Universidade Popular Portuguesa:
passado e futuro
1. O passado
A instrução popular era assim caracterizada por Alexandre Herculano no século XIX: Entendemos por educação e instrução popular a cultivação do espírito, e não o ensino das artes fabris ou mecânicas, a que muita gente dá aquele nome. Negar o aperfeiçoamento intelectual aos homens, deixá-los na bruteza e na ignorância, é um acto imoral, um menoscabo de deveres sagrados, e, por consequência, um crime[4].
Nesta linha de instrução popular surgiram várias agremiações de que é justo destacar a Voz do Operário, nascida em Lisboa em 1883 e a Academia de Estudos Livres, também em Lisboa, em 1889.
Com a instauração da República e o seu programa de enaltecimento da cidadania viriam logo a surgir inúmeras iniciativas imbuídas do mesmo espírito generoso, algumas delas reivindicando para si uma ideia de Universidade. Foi o caso da Universidade Livre, criada em 1911 graças sobretudo a Alexandre Ferreira (1887 1950) (pro
ssional de seguros e pai do poeta José Gomes Ferreira)[3].
No âmbito das actividades da Universidade Livre, foram proferidas semanalmente
muitas palestras, logo publicadas, contando com colaborações diversi
cadas: Agostinho Fortes, Ruy Telles Palhinha, Almeida Lima, António dos Reis Silva Barbosa,
Balthazar Ozorio, Arthur Ricardo Jorge, etc.; eis alguns títulos: O Homem antes da civilisação, O Homem como ser animal, O que é e para que serve a Physica,
O objecto da Biologia, Prólogo à Zoologia, Introdução ao estudo das Plantas, etc. Cabe perguntar se hoje em dia, com todas as facilidades de edição do começo do século XXI seria possível uma tal realização.
Um pouco mais tarde aparece a Universidade Popular do Porto (julgo que em
1918), sob o patrocínio da Renascença Portuguesa e em 1919 foi fundada em Lisboa a
Universidade Popular Portuguesa (UPP), por iniciativa de António Augusto Ferreira
de Macedo (1887 1959)[7], seguida ainda pela Universidade Popular de Setúbal,
onde Bento de Jesus Caraça (1901 48) viria a fazer uma uma palestra em 1931,
intitulada As Universidades Populares e a Cultura[2].
Na Padaria do Povo, em Campo de Ourique, teve a UPP a sua sessão
inaugural com a presença do Chefe do Estado e do Ministro da Instrução, cabendo
a leitura do discurso de abertura a Pedro José da Cunha, reitor da Universidade de
Lisboa[8], o que por si só aquilata quer do prestígio que inspiravam os colaboradores
da UPP, quer da qualidade das pessoas à frente daquelas três instituições. Na UPP
viriam a colaborar, palestrando, alguns dos maiores nomes da cultura portuguesa
da época; para só citar alguns: António Sérgio, Jaime Cortesão, Rodrigues Lapa,
Raul Proença, Mira Fernandes, Faria de Vasconcelos, Agostinho da Silva, Vieira de
Almeida, Cirilo Soares, Moisés Amzalak, Leite de Vasconcelos, Mendes Correia, Virgí-
nia de Castro Almeida, Aurélio Quintanilha, Azeredo Perdigão e dezenas de outros;
Bento de Jesus Caraça destinaria à Universidade Popular Portuguesa, em 1933, a sua
mais famosa conferência: A Cultura Integral do Indivíduo.
Constituiu a UPP um lugar de tolerância e construtiva controvérsia como convém
naturalmente a uma Universidade e a essas características não será alheio o facto de
contar no seu Conselho Administrativo um variado e equilibrado espectro de personal-
idades professores, operários, tipógrafos entre elas o então jovem Bento de Jesus
Caraça, cuja amizade com Ferreira de Macedo se
tornaria então defi
nitiva. Foi porém a partir de 1928 que Bento de Jesus Caraça daria novo vigor à UPP, fixando na já referida palestra feita em Setúbal as balizas da Universidade Popular Portuguesa:
O seu ensino não deve cristalizar em certas fórmulas, se isso acontecer, tornar-se-ão obstáculos ao progresso. Devem constituir, por assim dizer, a vanguarda do ensino e a sua acção, sem contrariar a da Escola, deve ser complemento dela.
A sua utilidade e justi
cação da sua existência está nas possibilidades de
libertação espiritual que der às massas trabalhadoras.
Às organizações sindicais cabe um papel enorme nesse trabalho de liber-
tação, promovendo intensamente a cultura dos seus membros.
A emancipação futura da humanidade será o resultado da união de todos
os esforços individuais e colectivos orientados pelos mesmos ideais.
Naturalmente que a questão da de
nição dos objectivos e características de uma
Universidade Popular foi na época assunto de inúmeros debates ou não fosse a edu-
cação do povo uma dessas ideias que constantemente são so
smadas e atraiçoadas
como bem disse Ferreira de Macedo numa das muitas conferências que dedicou ao as-
sunto, de que destacamos duas: uma, sobre a A Educação Moral dos Trabalhadores[5],
em que se historiavam as Universidades Populares, seria proferida na Universidade
Livre, animada pelo seu amigo Alexandre Ferreira; outra, donde retirámos aquela
citação, intitulada A Educação do Povo[6] não viria a ser proferida na Sociedade
Voz do Operário, em 1945, adivinhe o leitor porquê...
