2005-01-29

Vidas na Clandestinidade

As "Notas sobre a minha vida na clandestinidade" que a seguir se publicam, foram escritas na sequência de um pedido de Sandra Cristina Almeida que as publicou no seu Blog História e Ciência em 11 de Outubro de 2003

Notas sobre a minha vida na clandestinidade
Maria Machado
Odivelas, 7 de Outubro de 2003.

Vale de Vargo é uma aldeia do concelho de Serpa na margem esquerda do Guadiana, quase na fronteira com Espanha. São daí os meus pais e foi aí que eu nasci, em 1949.
Na aldeia quase todas as pessoas eram trabalhadores assalariados sem terra. Durante o ano havia muitos dias e muitas semanas sem trabalho e isso era imediatamente a fome. Lembro-me duma manifestação, à qual se juntou toda a nossa família, em que as pessoas levavam bandeiras pretas e gritavam temos fome, temos fome. Quando o trabalho faltava muitas pessoas iam pelos campos para comerem a fruta que encontrassem.
Esta insustentável situação só se mantinha com a GNR. Volta não volta ouvia os meus pais comentarem a prisão de vizinhos. Receávamos que mais tarde ou mais cedo também levassem o meu pai. Foi o que acabou por acontecer. A nossa casa estava entre aquelas que a GNR "visitava" de cada vez que havia protestos dos trabalhadores agrícolas. Eu e as minhas irmãs, como muitas outras crianças de Vale de Vargo, crescemos no medo da GNR.

Tinha 8 anos quando os meus pais tiveram de passar à clandestinidade. Foram para local desconhecido que depois soube ser o Barreiro. Levaram a minha irmã mais velha porque já tinha terminado a instrução primária e a mais nova porque ainda não chegara à idade da escola.
Três anos depois, aos 11 anos, passei eu também à clandestinidade mas, apesar de me terem dito que era uma vida muito difícil e não podia fazer a vida das outras crianças, a clandestinidade para mim vinha acompanhada da alegria de ir viver com os meus pais e as minhas irmãs. No entanto, com a minha chegada deu-se o regresso da irmã mais nova (Maria José) para frequentar a escola e poucos meses depois partiu a mais velha (Luísa Basto) para a União Soviética onde foi estudar e depois terminou um curso superior de canto.

Ajudava os meus pais a imprimir o Avante, O Militante, panfletos, em papel bíblia muito fininho para os seus leitores o poderem esconder facilmente da PIDE.
Era um trabalho feito nas casas que habitávamos e os meus pais alugavam com nomes falsos. Usávamos umas impressoras primitivas, em que colocávamos letra a letra, as letrinhas de chumbo até completarmos os artigos e as páginas e comprimíamos contra elas manualmente, o papel e a tinta, com um pesado rolo metálico forrado de flanela. Muito primitivo mas saia bem. O quebra-cabeças era...
.... não deixar passar as insidiosas gralhas!
Vivíamos no receio de os vizinhos se aperceberem do ruído por isso o trabalho era acompanhado pela telefonia de goelas abertas. E quando um dia uma folha do Avante se escapou por debaixo do estore e se expôs à vista da vizinhança? Podia obrigar a uma fuga precipitada mas felizmente ninguém terá dado por isso antes de a descobrirmos ali.

A vida era muito complicada e rodeada de perigos. O mais difícil era parecer que levávamos uma vida normal. O meu pai tinha de entrar e sair de casa a tais horas e de tal maneira que o vissem sair para o emprego e chegar do trabalho e não o vissem reentrar em casa nem dessem pela presença dele.
Em 1966 o PCP propôs aos meus pais que eu fosse tirar um curso político em Moscovo durante um ano. Tinha 17 anos de idade, cinco de clandestinidade e estar fechada em casa naquela idade... Jovens menos resistentes tiveram graves problemas de saúde mental.
Fui com gosto.
Atravessei a fronteira "a salto" por Trás-os-Montes na direcção de Bragança, de mão em mão, guiada pelo aparelho clandestino do partido. Aconteceu um episódio inesquecível. A certa altura fui levada, a pé e de carro, de olhos fechados, para uma casa clandestina algures nos arredores do Porto e quem encontro lá? Um casal com um filho loirinho de três anos. Só que a mulher era a minha tia Luzia, que me vira pela última vez com 9 anos e não podia me reconhecer. Ali ninguém sabia quem eu era. Foi um acaso. Quem organizou a minha partida não sabia nem podia saber que caminhos levaria. Quem me levava daqui para ali não sabia quem eu era, nem donde vinha. Cheguei à casa da minha tia que não sabia nem devia saber quem ia passar pela sua casa.

Com os pseudónimos e todas as regras de compartimentação pareceu-me que não me podia denunciar. Devo ter ficado com um ar demasiado apreensivo porque a minha tia perguntava-me o que se passava. Depois observou um caderno que eu levava com exercícios, composições e outros elementos de estudo – estudo que fazia em casa de meus pais com livros que o "camarada controleiro" nos levava de mês a mês e único convívio que tínhamos sem disfarces.
A minha tia a certa altura exclamou: "mas eu conheço esta letra". Conhecia-a, claro, das cartas que eu lhe escrevia e lhe chegavam pelos circuitos do partido. Então foi aí que eu a abracei como sobrinha!

