2007-08-21

Resposta a Vital Moreira (1)

O Público de Domingo (2007-08-19) publicou um artigo de opinião de José Manuel Correia Pinto* em que contesta posições políticas de Vital Moreira expressas - presume-se - principalmente nos seus artigos de opinião, no Público e outros órgãos de comunicação social.
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* JMCP - É alto funcionário do Ministério dos Negócios Estranjeiros, com carreira ligada principalmente à cooperação internacional, é jurista e docente universitário, amigo de Vital Moreira desde as lides e lutas académicas de Coimbra dos anos 60/70.
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Eis o artigo de Correia Pinto que teve entretanto resposta de Vital Moreira, primeiro no Causa Nossa e hoje, de forma mais desenvolvida, no Público (para o qual colocarei um link logo que esteja na Aba da Causa).
Eis o artigo de Correia Pinto saído no Público:

O PODER DISCRICIONÁRIO

(Resposta a Vital Moreira)

Constituiu motivo de preocupação o artigo que o VM escreveu no Público sobre os poderes da Administração, nomeadamente no exercício do poder discricionário bem como na prática dos chamados actos de governo. Tanto pelo que nele se diz, como, principalmente, pelo que nele se omite. Comecemos pelo poder discricionário. Não adianta recordar ao Vital que o poder discricionário constitui quase uma aberração, uma excrescência de tempos passados, num Estado de direito democrático moderno, devendo, por isso, o seu controlo pelos tribunais fazer-se até aos limites do juridicamente admissível.

É certo que o poder discricionário concedido pelo legislador à Administração ou a aplicação por esta de conceitos jurídicos indeterminados constantes de normas legais lhe conferem uma liberdade de actuação maior do que aquela que ela dispõe nos chamados casos de competência vinculada, que constituem a regra. Este espaço de liberdade para a acção ou para a decisão que caracteriza o poder discricionário não significa, porém, que a Administração possa actuar arbitrariamente. Sem respeito por regras nem por princípios, ao abrigo do livre arbítrio de quem decide. Esse modo de actuação não existe no moderno Estado de Direito. Mas no moderno Estado de direito também não existe um poder discricionário puro – o que há é um poder discricionário”conforme ao seu dever” ou “um poder discricionário juridicamente vinculado”. Ou seja, esta maior liberdade de actuação que a lei confere à Administração tem limites: desde logo, os impostos pelo conceito de Estado de direito e pela lei, nomeadamente a constitucional, bem como os decorrentes do fim em vista do qual o poder discricionário foi conferido.

A Administração está, em todos os casos, constitucionalmente obrigada a uma actuação regida pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade, assim como está igualmente obrigada a actuar com respeito pelo conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Tanto uns como outros constituem barreiras objectivas ao exercício do poder discricionário. Aliás, o respeito pelos direitos fundamentais e por outros princípios constitucionais pode mesmo reduzir a zero o poder discricionário, nomeadamente naqueles casos em que qualquer actuação que não a “devida”implique um uso indevido do poder discricionário.
Por outro lado, na jurisprudência e na doutrina dos Estados democráticos começa a ganhar cada vez mais relevo, dentre os limites do poder discricionário, o imposto pela configuração do caso concreto. Ou seja, a Administração está igualmente vinculada pela necessidade de encontrar a melhor solução para o caso concreto. Uma solução que atenda ao interesse público, mas que contemple também o interesse privado. O particular tem o direito de exigir um uso correcto do poder discricionário. E o uso correcto é o que atende equitativa e proporcionalmente aos interesses em presença. O facto de o poder discricionário conceptualmente se caracterizar por uma pluralidade de soluções suportadas pela lei não significa que todas elas sejam igual e indiferentemente adequadas para todos os casos. Significa que algumas delas são adequadas para certos casos e outras para outros casos compreendidos na lei. A discricionariedade ao nível da norma não significa necessariamente que ela exista com a mesma amplitude perante o caso concreto. Pode até acontecer que a configuração do caso concreto não apenas exclua certas soluções, como, além disso, imponha uma como única adequada. Dai que se torne legítimo por parte do tribunal a formulação de um juízo de razoabilidade que sirva, no caso em apreço, de padrão aferidor da justeza da decisão administrativa. O particular tem, no sentido exposto, direito a um uso correcto do poder discricionário – um uso que atenda equitativa e proporcionalmente aos interesses em presença.

Não, não adianta lembrar nada disto ao Vital. Ele conhece muito bem tudo isto e muito mais. Lamento é que o não tenha dito. Como não adianta falar-lhe nas mais grosseiras violações do exercício do poder discricionário caracterizadas pelo chamado desvio de poder que igualmente justificam a intervenção correctiva dos tribunais.

Passemos agora muito sumariamente aos actos de governo. Também aqui não vale a pena recordar que a invocação do móbil político da decisão administrativa deixou há muito de ser elemento determinante da caracterização do acto como acto de governo, logo insindicável. De facto, este entendimento muito lato da razão de Estado não pode hoje ser invocado como critério para afastar o controlo jurisdicional de tais actos. Em França já as coisas assim se passam desde que o Conseil d’État, no célebre acórdão de 19 de Fevereiro de 1875 (!), “Prince Napoléon”, deixou de considerar o móbil político invocado pela Administração como fundamento suficiente para afastar o controlo jurisdicional de tais actos.

Em suma, o que por outras palavras eu quero dizer é que as pressões tendentes a limitar a actuação dos tribunais não são bem-vindas, principalmente naqueles domínios onde o tal princípio da separação de poderes, que o VM tanto invoca, mais justifica uma actuação livre dos órgãos encarregados de velar pelo respeito da legalidade democrática. Esta defesa ilimitada dos actos da Administração não augura nada de bom. É dela que sempre partem as grandes agressões aos direitos dos cidadãos. Se os tribunais se inibem de os defender, pressionados por um clima doutrinal ou político hostil, a democracia representativa fica reduzida a uma caricatura. Este artigo do VM, em articulação com outros, nada felizes, sobre a liberdade dos jornalistas, a autonomia universitária, a cerceação da democracia participativa, dá uma visão distorcida e limitada do poder dos tribunais no controlo da legalidade democrática e pode ajudar a abrir a porta aos piores entendimentos ou aos maiores retrocessos nesta matéria. Por isso, é tempo de dizer basta! E de desejar que tudo não passe de um mal “passageiro”. Ligam-me ao Vital Moreira laços de amizade e camaradagem há mais de quatro décadas. O meu compromisso com a cidadania não me permitiu, porém, ficar calado…
José Manuel Correia Pinto.
(Jurista)