Entrevista – Gonçalo M. Tavares
Poesia ou um mapa de cicatrizes
«Livro da Dança» é o primeiro livro de Gonçalo M. Tavares que acaba de ser editado pela Assírio & Alvim. Poesia conceptual, afirmativa, empenhada na investigação da linguagem. Poesia «ficcional» às voltas com o corpo, que «hesita entre a perfeição e o desastre».
Ana Marques Gastão
O «Livro da Dança» pode fazer crer na possibilidade de um esboço filosófico para a poesia...
A poesia pode ser um método de investigação, de obtenção de conhecimento, cujo principal material é a linguagem. E as suas possibilidades são quase infinitas. Wittgenstein tinha razão. Tenho alergia à ideia de que a poesia não deve ser pensada. Trata-se de uma espécie de ciência individual que não quer encontrar algo apenas reproduzível, mas único.
Não se está a referir ao lado metafísico de Wittgenstein?
Tenho desconfianças em relação à metafísica. Sou, por um lado, um céptico, e culpo-me de não me conseguir entregar totalmente. Balanço muito entre Wittgenstein e Michaux, entre o abstracto - gosto de ideias, pensar é simpático - e o regresso à realidade.
Qual a parte que se sobrepõe?
Sou biologicamente literário. Deve haver uma espécie de órgão que os escritores têm que está para além da anatomia. A primeira arte dir-se-ia a de saber o que vamos fazer com os ossos, com o corpo. A leitura de Séneca aí auxilia-me: esforço-me para que a parte biológica literária seja a minha segunda parte, e não ocupe a totalidade. A primeira camada é afectiva e a segunda literária. Gosto muito da ideia de ficção. De pôr uma mesa entre o que escrevo e o que sou. Se for possível tomar café com o que escrevo... Acredito mais na ideia de ficção do que na ideia de verdade, por isso este livro talvez se insira no que se possa chamar de filosofia ficcional. O conjunto de todas as mentiras é a verdade.
«Confirmar o Círculo com os pés». A dança a que se refere como movimento circular pode ser uma metáfora da existência? O mundo é redondo?
Cruzam-se aí a geometria, a parte abstracta, e o pé, a parte concreta. A linguagem deste livro é afirmativa. Um padre contava, no outro dia, uma história impressionante. Dizia que quando, à noite, punha a lanterna em cima da cadeira, dormia sobressaltado com medo que ela caísse. A partir do momento em que pôs a lanterna no chão, passou a dormir descansado. É isso que temos de fazer com a vida, pô-la no chão. Procuro fazer o círculo com os pés, porque é trágico ter um corpo.
E morrer... Associa a morte à inocência e à angústia. A morte passa, no entanto, aqui de fugida?
De algum modo, mas o pensamento ficcional pressupõe que tudo o que digo possa ter um oposto. Este livro é nesse sentido um antimanifesto. Trata-se de um percurso de raciocínio, o que não desvaloriza a essência do que se diz. Como se fosse uma certeza definitiva instantânea. Porque o Mundo é antes de mais trágico.
É pela valorização desses instantes que foge da morte?
Provavelmente. Talvez eu jogue com a morte. Rodeio o definitivo como se fosse um poço onde nunca vou beber água. A ideia de verdade tem a ver com a da morte. Fujo das duas. Um dos percursos etimológicos da palavra definir relaciona-se com dizer uma última palavra sobre. Prefiro palavras intermédias, que não nos encerrem.
Busca «um exemplar de deus»?
Esse exemplar de deus é um numa edição de dez mil, e nós podemos ter a sorte de adquirir um. A minha parte metafísica tem a ver com a parábola de Buda, a do homem agredido por uma flecha que pergunta: de onde vem a flecha, é feita de quê, atingiram-me porquê? Buda responde que o importante é conseguir arrancá-la. Procura-se, como em A Palavra, de Dreyer, a palavra que pode salvar e levantar a morte. Mas não há palavra que salve.