Em Vichniki, a 20 quilómetros de Moscovo, na Escola Central do Konsomol (organização da juventude comunista da União Soviética) estudei Economia Política, História do Movimento Operário e Comunista Internacional, Filosofia (o materialismo-dialéctico e história das correntes filosóficas) além do Russo.
Uns trezentos jovens, rapazes e raparigas de todo o mundo. Europeus, asiáticos, africanos incluindo das colónias portuguesas, da América Latina.
À Escola já tinham chegado o "Carlos" que era Raimundo e a "Ana" que era Mariana. Em Moscovo conheci outros portugueses e pude estar com a minha irmã Luísa.
Tínhamos uma bolsa equivalente ao salário de um operário, com que pagávamos a comida, transportes, espectáculos e comprávamos algumas coisas para nós. Comprámos um gira-discos e uma colecção de discos de boa música, da barroca à moderna. A cultura era em geral muito acessível.

Deram-nos um bilhete de identidade que nos permitia movimentar livremente em Moscovo e arredores. Com os companheiros portugueses e muitas vezes com a nossa grande amiga Galina Verskovskaya, nossa intérprete, durante esse ano vi dezenas de filmes, peças de teatro, concertos na "Tchekovskaya Zal", com David e Igor Oistrak, com Sviatoslav Richter e quase todo o programa de Ópera e bailado do Teatro Bolshoi.
Eu, que nunca tinha ido ao cinema, quanto mais à ópera ou a um concerto da Orquestra Sinfónica de Moscovo!
E tínhamos diariamente ali à mão, para passeios, festas, namoros, cantares, e discussões políticas, dezenas de jovens das mais variadas línguas, liberdades, clandestinidades e guerrilhas. Já nossos amigos. Parecia-me o paraíso.

Claro que não ficámos a saber tudo nem sobre a História nem sobre a vida dos muitos povos da URSS. Nem das questões ligadas à Liberdade por que tanto lutávamos em Portugal. Mas isso é outra história que não cabe aqui agora e que não sendo a que nos era oferecida lá também não é a dos que sempre odiaram o socialismo pelo que ele tinha de melhor.

Voltei a Portugal em 1968 não sem combinarmos, eu e o "Carlos", juntarmo-nos em Portugal. Casar não é o termo próprio da clandestinidade mas foi isso que decidimos. Numa data, hora e local aprazado encontrei-me com ele e fomos viver para o apartamento, clandestino claro, que ele tinha alugado, no Bairro da Beneficência em Lisboa.
Aqui o "controleiro" era outro, um assim grande, forte e muito alto que tratávamos por tu e por João. Quando dois anos depois foi preso ficámos a saber que o João era o Ângelo Veloso. No partido todos se tratavam por tu, e por "amigo" em vez de camarada para que nem as paredes ouvissem.

Eu colaborava na organização do que mais tarde em 1970 se viria a chamar ARA, a Acção Revolucionária Armada. Colaborei na criação de um laboratório, no reconhecimento de objectivos e particularmente, como todas as "companheiras", na "defesa da casa".
As mulheres acabavam quase sempre secundarizadas na política porque, por razões de defesa, só um em cada casa podia ter ligações e contactos com outros camaradas.
Em seis anos mudámos seis vezes de casa. Em Lisboa e arredores. Alugar casa, comprar mobília, ou algo parecido, e depois mudar de uma para outra sem deixar rasto era uma arte e um... tormento. A partir do segundo ano com um bebé, a minha filha Leonor. O segundo filho, José Alexandre, a última criança a nascer na clandestinidade, só chegou nas vésperas do 25 de Abril de 74.

Nunca fui presa. Escapei por pouco porque a PIDE assaltou a casa dos meus pais dois meses depois de eu ter ido viver com o meu marido. A minha irmã Maria José com 14 anos foi libertada pouco tempo depois mas o meu pai, José Pulquério, ficou preso cinco anos e a minha mãe, Úrsula Machado, quatro, mas as torturas deixaram-na com a saúde muito abalada para o resto da vida.
Ter filhos não atrapalhava. Pelo contrário ajudava. E muito. A suportar o isolamento e a dar-nos um nova vida. O que nos angustiava era termos de nos separar dos filhos aos sete anos. Não era possível viver na clandestinidade e de cada vez que tínhamos de fugir e mudar de casa matricular os filhos numa nova escola sem dizer de que escola vinham. Os sete anos era o tormento para a família. Os filhos partiam ou para as famílias que raramente tinham condições para os ter ou mais habitualmente para a União Soviética.

Uma vida sob tensão mas em geral uma vida muito... ia a dizer agradável mas talvez não seja bem o termo, talvez antes muito realizada.
Dos sustos o maior foi quando a PIDE pôs nos jornais e na televisão a fotografia do meu marido, de Jaime Serra, Francisco Miguel e Ângelo de Sousa da ARA, de Carlos Antunes das Brigadas Revolucionárias e Joaquim Simões da LUAR.
Apesar dos disfarces, óculos, barba, nomes diferentes, não sabíamos se os vizinhos o poderiam identificar. Visitei nesse dia a minha vizinha, a Sra. D. Irene, pessoa idosa a viver só, (no apartamento ao lado do nosso, que ainda hoje habitamos) excelente senhora, muito nossa amiga, professora no Convento de Odivelas. Venerava Salazar: um santo!
Queria observar a sua reacção. Mandou-me entrar e sentar ao seu lado. Lia a nota da PIDE com as fotografias escarrapachadas no Diário de Notícias e comentava, olhe estes terroristas. Este é operário, quer ser ministro. E este! Um estudante universitário misturado com eles. Enganado!
Depois de lhe pedir um raminho de salsa voltei para casa mais descansada.

