2008-11-02

Colóquio Tarrafal - uma prisão dois continentes. (2)

Intervenção de Raimundo Narciso
(Presidente da Direcção do Movimento Cívico Não Apaguem a Memória)
Assembleia da República
29 de Outubro de 2008

Sr Presidente da Assembleia da República,
Sr Ministro da Justiça,
Senhores Deputados,
Srª Governadora Civil de Lisboa,
Sr Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados,
Srªs e Srs convidados

As minhas primeiras palavras vão para os ex-prisioneiros do Tarrafal aqui presentes a cujo exemplo de luta presto homenagem e simbolicamente, por seu intermédio, a todas as vítimas do fascismo e colonialismo português a todos os que lutaram pela liberdade em Portugal e nas suas antigas colónias .

Não Apaguem a Memória é o lema que guia o nosso Movimento e estou certo que hoje todos os participantes neste colóquio ajudarão a que ele ganhe expressivo significado.
O nosso trabalho, hoje aqui, dará uma resposta afirmativa à crítica-apelo do filósofo José Gil que no seu livro PORTUGAL, HOJE o Medo de Existir aponta o dedo ao país que somos, como o país da não inscrição, do país que recusa inscrever na sua história e na imagem que faz de si, os momentos mais negativos tornando recorrente a assombração de espectros insepultos.

Apesar de não me querer antecipar aos testemunhos e análises que aqui virão gostaria no entanto de referir entre os 32 mortos portugueses no Tarrafal o Secretário Geral do PCP, o operário Bento Gonçalves, e o dirigente da Confederação Geral do Trabalho, Mário Castelhano, e também quão jovens eram muitos dos que ali morreram alguns com apenas 24 anos de idade. A juventude dos presos não detinha a sanha persecutória da ditadura. Na primeira leva de 152 prisioneiros ia o grupo de 34 marinheiros da Organização Revolucionária da Armada, jovens, alguns com 19 e 20 anos. A estrear a colónia penal ia também, pai e filho, Gabriel Pedro e Edmundo Pedro este aqui presente, tinha então apenas 17 anos de idade. As torturas, as humilhações, a condenação à insalubridade, as condições climáticas extremas, o suplício na câmara de tortura que era a “frigideira” de má fama, a falta de apoio médico tinham na realidade o objectivo de condenar à morte os prisioneiros que não se vergassem aos ditames do fascismo em ascensão na Europa e representado em Portugal pelo supostamente piedoso ex-seminarista, António de Oliveira Salazar, que à beira do sacerdócio, em má hora, optou pela política.

A derrota dos fascismos na Europa pelos aliados, em 1945, obrigou o fechou a prazo do campo do Tarrafal o que se veio a verificar 9 anos depois, em 1954. Mas as lutas de libertação das colónias levaram o regime a reabri-lo, agora para os africanos.

O contexto internacional era agora muito menos auspicioso para o regime da ditadura mas nem por isso o regime prisional imposto aos africanos no “Campo de Trabalho de Chão Bom” foi menos violento e as barbaridades lá cometidas neste período, de 1961 a 1974 sendo ainda pouco divulgadas, serão seguramente aqui trazidas hoje por testemunhos de quem viveu esses tempos de ignomínia da nossa história comum.

O campo de concentração do Tarrafal tornou-se um símbolo. Um símbolo, sem dúvida trágico, mas revelador de que a luta pela liberdade não tem fronteiras, não escolhe continentes, nem raça, nem cor da pele e nela, no Tarrafal, irmanou europeus e africanos. O Tarrafal, primeiro para portugueses e depois para angolanos, guineenses e cabo-verdianos, constituiu a prova de que a luta de uns e outros era uma luta convergente. Mostrou que a luta pela democracia em Portugal fortalecia a luta pela libertação dos povos das colónias e a luta dos africanos pela libertação dos seus países era simultaneamente uma componente da luta dos portugueses pela conquista da democracia. Isso tornou-se particularmente visível com o movimento insurgente dos capitães que teve a sua origem no descontentamento com as guerras sem fim em África.

