torre da Universidade. Os sinos dobraram a finados". Maximino Correia era o reitor. A 4 de Maio, sempre na primeira página, o tema é a morte de Goebbels, que mereceu ao jornal uma longa biografia a ocupar metade da página a duas colunas, com continuado na página 2. O título é como uma homenagem: "[Morreu] O dr. José Goebbels que foi durante anos a voz oficial da Alemanha nazi". A peça termina com um subtítulo recordando "a morte de Hitler" e duas linhas secas que dizem que "a Suécia não apresentou quaisquer condolências à Alemanha pela morte de Hitler".

A Suécia, tal como Portugal, era um país neutro. Há uma mudança súbita na edição de sábado, dia 5, onde as expectativas triunfantes do Reich se afundam diante das forças aliadas: "A guerra no ocidente da Europa terminou ontem. Renderam-se às tropas de Montgomery as forças alemãs do Noroeste do Reich".

Apesar da dimensão da derrota, logo por baixo, sempre na primeira página, o jornal ainda pretende ver uma saída honrosa para o regime nazi: "Em presença da derrota os dirigentes alemães iniciam uma política que recorda a seguida depois da guerra de 1914". Em subtítulo surge uma derradeira esperança: "As tropas alemãs continuam a combater encarniçadamente na frente Leste". A fechar a notícia um desejo tomado por realidade: "A coesão moral do povo e do Exército mantêm-se".O tom patético de um fim senão feliz, pelo menos de uma hipotética reviravolta no destino dos vencidos, ainda faz o título de primeira página no domingo, ao sugerir uma ruptura entre as forças aliadas: "Em nome da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos Eden e Stettinius recusam-se a continuar a discussão do caso polaco por terem sido presos os 16 chefes políticos da Polónia que tinham ido conferenciar à Rússia".

A primeira página de segunda-feira, remando ainda contra ventos mas já sem força para deter as marés, faz manchete com uma nota oficiosa do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE): "O Governo português retira o reconhecimento aos representantes diplomáticos consulares e oficiais da Alemanha por ali não existir um poder central regular". Esta retorcida formulação, que só Salazar seria capaz de engendrar, é publicada "ipsis verbis" em todos os jornais, incluindo no "República", o que deixa entender haver uma directiva para que a Comissão de Censura estivesse vigilante quanto à sua publicação. O comunicado oficial terminava com um surpreendente subtítulo, a revelar uma acuidade noticiosa ímpar, pois anuncia as reacções da imprensa norte-americana e brasileira, que só poderiam ser conhecidas no dia seguinte devido à diferença horária.

Num despacho atribuído à UP (United Press), toda a imprensa portuguesa proclama em uníssono que "os jornais norte-americanos publicaram com grande relevo a notícia [do MNE]". Acrescentam que a imprensa brasileira também dela se fez eco. O terceiro e último parágrafo conclui com esta pérola: "Todos os jornais americanos e brasileiros são unânimes em acentuar que Portugal é o primeiro país neutro na Europa que tomou tal atitude, reconhecendo que o Governo nacional alemão deixou de existir". Sintomaticamente é apenas neste dia, 7 de Maio, que n" "O Século" se dá conta pela primeira vez da existência dos campos de concentração nazis, com uma larga referência ao relatório da comissão parlamentar britânica, que de 20 a 22 de Abril fizera o levantamento desse horror. Mereceu o seguinte título-legenda para foto a três colunas, inserida em baixo, na primeira página: "Nunca a degradação humana atingiu um nível tão baixo".Foi precisa a rendição incondicional do Reich para que na terça-feira, 8 de Maio, a primeira página se rendesse, também ela, em manchete garrafal à vitória aliada: "A Alemanha rendeu-se sem condições aos Exércitos aliados".

As manifestações populares de regozijo foram severamente censuradas e aparecem escondidas na página 2, entre a publicidade aos espectáculos teatrais, paginadas a duas colunas, sem foto, sem arranjo gráfico e sem rasgo: "Lisboa embandeirou e o entusiasmo sobretudo na Baixa assinalou-se por manifestações". O acontecimento, porém, assumiu tais dimensões que o jornal sentiu obrigação de voltar a ele nas "Últimas Notícias". Mas deu-lhe a volta e transformou as celebrações populares numa demonstração de apoio ao regime: "Durante a noite realizaram-se entusiásticas manifestações em honra das Nações Unidas e do sr. dr. Oliveira Salazar".

No dia seguinte, 9 de Maio, com mão de chumbo, regressou a normalidade. A primeira página ocupa-se apenas do discurso que Salazar fez na Assembleia Nacional celebrando a sua política durante a II Guerra. Na última página prossegue a descrição do horror dos campos de concentração nazis, com base no relato da comissão parlamentar britânica, desta vez o de Auschwitz: "3 500 000 mortos de Outubro de 1942 a Janeiro de 1945 no horrível campo de Auschwitz, pior do que os de Buchenwald e de [Bergen] Belsen" Gradualmente o noticiário sobre a II Guerra Mundial foi sendo relegado para segundo plano na primeira página n" "O Século", com uma excepção: as primeiras páginas das edições de 18 e 19 de Maio foram completamente dedicadas à manifestação de gratidão a Salazar, no Terreiro do Paço, por ter mantido Portugal neutral.