Depois veio a revolução dos cravos, a democracia e a liberdade. E a nossa vida passou a ser como a dos outros portugueses.
Mais alguma coisa sobre o que fazíamos e como era a nossa clandestinidade pode ser espreitada em www.raimundo.no.sapo.pt

Maria Machado

2005-01-28

Bagdad: Jardins Suspensos

Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Público, Sexta-feira, 28 de Janeiro de 2005

Se houver um milagre depois de amanhã, as eleições no Iraque decorrerão com um arremedo de normalidade e esforçada legitimidade democrática. Parte substancial da população e de cada uma das três principais facções civis participará, os resultados serão mais ou menos contados sem excessiva controvérsia e o número de mortos vítimas do terrorismo não excederá o normal em cada dia que passa. Horas depois, na tranquilidade do seu gabinete em Washington e com o optimismo simplista que é apanágio dos ignorantes, George Bush irá fazer uma declaração de satisfação pelo triunfo da "democracia" no Iraque. Mas, mesmo que tudo venha a correr razoavelmente bem - numas eleições em que só no próprio dia, e por razões de segurança, os eleitores saberão onde ficam as suas assembleias de voto e em que os candidatos não revelam a sua cara nos cartazes, por medo de serem assassinados no dia seguinte, e os jornalistas têm de cobrir as eleições a partir de hotéis fortificados -, vai ser ainda necessário que o milagre se prolongue nos dias, nas semanas e nos meses seguintes, para que o desfecho das urnas não venha a ser o tiro de largada de uma guerra civil geral entre iraquianos.
O cenário é de pré-catástrofe e a saída imprevisível e à mercê dos deuses e da fortuna. Os terroristas controlam o Iraque e ninguém sabe se conseguirão impedir as eleições e fazer despoletar a guerra civil. Eis o balanço de um dos principais objectivos invocados para a invasão do Iraque, precisamente o combate ao terrorismo. Agora, é a própria CIA a reconhecer que o Iraque é hoje o bastião do terrorismo, com a invasão anglo-americana a fornecer-lhe pretexto, recrutas, território fértil e uma "causa justa" por que lutar: a expulsão dos "infiéis".
O triunfo do terror no Iraque tornou igualmente, e por si só, numa miragem outra das promessas de Bush, feita directamente aos irquianos na noite em que começou a invasão: a de que ela iria levar a paz e o progresso ao Iraque. Hoje, biliões de dólares depois, gastos unicamente a manter o Exército de 170.000 soldados americanos no país, o que resta dessas promessas é só a própria presença militar: a ONU foi-se embora, as ONG foram-se embora, sem condições de segurança mínimas para actuarem, as empresas ocidentais que restam arriscam todos os dias a vida dos seus funcionários. Não há vida económica, nem sequer vida civil. Sunitas, xiitas e curdos, todos desesperam por uma coisa apenas: que os invasores ocidentais se vão embora e levem com eles os terroristas.
É certo que Saddam Hussein foi derrubado e preso e que isso representou um benefício para o Iraque e para a Humanidade. Mas os lucros políticos dessa libertação foram ensombrados pelo embuste do pretexto para a invasão - a busca das armas de destruição maciça -, que se revelou não apenas falso, mas também forjado; pela ignomínia dos abusos sobre prisioneiros em Abu Ghraib; pelo "desaparecimento" de 50.000 prisioneiros capturados pelo exército invasor e pela extensão ao Iraque da "doutrina de Guantánamo", segundo a qual um prisioneiro estrangeiro, capturado em território estrangeiro pelas forças americanas e sobre o qual se afirme ser suspeito de terrorismo, não dispõe de qualquer protecção jurídica, face à lei americana ou outra qualquer: é um "não-existente" juridicamente, tal como os "desaparecidos" da ditadura argentina.
Bush manteve ou promoveu, neste seu segundo governo, todos os principais responsáveis "pela mentira iraquiana: Rumsfeldt, Wolfovitz, Condolezza Rice e Alberto González, ligado ao escândalo de Abu Ghraib e feito, sintomaticamente, ministro da Justiça. As sondagens que explicam a vitória de Bush mostram, sem piedade, que os americanos não vão poder usar, mais tarde, a desculpa de que "não sabiam". Elas mostram que eles sabem que Bush e os seus lhes mentiram sobre as armas de destruição maciça; sabem que o terrorismo está a ganhar a guerra no Iraque e que já causou 1400 mortos apenas entre os soldados americanos, obrigados a manter uma guerra suja, diária e sem sentido à vista; sabem de Guantánamo e de Abu Ghraib; sabem da devastação, do sofrimento e da miséria que a aventura iraquiana trouxe às populações civis, para quem o discurso da "democracia" e da "amizade" de Bush deve soar como a mais hipócrita das promessas alguma vez feitas a um povo. Sabendo tudo isso, eles reconduziram Bush apenas porque continuam a vê-lo como o mais habilitado para conduzir a luta contra o terrorismo. Ou seja, apenas porque nenhum outro 11 de Setembro ou tragédia semelhante se repetiu - dentro das fronteiras americanas. Tal como o seu Presidente, a maioria dos americanos confia em que é possível vencer o terrorismo apenas pelo lado da segurança interna, sem o vencer politicamente.
Mas se a população americana tem a desculpa do trauma do 11 de Setembro, a Administração Bush não a tem. O Iraque demonstrou que os politólogos da Casa Branca se enganaram em tudo, que desprezaram ouvir as vozes dos que lhes aconselharam mais certezas e menos teorias - tantas vezes assentes em presunções ou simples mentiras, para tentar moldar a realidade às suas doutrinas e ao seu credo político. Como disse o senador democrata Mark Dayton a Condolezza Rice, "a Administração Bush mente com demasiada frequência e de forma flagrante e intencional. Mente ao Congresso, aos vários comités e ao povo americano. É errado, é imoral e, sobretudo, é muito, muito perigoso".
Perigoso, também, é quando se chega ao ponto em que uma opinião política, tolhida pelo medo e desnorteada pela desinformação dos seus líderes, prefere conviver com a mentira, perdoar-lhes a mentira, desde que eles lhes garantam, em contrapartida, ao menos uma aparência de segurança a curto prazo. Ao contrário do que ingenuamente proclamava o cartaz do Bloco de Esquerda ("Eles mentem, eles perdem"), nenhum deles perdeu pela mentira do Iraque: Bush foi reeleito e Blair está a caminho de o ser. Durão Barroso foi promovido a Bruxelas, apressando-se logo a dizer que agora era contra "o unilateralismo americano". E Aznar só perdeu porque foi o único cujo país foi vítima do terrorismo a seguir ao 11 de Setembro e porque não resistiu, na véspera das eleições, em mentir novamente, atribuindo à ETA o que era responsabilidade do terrorismo islâmico, que ele e os seguidores de Bush exponenciaram com a aventura iraquiana.
E assim se chegou à crucial data de 30 de Janeiro, fixada para as eleições iraquianas e que, há ano e meio atrás, parecia ainda suficientemente distante para garantir uma clara melhoria do ambiente civil e das condições de segurança no país. Infelizmente, o cenário é exactamente o oposto: nunca os terroristas ditaram tão livremente a sua lei como agora. Nunca, nem no tempo de Saddam, houve tantos mortos, tanta insegurança, tanta miséria, e ninguém consegue garantir se, até, tantos abusos sem controlo. Veja-se o exemplo dos nossos GNR no Iraque: qual é, de facto, a sua grande missão? Protegerem-se a si próprios. Evitar que o primeiro incidente sério ou o primeiro morto do contingente não venha despoletar, em Portugal, o debate adormecido de saber o que fazem lá eles, que não fingir que cumprem uma missão tornada utópica, salvar a face de quem para lá os mandou e manter a tradição da nossa política de vassalagem a Washington.
Mas Alá é grande e é essa a única, a verdadeira esperança que resta à coligação cristã-ocidental que teve a displicência de imaginar que a conquista do Iraque seria um passeio civilizacional.~