Permitam-me que evoque aqui um amigo que foi o último prisioneiro português a deixar o campo do Tarrafal, Francisco Miguel, onde viveu em completa solidão durante 6 meses antes de ser embarcado para Portugal em 26 de Janeiro de 1954. Reenviado para Portugal mas não para a liberdade pois do cais seguiu logo para a cadeia de Caxias e depois para a do forte de Peniche.
Francisco Miguel já tinham passado 5 anos na colónia penal na primeira vez que para lá fora condenado e agora completava mais três anos do total de 22 anos de prisão política que sofreu até à célebre fuga, em 1961, do forte-prisão de Caxias no automóvel blindado de Salazar, ali guardado.
Francisco Miguel era sapateiro mas no Campo do Tarrafal foi castigado com serviços mais duros e negaram-lhe a actividade na profissão. Quando mais tarde lhe ofereceram essa oportunidade, certamente por falta de mão de obra na especialidade, ele recusou e isso valeu-lhe 20 dias na terrível tortura da “frigideira”. Recusou de novo à saída e assim manteve uma prova de força várias vezes repetida a que dificilmente sobreviveu. Coragem e obstinação não lhe faltavam.
Francisco Miguel, membro do CC do PCP, estava em Paris em 1968, mas após muita insistência, (o seu partido não queria que após 22 anos de cadeia voltasse a ser preso) obteve autorização para regressar a Portugal para participar na organização que se preparava para acções armadas, contra o regime e que teriam como alvo principal a logística da guerra colonial, a Acção Revolucionária Armada.
Antes de conseguir uma casa clandestina em condições de defesa adequadas viveu comigo e com a minha mulher, na nossa casa clandestina, de então, em Benfica, durante uns dois meses e aí lhe ouvi as muitas histórias que tinha para contar do seu Alentejo, do Tarrafal, da prisão de Caxias, de Peniche, e das quatro fugas que empreendeu das prisões políticas. Com 62 anos regressou à luta na clandestinidade em Portugal em 1968. Não é exemplo único. Também com 70 anos de idade o ex-tarrafalista Gabriel Pedro então a viver com a família em Paris, também insistiu com a direcção do PCP para vir participar na primeira acção armada da ARA, em 1970, na sabotagem do navio Cunene o mais moderno cargueiro português ao serviço das guerras coloniais. Gabriel Pedro que conheci exactamente na execução dessa acção armada da ARA era com aquela idade um desenvolto operacional, homem de coragem inquebrantável, qualidades que transmitiu ao filho.


Numa pesquisa pela internet nos arquivos da Torre do Tombo sobre o Campo prisional do Chão Bom encontrei um grande número de documentos sobre os presos de países africanos alguns deles reveladores das arbitrariedades usadas contra os presos. Não sobre as brutais violências físicas, que essas não iam para o papel, mas sobre decisões de rotina tidas por naturais mas eloquentes da violência psicológica e moral sobre os presos.
Entre, esses documentos encontrei uma comunicação do director do Campo de Trabalho de Chão Bom para o Director provincial da DGS, em Angola, que leva a data de 14 de Agosto de 1970, em que expõe os bons métodos para “a recuperação social dos internados”.
A mãe de um dos presos o angolano Eduardo Santana Valentim, tinha conseguido finalmente fazer viagem de Angola para Portugal e daqui para Cabo Verde para visitar o filho condenado a 10 anos de internamento. Mas ao Sr. Director não parece bem que mãe visite filho e preocupa-se, isso sim, com a sois disant recuperação política, social e moral do preso que não estaria a obedecer aos seus persuasivos métodos.

Diz o Director do Campo para o director da DGS em Luanda que quase todos os elementos do grupo de 14 angolanos sob sua especial vigilância manifestam espírito orgulhoso e irreverente, “sobre que terá de exercer-se a nossa acção de esclarecimento e doutrinação, com os meios legais e humanos de que se dispõe;”
O director recomenda então: “O isolamento da família e o exercício de uma apertada censura (em que se inclui a interdição de noticiário e leitura de temas políticos, subversivos e sociais-reivindicativos)” e considera que “A visita da mãe de um deles – o mais responsável – nesta altura do cumprimento do internamento, é desaconselhável porque pode inutilizar parte do esforço dispendido na criação do ambiente destinado à sua possível recuperação para a sociedade”

Assim estávamos nesse ano de 1970 a quatro anos da revolução do 25 de Abril.

O colóquio que o Movimento Não Apaguem a Memória aqui hoje realiza foi planeado e organizado com a colaboração inestimável da Fundação Mário Soares que deu importante apoio logístico, da CPLP, da Amnistia Internacional, da Ordem dos Advogados, cuja participação muito agradecemos.
Esta iniciativa deve o seu êxito ao apoio do Senhor Presidente da AR, o Dr. Jaime Gama, do Senhor ministro da Justiça, Dr. Alberto Costa, do Senhor Ministro da Cultura, Dr. Pinto Ribeiro, do Sr Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação, Dr. João Cravinho e da Sra Governadora Civil de Lisboa, Drª. Dalila Araújo, apoio esse que agradecemos.

