2005-01-24

Vital Moreira na Convenção das Novas Fronteiras, no Estoril, em 2005-01-22

Caros amigos

1. Sou reincidente. Passados 10 anos sobre os Estados Gerais, de boa memória mas de efémeros resultados, apraz-me participar de novo convosco nesta manifestação de abertura do PS ao exterior. E não o faço com menos convicção e empenho do que há uma década.
Não está em causa somente o apelo da responsabilidade cívica ao homem de esquerda que eu sou e ao antigo militante político que eu fui. Se há momentos em que todos cidadãos que se interessam pelos destinos da República – mesmo se retirados da política e sem filiação partidária –, não devem ficar indiferentes, este tempo por que passamos é seguramente um deles. Na verdade, mais grave do que a crise das finanças públicas é a crise de confiança na política em geral e na governação em especial.
Aos dois governos da coligação PSD-CDS, especialmente ao de Santana Lopes, devemos seguramente um dos mais graves momentos de degenerescência e degradação da legitimidade da política e da credibilidade da democracia. Ninguém poderia imaginar que, 30 anos depois do 25 de Abril, um Governo e um primeiro-ministro revelassem tanta ausência de sentido de Estado e tanta falta de decência e de simples decoro político, que acaba na indigna litania da vitimização.
No plano político, estas eleições colocam fundamentalmente três desafios ao PS, como candidato natural à governação do País:
1º - Resgatar a seriedade e responsabilidade da política;
2º - Restaurar a dignidade e a autoridade do Estado e do governo;
3º - Devolver aos cidadãos a confiança na política e o sentido de identificação com as instituições.

2. Começo naturalmente pelo primeiro.
O que mais tem faltado em Portugal nos últimos 5 meses não são meios para equilibrar as contas públicas, mas sim competência, seriedade e responsabilidade política. Em vez disso tem sobrado o populismo, a imprevisibilidade política, o arrivismo, o triunfo dos interesses sectoriais, o favoritismo político, o assalto partidário ao aparelho do Estado, e por último o abuso de poder (como mostra a vertigem governativa do Governo depois de demitido).
Numa competição desleal com humoristas e cartunistas, o Primeiro-ministro e vários dos seus ministros dedicaram-se metodicamente a desacreditar a política em geral e o governo em especial, numa sucessão de demagogia, de intrigas intestinas, de ingerências nos media e de inconstância errática de políticas.
Entre os estragos a consertar pelo futuro governo socialista, a prioridade só pode ir para o resgate da seriedade e responsabilidade da política. Tanto como restaurar a saúde financeira, urge recuperar a saúde política. Só merece alcançar o poder quem, pelo seu passado, carácter, cultura política e fibra moral der garantias de uma governação conforme à Constituição e aos ditames da ética, da decência e da responsabilidade democrática.

3. O segundo desafio consiste em restaurar a dignidade e a eminência do Estado e do poder público democrático.
Sob a capa neoliberal, vai campeando por aí um discurso anarco-capitalista, que exalta o mercado e o privado acima de todas as coisas e que diaboliza e degrada o conceito de Estado e do poder público. Mas quanto maior for a erosão da autoridade do Estado, menor é a sua capacidade para cumprir as funções de que está constitucionalmente incumbido, maior é a margem de domínio e influência dos grupos de interesse e das corporações, e mais fundo é o sentimento de desamparo e de insegurança dos cidadãos comuns, em especial dos mais débeis e desprotegidos. Parafraseando um protagonista da Revolução Francesa, entre o fraco e o forte é o Estado que liberta e é a ausência dele que oprime.
Sem uma indiscutível respeitabilidade e autoridade do poder público e sem a reabilitação da esfera pública, o Estado democrático não está em condições de preencher as suas incontornáveis missões de garante das instituições democráticas, de responsável pela justiça e pela segurança, de regulador de mercado e da “auto-regulação privada”, de esteio dos serviços públicos essenciais, como a educação, a saúde e os demais serviços básicos, e de participação condigna nas instituições europeias e na cena internacional.
Um Estado-de-Direito democrático pressupõe a separação entre o que é público e o que é privado, entre a lógica do interesse público e a lógica dos interesses particulares. Essa separação ontológica está em risco, sempre que se manifestam fenómenos de promiscuidade entre o Estado e os interesses organizados, sejam eles de natureza económica, profissional, religiosa, desportiva, etc.
Há que pôr-lhes fim, a bem da autonomia e autoridade do poder público.

4. A terceira aposta tem de ser o restabelecimento da confiança dos cidadãos na política e nas instituições.
Um recente inquérito de opinião confirmou e reforçou a descrença da maioria dos cidadãos na política, nos partidos políticos e nas instituições, bem como a sua crescente desafeição em relação à participação democrática, em geral, e eleitoral, em particular. Outros inquéritos revelam idêntica decepção quanto à Administração e aos serviços públicos. Agrava-se a percepção relativa à corrupção e a outras práticas lesivas do interesse público.
Um governo PS não pode conformar-se com esta situação. Há que provar que os partidos não são “todos iguais”; que não andam “todos ao mesmo”; que as eleições são a escolha entre reais alternativas de valores, de políticas e de governantes; que o eleitoralismo populista deve ceder lugar à credibilidade das propostas eleitorais; que os compromissos eleitorais são para cumprir; que os políticos podem e devem ser impolutos e que a política não é um meio de enriquecimento nem de favorecimento pessoal; que o acesso aos cargos públicos se pautará por critérios de imparcialidade e de competência; que a improbidade e o compadrio serão combatidas com determinação.

5. Para responder a estes reptos há seguramente que efectuar reformas políticas (muitas das quais se arrastam há vários anos): desde o sistema eleitoral até à transparência administrativa; desde a limitação de mandatos políticos até aos inquéritos parlamentares; desde as imunidades políticas até à forma de recrutamento dos dirigentes administrativos. Mas nenhuma reforma será suficiente sem uma forte convicção e determinação política para mudar as coisas.
Uma das primeiras iniciativas do novo governo socialista espanhol foi a aprovação de um código de conduta do Governo e dos seus membros. É um documento notável, como o tem sido aliás a sua acção em muitos outros aspectos. De facto, tanto como as políticas, contam os governantes e o modo de governar.
Na nossa tradição republicana, um governo democrático não pode deixar de pautar-se por uma forte ética de dedicação à causa pública, de elevação cívica e de responsabilidade pessoal. Para um Governo do PS – que é herdeiro dessa tradição e que terá de preparar a comemoração do centenário da República, daqui a cinco anos –, é imperativo convocar de novo o espírito tutelar da cidadania republicana.
Estas eleições devem ser obviamente um confronto entre diferentes valores, ideias e políticas. Mas devem ser também – e talvez principalmente –, um confronto entre diferentes visões e práticas do Estado e do modo de fazer política. Da parte do PS – se necessário, fazendo uma revisão crítica da sua própria experiência governativa –, importa afirmar um novo modo de governar.
O que fica para a história dos governos não são somente as grandes decisões e reformas, mas também o carácter e a estatura da governação. É este o desafio do PS e de José Sócrates, em particular, e de todos nós, em geral. Que estejamos todos à altura dele!

Obrigado pela vossa atenção.

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