2005-01-24

PSD - Normas estatutárias de escolha dos candidatos a deputados

(Normas dos estatutos do partido)

Secção II - Conselho Nacional
Artº 18º
2. Compete ao Conselho Nacional:
f) Aprovar as propostas referentes ao apoio a uma candidatura a Presidente da República, à
designação do candidato a Primeiro-Ministro e às listas de candidatura à Assembleia da República e ao Parlamento Europeu, apresentadas pela Comissão Política Nacional;

Secção III - Comissão Política Nacional
Artº 21º
2. Compete à Comissão Política Nacional:
b) Apresentar ao Conselho Nacional as propostas de apoio a uma candidatura a Presidente da República e a Primeiro-Ministro e de listas de candidatura à Assembleia da República e ao Parlamento Europeu;

Divisão I - Assembleia Distrital
Artº 37º
2. Compete à Assembleia Distrital:
f) Dar parecer sobre as candidaturas à Assembleia da República;

Divisão II - Comissão Política Distrital
Artº 41º
2. Compete à Comissão Política Distrital:
c) Propor à Comissão Política Nacional candidaturas à Assembleia da República, ouvidas as Assembleias Distritais e as Secções;

Divisão II - Comissão Política de Secção
Artº 53º
2. Compete à Comissão Política de Secção:
e) Dar parecer sobre as candidaturas à Assembleia da República;

Vital Moreira na Convenção das Novas Fronteiras, no Estoril, em 2005-01-22

Caros amigos

1. Sou reincidente. Passados 10 anos sobre os Estados Gerais, de boa memória mas de efémeros resultados, apraz-me participar de novo convosco nesta manifestação de abertura do PS ao exterior. E não o faço com menos convicção e empenho do que há uma década.
Não está em causa somente o apelo da responsabilidade cívica ao homem de esquerda que eu sou e ao antigo militante político que eu fui. Se há momentos em que todos cidadãos que se interessam pelos destinos da República – mesmo se retirados da política e sem filiação partidária –, não devem ficar indiferentes, este tempo por que passamos é seguramente um deles. Na verdade, mais grave do que a crise das finanças públicas é a crise de confiança na política em geral e na governação em especial.
Aos dois governos da coligação PSD-CDS, especialmente ao de Santana Lopes, devemos seguramente um dos mais graves momentos de degenerescência e degradação da legitimidade da política e da credibilidade da democracia. Ninguém poderia imaginar que, 30 anos depois do 25 de Abril, um Governo e um primeiro-ministro revelassem tanta ausência de sentido de Estado e tanta falta de decência e de simples decoro político, que acaba na indigna litania da vitimização.
No plano político, estas eleições colocam fundamentalmente três desafios ao PS, como candidato natural à governação do País:
1º - Resgatar a seriedade e responsabilidade da política;
2º - Restaurar a dignidade e a autoridade do Estado e do governo;
3º - Devolver aos cidadãos a confiança na política e o sentido de identificação com as instituições.