Este acto público pretende também fixar o dia de 29 de Outubro, data da inauguração do Campo Prisional do Tarrafal, como o dia da Memória dos Resistentes e das vítimas da ditadura. É uma proposta da iniciativa do ex-tarrafalista Edmundo Pedro que a 9 dias de fazer 90 anos é um dos mais entusiastas associados do nosso Movimento.

O Movimento Não Apaguem a Memória é um movimento jovem. Tem 3 anos e com o estatuto jurídico de associação apenas 6 meses. Nasceu em protesto contra a transformação da sede da PIDE num condomínio privado de luxo sem que o Estado português tivesse qualquer preocupação de preservar a memória do local.
O Movimento Cívico Não Apaguem a Memória tem como única razão de ser a preservação da memória da luta da resistência à ditadura e pela liberdade e que comporta, obviamente, a luta contra o colonialismo. Pretendemos que os principais símbolos da opressão e da luta contra ela sejam condigna e adequadamente preservados. Não somos fundamentalistas nem queremos transformar em solo sagrado todas as prisões políticas ou locais de luta do passado mas queremos que os Governos, centrais e autárquicos, as instituições do Estado português passem a ter uma política de preservação da memória que honre o país e a democracia e que seja uma componente da preservação da nossa identidade.
Fizemos no passado recente uma petição à AR com 6 mil assinaturas, que incluíam as de dois ex-presidentes da República, Mário Soares e Jorge Sampaio e de um prémio Nobel, José Saramago, que culminou com uma Resolução Parlamentar (nº 24/2008) aprovada aqui na casa da democracia com o voto favorável de todos os deputados, que leva o título

Divulgação às futuras gerações dos combates pela liberdade na resistência à ditadura e pela democracia

e que determina:

A Assembleia da República resolve, …, recomendar ao Governo que crie condições efectivas, incluindo financeiras, que tornem possível a concretização dos projectos das autarquias e da sociedade civil, nas suas variadas formas de organização, designadamente:

1) Apoio a programas de musealização, como a criação de um museu da liberdade e da resistência, cuja sede deve situar-se no centro histórico de Lisboa (antiga instalação da Cadeia do Aljube), enquanto pólo aglutinador que venha a configurar uma rede de núcleos museológicos, podendo aproveitar-se outros edifícios que sejam historicamente identificados como relevantes na resistência à ditadura a par da valorização e apoio ao Museu da Resistência instalado na Fortaleza de Peniche. O Museu da Liberdade e da Resistência deve constituir-se como importante centro dinamizador, em articulação com escolas e com universidades e outras instituições e organizações que já hoje desenvolvem relevante e valiosa actividade na recolha de documentação e outro material com valor museológico, da investigação e da divulgação da memória da resistência à ditadura;

A aprovação desta Resolução por todos os grupos parlamentares teve uma grande importância simbólica mas para que não se reduza a um símbolo, por mais valioso e estimável que seja, procuraremos que ainda no actual Orçamento de Estado, apesar do tsunami da crise actual, se comece a honrar o que os deputados unanimemente decidiram.

Colóquio Tarrafal - uma prisão dois continentes.

Intervenção do Ministro da Justiça, Dr. Alberto Costa

Colóquio Internacional “Tarrafal – uma prisão, dois Continentes”
Assembleia da República
Lisboa, 29 de Outubro de 2008

Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhores Deputados
Senhores Participantes

