2007-06-07

VISÃO - entrevista em 2007-06-06

Entrevista conduzida por Miguel Carvalho. Fotos de Luís Barra

Não diz Álvaro. Diz Cunhal. Nem sequer Álvaro Cunhal
Quem conhece o PCP, sabe que isso é a marca de um divórcio, a distância definitiva. Álvaro Cunhal e a dissidência da terceira via (edições Ambar) é a história de uma separação dolorosa, amarga, por vezes contada num tom azedo. Afinal, é o livro de um homem de 68 anos, com quase três décadas de PCP, ex-dirigente da ARA, a organização armada dos comunistas para minar o fascismo português. Afastado da política activa, militante do PS, gestor e consultor, avô babado, Raimundo Narciso ainda «puxa palavra» num blog com o mesmo nome. Puxemos agora pela conversa...
Porquê este livro após tantos anos e depois da morte de Álvaro Cunhal?
Publicá-lo em cima dos acontecimentos podia ser interpretado como vontade de intervir na vida do PC. Estava escrito há anos, apenas o retoquei. Foi mero acaso sair depois da morte do Cunhal. A decisão de publicar é anterior.


O que sentiu no dia em que ele morreu?
O funeral foi um acontecimento memorável, tendo em conta o que ele representa
para a história do PCP e do século XX. Mas não senti mais do que isso.
Descreve o PCP como um partido onde a iliteracia, o atraso cultural e a fé caracterizam os militantes. Quem lê, não acredita...
Era a realidade e hoje, creio, agravou-se. O PCP deve a sua imagem exterior favorável ao facto de parte da mais importante intelectualidade ter passado por lá. A maioria dos militantes é trabalhadora, operária, com poucos estudos. Não teve oportunidades nem frequentou grandes meios culturais. Daí o apego à fé, à crença e aos dogmas.
Como assistiu à segunda vaga de dissidência nos anos mais recentes?
Alguns, como o Carlos Brito, tinham posições distintas da direcção. Edgar Correia e Carlos Figueira foram surpresas. Houve quem nos deixasse de falar e, posteriormente, fizesse nova aproximação. Mas não faço juízos: cada um tem o seu momento.
Escreve que o MDP/CDE era o purgatório dos que, na prisão, não resistiam às torturas e não guardaram os segredos do partido...
Antes do 25 de Abril, era uma frente onde o PCP já tinha um papel determinante, apesar dos independentes. Depois, quem não resistiu às torturas, mas conservava os ideais era encaminhado para o MDP, para se redimir dos «pecados. Esta forma rigorosa de avaliar comportamentos foi transitória. Seria injusto dizer que o MDP foi só isso.Por ele passaram pessoas de elevada craveira como José Manuel Tengarrinha.
Onde começa e acaba a intenção de mudar o PCP e depois... mudar-se do PCP?
Antes de 1987, ano em que as coisas se precipitaram, já havia dúvidas e críticas. Mas sem questionar o essencial. No confronto com o centralismo democrático, a «terceira via» verificou que o sistema só era democrático para quem estava de acordo com a linha oficial. O PCP já era incapaz de dar resposta aos novos fenómenos da sociedade.
Só reparou nos males antes de sair?
Havia muitos traços negativos, mas a nossa fé no destino final radioso levava-nos a secundarizar e relativizar.
Insinua que Vítor Dias e Rúben de Carvalho também partilhavam algumas críticas, mas fugiam ao primeiro sinal de perigo...
Havia gente destacada com uma capacidade de análise importante. Esses dois, mas também Luís Sá, Domingos Lopes... Tinham idênticas preocupações a nível nacional e internacional. A dada altura, nós quisemos aprofundar a crítica e clarificar posições. Outros não, como Vítor Dias e Rúben.
Diz que hoje o PCP representa um comunismo de sociedade recreativa...
É uma ironia. Face a uma realidade tão diferente daquilo que o PCP imaginava, o partido tem doutrinas para um mundo que não existe.
Como é que o PCP ajudou o PRD?