2. Começo naturalmente pelo primeiro.
O que mais tem faltado em Portugal nos últimos 5 meses não são meios para equilibrar as contas públicas, mas sim competência, seriedade e responsabilidade política. Em vez disso tem sobrado o populismo, a imprevisibilidade política, o arrivismo, o triunfo dos interesses sectoriais, o favoritismo político, o assalto partidário ao aparelho do Estado, e por último o abuso de poder (como mostra a vertigem governativa do Governo depois de demitido).
Numa competição desleal com humoristas e cartunistas, o Primeiro-ministro e vários dos seus ministros dedicaram-se metodicamente a desacreditar a política em geral e o governo em especial, numa sucessão de demagogia, de intrigas intestinas, de ingerências nos media e de inconstância errática de políticas.
Entre os estragos a consertar pelo futuro governo socialista, a prioridade só pode ir para o resgate da seriedade e responsabilidade da política. Tanto como restaurar a saúde financeira, urge recuperar a saúde política. Só merece alcançar o poder quem, pelo seu passado, carácter, cultura política e fibra moral der garantias de uma governação conforme à Constituição e aos ditames da ética, da decência e da responsabilidade democrática.

3. O segundo desafio consiste em restaurar a dignidade e a eminência do Estado e do poder público democrático.
Sob a capa neoliberal, vai campeando por aí um discurso anarco-capitalista, que exalta o mercado e o privado acima de todas as coisas e que diaboliza e degrada o conceito de Estado e do poder público. Mas quanto maior for a erosão da autoridade do Estado, menor é a sua capacidade para cumprir as funções de que está constitucionalmente incumbido, maior é a margem de domínio e influência dos grupos de interesse e das corporações, e mais fundo é o sentimento de desamparo e de insegurança dos cidadãos comuns, em especial dos mais débeis e desprotegidos. Parafraseando um protagonista da Revolução Francesa, entre o fraco e o forte é o Estado que liberta e é a ausência dele que oprime.
Sem uma indiscutível respeitabilidade e autoridade do poder público e sem a reabilitação da esfera pública, o Estado democrático não está em condições de preencher as suas incontornáveis missões de garante das instituições democráticas, de responsável pela justiça e pela segurança, de regulador de mercado e da “auto-regulação privada”, de esteio dos serviços públicos essenciais, como a educação, a saúde e os demais serviços básicos, e de participação condigna nas instituições europeias e na cena internacional.
Um Estado-de-Direito democrático pressupõe a separação entre o que é público e o que é privado, entre a lógica do interesse público e a lógica dos interesses particulares. Essa separação ontológica está em risco, sempre que se manifestam fenómenos de promiscuidade entre o Estado e os interesses organizados, sejam eles de natureza económica, profissional, religiosa, desportiva, etc.
Há que pôr-lhes fim, a bem da autonomia e autoridade do poder público.

4. A terceira aposta tem de ser o restabelecimento da confiança dos cidadãos na política e nas instituições.
Um recente inquérito de opinião confirmou e reforçou a descrença da maioria dos cidadãos na política, nos partidos políticos e nas instituições, bem como a sua crescente desafeição em relação à participação democrática, em geral, e eleitoral, em particular. Outros inquéritos revelam idêntica decepção quanto à Administração e aos serviços públicos. Agrava-se a percepção relativa à corrupção e a outras práticas lesivas do interesse público.
Um governo PS não pode conformar-se com esta situação. Há que provar que os partidos não são “todos iguais”; que não andam “todos ao mesmo”; que as eleições são a escolha entre reais alternativas de valores, de políticas e de governantes; que o eleitoralismo populista deve ceder lugar à credibilidade das propostas eleitorais; que os compromissos eleitorais são para cumprir; que os políticos podem e devem ser impolutos e que a política não é um meio de enriquecimento nem de favorecimento pessoal; que o acesso aos cargos públicos se pautará por critérios de imparcialidade e de competência; que a improbidade e o compadrio serão combatidas com determinação.

5. Para responder a estes reptos há seguramente que efectuar reformas políticas (muitas das quais se arrastam há vários anos): desde o sistema eleitoral até à transparência administrativa; desde a limitação de mandatos políticos até aos inquéritos parlamentares; desde as imunidades políticas até à forma de recrutamento dos dirigentes administrativos. Mas nenhuma reforma será suficiente sem uma forte convicção e determinação política para mudar as coisas.
Uma das primeiras iniciativas do novo governo socialista espanhol foi a aprovação de um código de conduta do Governo e dos seus membros. É um documento notável, como o tem sido aliás a sua acção em muitos outros aspectos. De facto, tanto como as políticas, contam os governantes e o modo de governar.
Na nossa tradição republicana, um governo democrático não pode deixar de pautar-se por uma forte ética de dedicação à causa pública, de elevação cívica e de responsabilidade pessoal. Para um Governo do PS – que é herdeiro dessa tradição e que terá de preparar a comemoração do centenário da República, daqui a cinco anos –, é imperativo convocar de novo o espírito tutelar da cidadania republicana.
Estas eleições devem ser obviamente um confronto entre diferentes valores, ideias e políticas. Mas devem ser também – e talvez principalmente –, um confronto entre diferentes visões e práticas do Estado e do modo de fazer política. Da parte do PS – se necessário, fazendo uma revisão crítica da sua própria experiência governativa –, importa afirmar um novo modo de governar.
O que fica para a história dos governos não são somente as grandes decisões e reformas, mas também o carácter e a estatura da governação. É este o desafio do PS e de José Sócrates, em particular, e de todos nós, em geral. Que estejamos todos à altura dele!