Este Colóquio sobre o Campo de Concentração do Tarrafal – que a
Assembleia da República hoje acolhe – não é um evento banal, não é mais
um colóquio sobre mais um tema. Reveste-se de especial significado para
a nossa memória e vida colectiva.
Por isso começo por prestar homenagem a todos os que o tornaram
possível e também à Assembleia da República e ao seu Presidente, Jaime
Gama, que em nome dos potugueses aqui o recebem.
Na construção do presente e do futuro dos homens, o passado e a
sua memória são guias que não podemos abandonar. É a memória que
nos põe alerta e é o esquecimento que nos deixa sem reflexos.
A memória do Tarrafal transporta-nos a um tempo em que
decisões políticas, administrativas ou pseudo-judiciais levavam ao
internamento, por tempo ilimitado, de milhares de opositores políticos e
sociais.
Uma secção especializada do aparelho prisional, concebida e
ordenada para fins de repressão política, estava preparada para dar
execução a essas decisões.
Além do Tarrafal, recorde-se Peniche, Aljube, Angra do Heroísmo,
Caxias, outras mais.
A poucos quilómetros da cidade onde estudei, nos anos sessenta,
na vila da Marinha Grande, existiam dezenas de operários vidreiros
opositores ao Estado Novo que tinham passado longos anos no campo de
concentração do Tarrafal e falavam dos tormentos, torturas e privações
que ai tinham sofrido e de mortes que tinham testemunhado. O avô de
um colega tinha morrido no Tarrafal. Esses relatos marcaram-me. Sei
ainda o nome de muitos desses tarrafalistas.
Foi com muita emoção que, no princípio dos anos noventa, integrei
como deputado, uma delegação da Assembleia da República que foi
homenagear, no Tarrafal, os que lá morreram e todos os que lá estiveram
internados vindos da Europa e da África.
A primeira fase da história do campo de concentração do Tarrafal
decorreu entre 1936 e 1954.
Custa a entender como, mesmo depois da derrota do nazismo, o
campo de concentração de Cabo Verde continuava a funcionar.
E custa ainda mais entender como professores de Direito altamente
conceituados, e ainda hoje citados, quando tiveram responsabilidades
neste domínio, aceitaram coexistir durante muitos anos com o recurso ao
campo de concentração e, obviamente, à pseudo-justiça dos tribunais
plenários.
Circunscrito pela distância e pela natureza hostil, o campo do
Tarrafal, segundo os relatos que ouvi de quem nele esteve internado,
constituía uma máquina planeada e calculadamente gerida, orientada
para a eliminação da vontade e da esperança dos seus internados, e,
algumas vezes, para a eliminação da própria vida.
Um campo de concentração – não em sentido figurado, mas em
sentido próprio.
É por isso que temos de dedicar esquecimento e desprezo aos que
se serviram desses campos e prisões ao serviço dos seus objectivos, e
prestar homenagem aos que enfrentaram e criaram as condições para
uma sociedade diferente, com garantias e direitos para cada homem, seja
qual for o seu continente.
O campo de concentração do Tarrafal teve um segundo fôlego: foi
reaberto durante a guerra colonial, a partir de 1961, e até à revolução de
1974.
Também então os que se ocupavam da justiça e da política
prisional acharam natural o regresso do campo de concentração, tantos
anos depois da derrota dos promotores históricos dos campos de
concentração.
Dos anti-fascistas aos anti-colonialistas, o campo continuava a
cumprir uma missão repressiva, para que se podia ser remetido por
decisões policiais, administrativas ou politicas – mas nunca
autenticamente judiciais, já que a instrumentalização politica das decisões
dos tribunais as qualificava, verdadeiramente, como pseudo-judiciais.
Quando reflectimos sobre a história da repressão politica em
Portugal no séc. XX, os tribunais plenários, na esfera judicial, e o campo
de concentração do Tarrafal, como forma extrema de encarceramento e
tendencial eliminação da vontade e da esperança dos seres humanos
internados, surgem-nos como as mais insidiosas realizações repressivas.
Esta memória é um património que devemos conservar.
Plenários e campos de concentração não conseguiram eliminar a
esperança, essa marca inigualável de luta pela humanidade. Foi essa luta
que prosseguiu e a democracia e independência que triunfaram.
Para, a partir de 1974, virem a ser construídas instituições
democráticas – uma institucionalidade sem lugar para prisões politicas,
campos de concentração e tribunais plenários, assente nos princípios do
Estado de Direito. Princípios que hoje queremos ver estendidos a toda a
humanidade, sem distinção de continentes.
Ao pensarmos nessa nova institucionalidade, ao usarmos essa nova
institucionalidade, julgamos muitas vezes que ela provem apenas dos que
elegeram e dos princípios que os eleitos decidiram acolher.
Perante aqueles que estão connosco e que estiveram no Tarrafal,
quero dizer que também a eles devemos algo que têm a ver com as nossas
instituições, as nossas esperanças e a nossa realização como humanidade.
A todos presto a minha homenagem. O Tarrafal não venceu. É o
vosso exemplo que continuará a marcar.