O texto desta última palestra, condimentado pelo tempo, é elucidativo do ideal de
Ferreira de Macedo:
Tudo se pode resumir no seguinte: temos que forjar uma nova humanidade,
e o novo homem, o homem de amanhã, não será apenas o animal humano,
belo e são, a quem uma nova orgânica social assegurará uma vida mate-
rial segura e desafogada, livre
nalmente de toda a opressão económica e
política; será também será sobretudo um ser moral e social que tem
a consciência do que é, e do que signi
ca na vida universal (tanto quanto
o permita o estado da Ciência e da Filoso
a) um ser com entusiasmo e fé
no progresso da comunidade, e a vontade e a capacidade de lutar por esse
progresso. Eis aqui, sinteticamente expresso, o meu ideal de educação do
povo.
Na sociedade em que vivemos, dominada pelo dinheiro, parece-nos pelo menos
idílica esta visão, mas por aí mesmo aferiremos a imensidão do que nos falta fazer;
por outro lado e infelizmente soam-nos actualíssimas estas palavras ainda cheias de
futuro:
[...]todo o ensino o
cial no nosso país está viciado, de alto a baixo. Falta-
lhe um ideal, falta-lhe um ambiente, falta-lhe uma organização cientí
ca
e harmónica com as necessidades actuais. Mas não é desse ensino que
tenho de tratar aqui. O que desejo frisar é que o ensino do povo, como eu
o concebo, será inteiramente e profundamente diferente do actual ensino
o
cial[...]
Naturalmente que para levar avante o seu projecto reivindica Ferreira de Macedo:
Os melhores instrumentos pedagógicos têm de ser utilizados, os melhores
métodos, os mais perfeitos programas!
A.A. Ferreira de Macedo
Não reste dúvida de que se quisermos fazer reviver a Universidade Popular Por-
tuguesa certamente a melhor homenagem que poderíamos prestar a Ferreira de
Macedo e a Caraça muito temos a aproveitar com as reexões, empapadas de
prática, destes dois matemáticos. Ao deparar com a sua lucidez límpida e simples
ocorrem-nos as palavras de mais um matemático, tão perseguido quanto os outros
dois; referimo-nos a António Lobo Vilela:
De ora em quando, no meio deste marasmo desolador, ouvem-se rumores
abafados de vozes vibrantes que mal encontram eco, como se fossem pro-
feridas no fundo de uma cisterna, ou gritadas num deserto imenso. Es-
sas vozes traduzem o pouco que entre nós ainda sobrevive de sinceridade
e de independência moral, mas as condições acústicas do ambiente são
tão más que elas se perdem como se fossem simples lamentos de almas
impotentes[9].
2. O futuro
A Universidade tal qual existe hoje na maioria dos países democráticos corresponde
nalguns aspectos ao ideal de Universidade Popular; a massi
cação do ensino nesses
países ao longo do século XX abriu as portas da Universidade a todas as classes e a
Universidade deixou de ser aí em grande medida uma reserva das élites económicas,
élites estas que continuam porém a ter o controlo dos meios decisivos de inuenciar a
sociedade: o ensino e a informação. E que tipo de ensino e de informação é oferecido?
O que conduz à formação integral do indivíduo? Não!! e é exactamente por isso que
a ideia da Universidade Popular é hoje ainda, infelizmente, de grande actualidade.
O ensino, hoje, em toda a Europa, visa sobretudo e cada vez mais o fabrico
de eleitores, consumidores e contribuintes relegando para segundo plano a riqueza
individual de cada um e cerceando as formas efectivas de participação colectiva. Só
o pensamento e a acção livres, num concerto de diversidade de opinião e de prática
solidária, a
rma a dignidade humana. Nós, eleitores, consumidores e contribuintes
somos ainda pessoas que recusam um rótulo único, que sentem a complexidade das
coisas, oposta às interpretações simplistas dos meios de informação, que têm imensas
dúvidas, que adoram a controvérsia, que descon
am dos consensos da mediocridade,
que suspeitam dos choques de civilizações; queremos enriquecer-nos com a diversidade
e não queremos empobrecer-nos na uniformidade. Queremos conhecer mas queremos
sobretudo compreender.
A Universidade Popular há-de opor-se aos aspectos negativos da massi
cação,
há-de aceitar a dúvida, há-de promover a controvérsia, há-de dar-nos os meios para
compreender o diferente, há-de fazer-nos dizer alto que de nada vale teimar em com-
preender o desconhecido se há quem se aproveite do conhecimento cientí
co para, à
solidariedade, privilegiar a guerra.