Cunhal disse em público que havia um espaço político vazio entre o PS e o PCP Quando algumas pessoas se decidiram a criar o PRD, o PCP mostrou-se disposto a ajudar. Incentivaram-se alguns militantes e simpatizantes a dar apoio ao partido do general Eanes. Constava, na altura, que militantes menos conhecidos teriam ingressado no PRD. Mas o PRD não é uma criação do PCP.
E «Os Verdes», como nascem?
Foi criado por militantes de confiança capazes de guardar um segredo. É uma pequenina sucursal do PCP. Matou-se à nascença um partido ecologista que nunca fez o teste de ir a votos por sua conta e risco.
Como olha para a CGTP, hoje?
Mostra ter uma capacidade de reagir às questões de uma forma mais actualizada, sobretudo Carvalho da Silva. Mas é estritamente controlada pelo PCP.
Diz que o PCP é um partido com convicções fora de tempo, mas critica os partidos que não sabem para onde vão. Está a falar do PS?
No PS, as referências, os ideais e objectivos são menos visíveis. Por vezes, é bom, mas acaba por não se perceber se há mais objectivos do que os nossos interesses imediatos. Mas o PS tem grande liberdade interna.
No livro fala de espionagem dentro do PCP...
O PCP foi muito perseguido pela ditadura. Fazia sentido estar alerta nos primeiros tempos de democracia, hoje já não.
Mas descreve um ambiente quase pidesco...
Havia um espírito de autodefesa, persecutório e pidesco, sim. Aconteceu com Zita
Seabra e alguns de nós, da «terceira via». Até aí considerávamos legítimos os procedimentos, quase uma exigência. O PCP preocupou-se sempre com o comportamento moral dos seus quadros.
Casamentos e divórcios incluídos?
O partido não se metia no casa e descasa, mas com as infidelidades era diferente. Se fossem notadas, as pessoas eram chamadas, não só por causa de um certo código moral, mas também devido à necessidade de preservar a imagem exterior do partido. Mas esta relação com as pessoas era também fraternal. Ajudava camaradas a solucionar problemas económicos, sociais, psicológicos. Era parecido com a relação que temos com os filhos: se os abraçamos com muita força eles sentem necessidade de nos empurrar. Se não o fazemos, ficam carentes.
Como vê a escolha do seu amigo Pina Moura para administrador da Media Capital?
Os espanhóis não são parvos! Escolheram um bom gestor. As leituras que foram feitas sobre uma alegada tentativa de controlo da TVI através dele e do PS são paroquiais e provincianas. As Prisas, as Iberdrolas, as PT’s e as EDP’s são constituídas por capitais de todo o mundo, esses é que mandam. Já Marx tinha explicado que o capital internacional é igual em todo o lado...
Costuma citar Marx muitas vezes?
Nem agora nem antes. O marxismo faz tanto sentido hoje como a Geometria de Euclides. Amiúde reparei que os capitalistas utilizaram Marx melhor do que os comunistas.
Mário Lino, seu camarada da «terceira via», passa por um momento menos bom...
O momento difícil que atravessa deriva da forma como hoje se olha para a política. A Comunicação Social é cada vez mais um negócio que não quer saber das realidades profundas...
Até parece o PCP a falar!
Mário Lino foi infeliz na afirmação, mas é capaz e competente. Só não é um político profissional. Não tem artifícios.
Este é, por vezes, um livro azedo e amargo...
Não foi intencional. Mas alguns factos são tão contundentes, desagradáveis e desqualificadores que não há bonomia de escrita que possa disfarçá-los. Não é um ajuste de contas. Escrevi um livro sobre a minha entrada para o PCP e agora escrevi sobre a saída.
Concorda que o Governo está a contribuir para um clima de intimidação no País?
Isso é uma invenção. Mas o caso concreto do funcionário da DREN é grave. A directora regional só tinha de penalizar o bufo que lhe foi fazer queixinhas e admoestá-lo. Não podemos valorizar os bufos.