Obrigado pela vossa atenção.

2005-01-12

Como o PS escolhe os seus candidatos a deputados

ESTATUTOS DO PARTIDO SOCIALISTA
APROVADOS NA COMISSÃO NACIONAL DE 11 DE JANEIRO DE 2003


Artigo 92º
(Da designação de candidatos a Deputados)

1. Quando se trate da designação de candidatos a deputados à Assembleia da República, compete à Comissão Política da Federação do respectivo círculo eleitoral aprovar a constituição da lista com observância dos critérios objectivos formulados pela Comissão Política Nacional e com respeito pelo disposto no número seguinte.
2. A Comissão Política Nacional, sob proposta do Secretário-Geral, tem o direito de designar candidatos para as listas, tendo em conta a respectiva dimensão, indicando o seu lugar de ordem, num número global nunca superior a 30% do número total de deputados eleitos na última eleição.
3. As listas são ratificadas pela Comissão Política Nacional, exclusivamente para efeito de avaliação da sua conformidade com o disposto nos números anteriores.

2005-01-05

Manuel Gusmão ganha dois prémios

In Público, 12 de Dezembro de 2002.

Fundação Luís Miguel Nava

Prémios de Poesia para Manuel Gusmão e Armando Silva Carvalho

Alexandra Lucas Coelho

Distinções relativas a 2001 e 2000, para os livros "Teatros do Tempo" e "Lisboas"

"Teatros do Tempo", de Manuel Gusmão, e "Lisboas", de Armando Silva Carvalho, foram os livros distinguidos com os prémios de poesia Luís Miguel Nava relativos a 2001 e 2000, respectivamente.

"Teatros do Tempo", considerada pela crítica uma das mais importantes obras poéticas recentes, já recebera, há uma semana, o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (APE).

Professor da Faculdade de Letras de Lisboa e autor de ensaios fundamentais sobre poesia portuguesa contemporânea, Manuel Gusmão estreou-se como poeta apenas aos 45 anos, em 1990, com "Dois Sóis, A Rosa a Arquitectura do Mundo". Seis anos depois, publicou "Mapas, o Assombro a Sombra". Mas foi com este "Teatros do Tempo" que o eco da sua obra (toda publicada na Caminho) se alargou. Além do bom acolhimento crítico, o livro esgotou e foi reeditado em poucos meses.

"Os prémios surpreendem-me, mas já me tinha surpreendido a recepção que o livro teve", diz Manuel Gusmão. "Admito que este livro seja mais motivador de uma resposta no plano emocional [do que os anteriores]. Sendo que não deixa de ser o livro mais construído. Talvez o apreço tenha a ver com essa dupla circunstância: a construção, evidente, e uma dimensão que produz um efeito de autobiografia - desde que se compreenda que a autobiografia passa sempre pela ficção."

Composto por três andamentos, "Teatros do Tempo" conflui para um núcleo intensamente negro, como um fim. Mas no fim, o que encontramos é uma possibilidade de recomeço: "Contra todas as evidências, em contrário, a alegria." Um verso, lembra Manuel Gusmão, que vários leitores, não especializados, têm vindo a citar. "Talvez este fosse o meu livro mais negro. E, por outro lado, sob a forma de um apelo, um livro que não desiste dessa palavra, alegria. Uma palavra que só adquire toda a sua força se passar pela dor. Quem não for capaz de ser queimado, num sentido amoroso, também não poderá queimar. Quem não for capaz de sustentar uma dor, tenderá a não perceber o lado intenso da alegria."

Adiante-se que este poeta tem já um novo "livro a caminho", em torno da ideia de migrações: "De um filme para outro filme ou para um poema, de cenas da pintura para um poema: segmentos verbais que importam imagens, sentimentos, experiências." Ainda sem nome, a estrutura de poemas com oito oitavas será uma das linhas fortes da construção desse livro futuro.

Para Gastão Cruz - que, com Fernando Pinto do Amaral, Carlos Mendes de Sousa, Paulo Teixeira e Helena Buescu, fez parte do júri do Prémio Luís Miguel Nava - "Teatros do Tempo" é "o momento mais alto" da poesia de Manuel Gusmão, o livro em que se apura "uma intensidade emocional da linguagem."

A cidade sonâmbula

Instituído em 1998 - homenageando o poeta Luís Miguel Nava, que fora assassinado em Bruxelas, três anos antes - este prémio, no valor de 5000 euros, contemplou já Sophia de Mello Breyner ("Búzio de Cós"), Fernando Echevarría ("Geórgicas"), António Franco Alexandre ("Quatro Caprichos") e Armando Silva Carvalho ("Lisboas").

Mas esta última distinção, referente a 2000, só foi anunciada ontem, em conjunto com a de Manuel Gusmão, porque entretanto esteve a ser negociado o patrocínio do prémio, que cabe ao BPI.

O júri para o prémio relativo a 2000 foi constituído pelos quatro membros da Fundação Luís Miguel Nava já referidos, com Paula Morão como convidada (tal como Helena Buescu, na edição referente ao ano passado).