As universidades, hoje, em toda a Europa, são sobretudo escolas de formação
pro
ssional, donde se pretende que saiam rebanhos de jovens abúlicos sem a cons-
ciência do seu decisivo poder e obedientemente tomando o seu assento como os leões
no espectáculo do circo; a contenção forçada da nossa juventude nos quadros estreitos
de uma participação
ctícia onde o pensamento crítico inexiste só pode conduzir
a explosões selvagens quer no anonimato do hooliganismo, quer no anonimato dos
que no silêncio da socapa caucionam as guerras em que sem dar por isso nos vemos
envolvidos.
A Universidade Popular há-de ser um local onde se adquira a consciência do esforço
que ao longo de milénios sempre foi necessário para ter uma ideia nova, nesse esforço
persistente consistindo o essencial do espírito cientí
co; há-de ser um local onde se
entenda claramente que os erros são necessários para lograr algum acerto e que a
ideologia do sucesso é uma fraude publicitária.
As universidades europeias, que na origem eram corporações de mestres e alunos,
veiculando na raiz universitas a ideia de unidade do diverso, de enriquecimento mútuo,
tinham a sua criatividade assente na necessidade de acarinhar a crise permanente,
prevenindo a violência de crises maiores; só podiam pois essas universidades combater
a especialização prematura criando nos alunos, isso sim, a autonomia necessária para a
adquirir mais tarde e da forma mais conveniente. A Universidade Popular não terá por
objectivo formar especialistas mas há-de dar ocasião aos especialistas para resgatar
para si toda a dignidade de pessoas a que têm direito. A Universidade Popular há-
de ser um lugar de libertação para as potencialidades de cada um, e um lugar de
reabilitação da dignidade individual e colectiva. A Universidade Popular há-de ser
um grito de Liberdade!
A Universidade Popular chamará a si cada um de nós, sem rejeitar qualquer parcela
de saber ou de experiência, sendo por demais claro não terem aceite, muitas vezes,
um lugar no terreiro da massi
cação medíocre, aqueles que são porventura os nossos
melhores, rejeitados por uma sociedade que os não conseguiu formatar. Os reforma-
dos, e os desempregados, benvindos à Universidade Popular, serão uma minoria no
meio da multidão de desenganados que lhe dará vigor e de que todos precisamos. A
Universidade Popular libertará em muitos o que há de melhor em si e pretende levar
esse somatório de iniciativas individuais ao despertar da alma colectiva das massas,
como preconizava Bento de Jesus Caraça.[1]
A CGTP-IN, em cerimónia comemorativa do centenário do nascimento de Bento de
Jesus Caraça, anunciou publicamente, pela voz do Secretário-Geral Manuel Carvalho
da Silva, e na presença do Presidente da República, Jorge Sampaio, o seu empenho
determinado em levar por diante o projecto da Universidade Popular Portuguesa para
o que seria prudente convocar um amplo espectro de colaboradores e de agremiações;
pensamos por exemplo na Sociedade da Língua Portuguesa, cuja biblioteca de mais de
50.000 volumes bem poderia constituir um elemento precioso no projecto. Foi então
dito que o papel dos sindicatos, neste conturbado contexto histórico, é difícil mas
ainda mais necessário. Aos sindicatos cabe contribuir para promover a cultura dos
seus membros. Estamos por isso certos do apoio da grande massa dos trabalhadores
à futura Universidade Popular Portuguesa como estamos certos da presença do Presi-
dente da República, na futura sessão inaugural em que poderá repetir as palavras
que proferiu, na cerimónia do centenário do nascimento, referindo-se a Bento de Jesus
Caraça : Uma parte do futuro a que apontava é o nosso presente.
Referências
[1] Bento de Jesus Caraça. A Cultura Integral do Indivíduo, problema central do
nosso tempo. Cadernos de Cultura Vanguardista, No. 1. Edições Mocidade Livre,
Lisboa, 1933.
[2] Bento de Jesus Caraça. Conferências e Outros Escritos. s. ed., Lisboa, 1978 (2a.
ed.).
[3] Ferreira Deusdado. Educadores Portugueses. Clássicos da Cultura Portuguesa.
Lello & Irmão-Editores, Porto, 1995.
[4] Alberto Ferreira. Estudos de Cultura Portuguesa (Séc. XIX). Margens do texto,15.
Moraes Editores, Lisboa, 1980.
[5] A. A. Ferreira de Macedo. A Educação Moral dos Trabalhadores. Universidade
Livre, 1923.
[6] A. A. Ferreira de Macedo. A Educação do Povo. Seara Nova, 1945.
[7] Armando Myre Dores. O papel da Universidade Popular Portuguesa ao serviço
da cultura do povo. O Erro, (1), 2001.
[8] António Ventura. No centenário de António Augusto Ferreira de Macedo. Rev.
da Bibl. Nac., (2 (1)), 1987.
[9] A. Lôbo Vilela. A Crise da Universidade,. Renovação Democrática, Cadernos de
Cultura Democratista, Figueira da Foz, 1933.
Lisboa, 2 de Novembro de 2001 Paulo Almeida
Sem comentários:
Enviar um comentário