2008-09-20

Democracia e Deus

Artigo de Luís Campos e Cunha no Público de 2008-09-19:
“Os nossos líderes nacionais estão a enviar [os nossos filhos para o fraque] para uma tarefa que vem de Deus… é que há um plano e este plano é um plano deDeus.” Esta frase não é de Bin Laden. Um amigo chamou-me a atenção: está no New York Times, e foi proferida por Sarah Palin, candidata conservadora à vice-presidência dos Estados Unidos.
Para que fique claro: se não fosse português gostaria de ser americano, se não vivesse em Lisboa gostaria de estar em Nova Yorque. Não prefiro nem Londres, nem Paris, nem ser francês ou inglês. Não me move o menor sentimento anti-americano mas, tão-só, um sentimento anti-guerra no Iraque, uma repulsa por Guantânamo e, por consequência, um desprezo pelo presidente Bush filho. Penso que George W. Bush foi um presidente que deixou o Ocidente, e a democracia, num beco sem saída, à custa de centenas de milhares de vidas humanas e de princípios de liberdade e de civilização que todos defendemos e que pensávamos pacíficos e adquiridos por todos. Já o tinha dito mas vale a pena repetir.
Um dos problemas de implantação de um sistema democrático em qualquer país é que este tem de ser consequência de um desejo sincero do seu povo. Por isso, democracia no Iraque, ou em muitos países africanos, deixa sempre a sensação de um arremedo e de uma farsa, Quando a democracia é imposta por forças ou coacção externas nada parece. Nem será o mesmo.
Por outras palavras, o acto democrático de eleger um governo tem de partir de uma população cujo único compromisso seja para com a política. Se o compromisso é, antes de tudo, com o grupo étnico a que pertence, ou com o deus da religião que professa, então não pode haver votação politicamente válida nem governo verdadeiramente democrático. Se quem vota escolhe necessariamente o seu líder tribal ou o seu líder religioso, por oposição a outra etnia ou a outra religião, então não há liberdade na eleição. Se a fidelidade religiosa ou étnica se sobrepõe à escolha política, não há escolha democrática. Não está em causa que o religioso não tenha influência nos valores de cada cidadão e, como tal, tenha influência no voto. Outra coisa bem diversa é a opção religiosa ditar o sentido de voto sem que haja a possibilidade de uma escolha política do líder ou do partido em que votar.
Há exemplos vários deste desvio democrático. No Iraque, os xiitas votaram xiita, os curdos votaram nos líderes curdos e os sunitas nos seus líderes religiosos. As eleições não foram uma escolha política, mas apenas um senso estatístico de cariz étnico e religioso, nada mais.
Porque razão uma fidelidade acima da política põe em causa a democracia? A resposta é simples. Se há uma fidelidade religiosa que impõe uma única opção, então não há discussão política. Não há forma racional de convencer a senhora Sarah Palin de que a guerra do Iraque foi, pelo menos, um grave erro. A partir do momento em que ela considera a invasão do Iraque pelas tropas americanas como um plano de Deus, a discussão deixa de ser política e passa a ser uma discussão religiosa. Estar contra a invasão do Iraque é, para ela, estar contra o cristianismo: a discussão passa a ser entre a Bíblia e o Alcorão. Entramos, na melhor das hipóteses, numa discussão teológica; na pior, numa guerra religiosa, em que ninguém pode ter - razão, porque se deixou o domínio da discussão racional dos princípios para outra esfera.
Este mesmo raciocínio se aplica a Africa, onde a maioria das escolhas eleitorais são, antes demais, escolhas étnicas. O interessante é que Angola pode ser, em parte, uma excepção, por causa da guerra. As várias guerras civis fizeram deslocar populações inteiras causando urna mistura em volta das cidades que fez esbater as fronteiras étnicas. Pelo menos foi essa a percepção de quem seguiu o processo à distância. Os problemas das eleições angolanas, que os houve, foram de outra ordem, como sabemos.
Esta é também uma boa razão para não evoluirmos para um sistema uninominal nas eleições para a Assembleia da República. Corremos o risco, num sistema uninominal, de os cidadãos de Castelo Branco só votarem num albicastrense, o que implicaria uma fidelidade regional a sobrepor-se a uma opção partidária e até de escolha entre qualidades pessoais. Sei que há mais argumentos e este é, apenas, um perigo. Um dia falaremos do assunto, agora a minha questão é outra: opções de grupo que se sobrepõem a opções políticas e partidárias.
A posição de Sarah Palin vem no seguimento de outros políticos e de um reaccionarismo social (e político) impensável ainda há bem poucos anos. Já não bastava saber-se que a candidata só tem passaporte desde há um ano o que implica que não conhece o mundo mas travestir uma discussão da esfera política para a esfera do religioso é um precedente perigoso. Perigoso para o Ocidente e para a democracia, que não deve ser confundida com uma opção religiosa contra alguém. E que, numa discussão religiosa, há dificuldade em distinguir um fundamentalista islâmico de um fanático cristão, e nós, politicamente, nada temos a dizer sobre tais discussões. A
não ser que esta é mais uma boa razão para votar Barak Obama. Sem hesitações. Professor universitário.
Luís Campos e Cunha