No seu livro fala da «metafísica da casa», que procura arrumar à maneira de Bachelard. E fá-lo por raciocínios silogísticos, convertendo o acto poético numa reflexão sobre a existência.
Nada é desperdiçável: o silogismo, o aforismo, o tédio, o furismo... Nem o lixo. Quando estou com o furismo, não há mais nada do que a escrita. Mas se olharmos para um manipulo da janela, talvez aquele toque de fechar e abrir faça mais sentido. A santidade parte de pequenas crueldades. Não é possível estarmos disponíveis para toda a gente se antes não fizermos cortes. Estamos biologicamente derrotados.
O livro tem essa lucidez e vive de um jogo de contrários: a beleza e as fezes. Hesita «entre a perfeição e o desastre»?
A frase resume bem o que penso. Há algo a que sou alérgico: a ideia de que existem palavras com o selo do poético e outras não. Perdem-se por delicadeza não só vidas, mas alguns poemas. Também não gosto da poesia de linguagem baixa, comum. É uma linguagem fora do tempo. Breton dizia que «o acto de amor e de poesia são incompatíveis com a leitura dos jornais em voz alta».
Somos «cicatrizes portáteis»?
Acho que sim, mas também festas de aniversário portáteis dos nossos filhos. A poesia é uma espécie de mapa de cicatrizes.
O amor não é uma cicatriz?
É um algodão com álcool, que tenta aproximar-se da cicatriz, rodeando-a com gestos mansos.
O seu livro remete para a cartografia do desastre de Artaud.
Gosto da imagem de Artaud, a do corpo sem órgãos. A ideia de um corpo sem órgãos, vazio, e disponível para dançar inscreve-se, de certo modo, neste livro.
«Livro da Dança» tem alguns ecos do surrealismo, sobretudo pelo lado do riso, da ironia.
Talvez por esse lado. Prefiro as pequenas deslocações. O surrealismo desloca de forma substancial, tanto a linguagem, como as coisas, o que nos põe à defesa.
E utiliza, de algum modo, processos do experimentalismo...
Não há a ideia de: «deixa-me experimentar isto.» Mas sim a de não definitivo, de investigação.
Parte da desunião entre o espírito e o mundo. Há uma solidão constitutiva neste livro?
Poderia viver num mundo quase literário. Não me faltaria o oxigénio, nem o bife. Mas só nos podemos juntar aos outros, se tivermos densidade. A solidão que o processo literário valoriza é constitutiva, e permite que levemos algo connosco.
Mesmo na ruína, no desastre?
Diz um provérbio que, depois de terem roubado tudo a um mestre budista, este comentou: «Pelo menos não me roubaram a lua do canto da janela».
«E a felicidade é mais importante que a realidade, portanto»?
Portanto uma ficção feliz é mais feliz que uma realidade infeliz.
A cara da notícia
Gonçalo Tavares
Gonçalo Tavares
Escritor
Gonçalo M. Tavares nasceu em 1970 e é professor na Faculdade de Motricidade Humana onde lecciona a cadeira de Epistemologia. Acaba de publicar, pela mão da editora Assírio & Alvim, Livro da Dança, que pode ser considerado, no entender do autor, como um antimanifesto na medida em que se trata de «um percurso, de raciocínio».
Foi bolseiro de criação literária do Ministério da Cultura, na área de poesia, no ano 2000, e distinguido com o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores pelo livro Investigações. Novalis (a editar, em Abril, pela Difel).O Prémio Branquinho da Fonseca da Fundação Calouste Gulbenkian e do jornal Expresso foi-lhe também atribuído pela obra O Senhor Valéry, a sair em breve. Em Maio, Gonçalo M. Tavares estreará, no teatro A Capital, a sua primeira peça de teatro a partir dos textos O Homem ou É Tonto ou É Mulher e Debaixo da Cidade. Com encenação de Manuel Wiborg.
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