"'Lisboas' é um dos principais livros de poesia publicados em 2000", sintetiza Gastão Cruz. "E é um livro representativo do estilo de Armando Silva Carvalho. Mistura uma abordagem crítica da realidade com uma poderosa invenção verbal. Julgo que é um dos picos da criação de um poeta que talvez não tenha tido a projecção que a poesia dele justificaria."

Para Armando Silva Carvalho, a relevância deste prémio começa no nome: "Faz-me lembrar o Luís Miguel Nava, de quem eu era muito amigo. Portanto, ao mesmo tempo fico triste. Ele foi das pessoas que mais se interessou pela minha poesia, e escreveu sobre ela."

Escrito com o apoio de uma bolsa de criação literária do Ministério da Cultura, "Lisboas" obedecia a um tema, previamente esboçado no projecto entregue a concurso. "O programa era um conjunto de poemas em relação à cidade", lembra Armando Silva Carvalho, lisboeta de São Domingos de Benfica. "Os climas, topografias, contrastes que fazem com que este cidade seja o que é, uma cidade de desvairadas gentes, como dizia o Fernão Lopes, mas agora com um carácter mais sórdido. Uma cidade exótica, no pior sentido, relativamente morta, em que as pessoas parecem deambular como sonâmbulas."

"Lisboas" está editado pela Quetzal.
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In Diário de Notícias . Lisboa · 04 de Dezembro de 2002

Grande Prémio de Poesia APE distingue obra de Manuel Gusmão

Teatros do Tempo, de Manuel Gusmão, editado pela Caminho, em 2001, acaba de ser distinguido com o Grande Prémio de Poesia APE/CTT. Trata-se de um galardão no valor de dez mil euros atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores e integralmente patrocinado pelos CTT - Correios de Portugal.
O júri - que decidiu por unanimidade - era constituído por Alexandre Vargas, Carlos Mendes de Sousa, Ernesto José Rodrigues, Luís Adriano Carlos e Yvette Centeno. A cerimónia de entrega do Grande Prémio de Poesia será oportunamente divulgada. Manuel Gusmão foi já distinguido com o Prémio Pen Club de Poesia.
O autor, também professor universitário, tem publicados Dois Sóis, A Rosa e Mapas - o Assombro a Sombra. Mais recentemente, Os Dias Levantados, uma terceira versão do libreto da ópera de António Pinho Vargas, encomendado pelo Parque Expo para o Festival dos Cem Dias, que não coincide com nenhuma das duas anteriores. Tem reconhecida obra no domínio do ensaio, designadamente sobre Fernando Pessoa, Carlos de Oliveira, Nuno Bragança, Maria Velho da Costa, Luiza Neto Jorge e Gastão Cruz. Manuel Gusmão nasceu, em Évora, em Dezembro de 1945 e é professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi deputado na Assembleia Constituinte e na 1.ª legislatura da Assembleia da República, eleito pelo PCP.

Gonçalo M. Tavares - Entrevista

In Diário de Notícias Lisboa · 21 de Janeiro de 2002


Entrevista – Gonçalo M. Tavares

Poesia ou um mapa de cicatrizes

«Livro da Dança» é o primeiro livro de Gonçalo M. Tavares que acaba de ser editado pela Assírio & Alvim. Poesia conceptual, afirmativa, empenhada na investigação da linguagem. Poesia «ficcional» às voltas com o corpo, que «hesita entre a perfeição e o desastre».
Ana Marques Gastão

O «Livro da Dança» pode fazer crer na possibilidade de um esboço filosófico para a poesia...

A poesia pode ser um método de investigação, de obtenção de conhecimento, cujo principal material é a linguagem. E as suas possibilidades são quase infinitas. Wittgenstein tinha razão. Tenho alergia à ideia de que a poesia não deve ser pensada. Trata-se de uma espécie de ciência individual que não quer encontrar algo apenas reproduzível, mas único.

Não se está a referir ao lado metafísico de Wittgenstein?

Tenho desconfianças em relação à metafísica. Sou, por um lado, um céptico, e culpo-me de não me conseguir entregar totalmente. Balanço muito entre Wittgenstein e Michaux, entre o abstracto - gosto de ideias, pensar é simpático - e o regresso à realidade.

Qual a parte que se sobrepõe?

Sou biologicamente literário. Deve haver uma espécie de órgão que os escritores têm que está para além da anatomia. A primeira arte dir-se-ia a de saber o que vamos fazer com os ossos, com o corpo. A leitura de Séneca aí auxilia-me: esforço-me para que a parte biológica literária seja a minha segunda parte, e não ocupe a totalidade. A primeira camada é afectiva e a segunda literária. Gosto muito da ideia de ficção. De pôr uma mesa entre o que escrevo e o que sou. Se for possível tomar café com o que escrevo... Acredito mais na ideia de ficção do que na ideia de verdade, por isso este livro talvez se insira no que se possa chamar de filosofia ficcional. O conjunto de todas as mentiras é a verdade.

«Confirmar o Círculo com os pés». A dança a que se refere como movimento circular pode ser uma metáfora da existência? O mundo é redondo?

Cruzam-se aí a geometria, a parte abstracta, e o pé, a parte concreta. A linguagem deste livro é afirmativa. Um padre contava, no outro dia, uma história impressionante. Dizia que quando, à noite, punha a lanterna em cima da cadeira, dormia sobressaltado com medo que ela caísse. A partir do momento em que pôs a lanterna no chão, passou a dormir descansado. É isso que temos de fazer com a vida, pô-la no chão. Procuro fazer o círculo com os pés, porque é trágico ter um corpo.

E morrer... Associa a morte à inocência e à angústia. A morte passa, no entanto, aqui de fugida?

De algum modo, mas o pensamento ficcional pressupõe que tudo o que digo possa ter um oposto. Este livro é nesse sentido um antimanifesto. Trata-se de um percurso de raciocínio, o que não desvaloriza a essência do que se diz. Como se fosse uma certeza definitiva instantânea. Porque o Mundo é antes de mais trágico.

É pela valorização desses instantes que foge da morte?

Provavelmente. Talvez eu jogue com a morte. Rodeio o definitivo como se fosse um poço onde nunca vou beber água. A ideia de verdade tem a ver com a da morte. Fujo das duas. Um dos percursos etimológicos da palavra definir relaciona-se com dizer uma última palavra sobre. Prefiro palavras intermédias, que não nos encerrem.

Busca «um exemplar de deus»?

Esse exemplar de deus é um numa edição de dez mil, e nós podemos ter a sorte de adquirir um. A minha parte metafísica tem a ver com a parábola de Buda, a do homem agredido por uma flecha que pergunta: de onde vem a flecha, é feita de quê, atingiram-me porquê? Buda responde que o importante é conseguir arrancá-la. Procura-se, como em A Palavra, de Dreyer, a palavra que pode salvar e levantar a morte. Mas não há palavra que salve.

No seu livro fala da «metafísica da casa», que procura arrumar à maneira de Bachelard. E fá-lo por raciocínios silogísticos, convertendo o acto poético numa reflexão sobre a existência.

Nada é desperdiçável: o silogismo, o aforismo, o tédio, o furismo... Nem o lixo. Quando estou com o furismo, não há mais nada do que a escrita. Mas se olharmos para um manipulo da janela, talvez aquele toque de fechar e abrir faça mais sentido. A santidade parte de pequenas crueldades. Não é possível estarmos disponíveis para toda a gente se antes não fizermos cortes. Estamos biologicamente derrotados.

O livro tem essa lucidez e vive de um jogo de contrários: a beleza e as fezes. Hesita «entre a perfeição e o desastre»?

A frase resume bem o que penso. Há algo a que sou alérgico: a ideia de que existem palavras com o selo do poético e outras não. Perdem-se por delicadeza não só vidas, mas alguns poemas. Também não gosto da poesia de linguagem baixa, comum. É uma linguagem fora do tempo. Breton dizia que «o acto de amor e de poesia são incompatíveis com a leitura dos jornais em voz alta».

Somos «cicatrizes portáteis»?

Acho que sim, mas também festas de aniversário portáteis dos nossos filhos. A poesia é uma espécie de mapa de cicatrizes.

O amor não é uma cicatriz?

É um algodão com álcool, que tenta aproximar-se da cicatriz, rodeando-a com gestos mansos.
O seu livro remete para a cartografia do desastre de Artaud.
Gosto da imagem de Artaud, a do corpo sem órgãos. A ideia de um corpo sem órgãos, vazio, e disponível para dançar inscreve-se, de certo modo, neste livro.
«Livro da Dança» tem alguns ecos do surrealismo, sobretudo pelo lado do riso, da ironia.
Talvez por esse lado. Prefiro as pequenas deslocações. O surrealismo desloca de forma substancial, tanto a linguagem, como as coisas, o que nos põe à defesa.
E utiliza, de algum modo, processos do experimentalismo...
Não há a ideia de: «deixa-me experimentar isto.» Mas sim a de não definitivo, de investigação.

Parte da desunião entre o espírito e o mundo. Há uma solidão constitutiva neste livro?

Poderia viver num mundo quase literário. Não me faltaria o oxigénio, nem o bife. Mas só nos podemos juntar aos outros, se tivermos densidade. A solidão que o processo literário valoriza é constitutiva, e permite que levemos algo connosco.

Mesmo na ruína, no desastre?
Diz um provérbio que, depois de terem roubado tudo a um mestre budista, este comentou: «Pelo menos não me roubaram a lua do canto da janela».

«E a felicidade é mais importante que a realidade, portanto»?

Portanto uma ficção feliz é mais feliz que uma realidade infeliz.
A cara da notícia
Gonçalo Tavares
Escritor

Gonçalo M. Tavares
nasceu em 1970 e é professor na Faculdade de Motricidade Humana onde lecciona a cadeira de Epistemologia. Acaba de publicar, pela mão da editora Assírio & Alvim, Livro da Dança, que pode ser considerado, no entender do autor, como um antimanifesto na medida em que se trata de «um percurso, de raciocínio».
Foi bolseiro de criação literária do Ministério da Cultura, na área de poesia, no ano 2000, e distinguido com o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores pelo livro Investigações. Novalis (a editar, em Abril, pela Difel).O Prémio Branquinho da Fonseca da Fundação Calouste Gulbenkian e do jornal Expresso foi-lhe também atribuído pela obra O Senhor Valéry, a sair em breve. Em Maio, Gonçalo M. Tavares estreará, no teatro A Capital, a sua primeira peça de teatro a partir dos textos O Homem ou É Tonto ou É Mulher e Debaixo da Cidade. Com encenação de Manuel Wiborg.