Intervenção de Helena Neves
na Iniciativa do Movimento Não Apaguem a Memória - NAM em parceria com campOvivo, em 5 de Janeiro de 2015, na Padaria do Povo, onde funcionou a Universidade Popular entre 1919 e 1948
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Há cem anos, nasceu uma criança do sexo masculino que, diriam mais tarde as velhas mulheres, parecia fadada por uma estrela. Estrela, sem dúvida, contraditória. Porque, se cedo se evidenciou que a sua sorte seria diversa daquela a que a origem social o destinava, e a sua vida se afirmou, desde a infância, como conquista de espaços cada vez mais amplos, o seu tempo seria breve. Ao morrer, 47 anos depois, o adulto que foi esse menino diria, segundo testemunho do sobrinho, «tão pouco tempo...» Tempo breve mas intenso. Marcando a sua época. E a nossa ainda.
Falamos de Bento de Jesus Caraça, filho de
trabalhadores rurais, nascido a 18 de Abril de 1901, em Vila Viçosa.
A morte tocou-lhe à
nascença. Conta a irmã, mais nova, Filomena Caraça, que a mãe, aflita, vendo o
menino a finar-se, correu à igreja a baptizá-lo, sem pensar sequer que nome
pôr-lhe. Acudiu-lhe o padre, sugerindo Bento de Jesus. Mais tarde, Bento Caraça
ironizará em resposta a uma crítica ao seu trabalho em O Diabo, jornal
da frente intelectual mais radicalmente oposicionista e plataforma do movimento
neo-realista. «Um articulista de Beja descobriu numa hora de ócio que há uma
quase contradição entre o meu nome tão católico (sic) e o meu ingresso nas
hostes diabólicas (re-sic). Que quer amigo? Fui baptizado à pressa e com um
escasso mês de idade. Razões por que se julgaram dispensados de me
consultar...»
Levado aos dois meses,
pelos pais, para a Aldeia de Montoito, no Redondo, onde o pai é feitor da
Herdade da Casa Branca, dá aí os primeiros passos e conhece, com pouco mais de
4 anos, as primeiras letras ensinadas por um trabalhador errante, desses que
sazonalmente chegavam ao Alentejo, este trazendo, no pouco de seu, uma cartilha escolar. Impressionada com a inteligência do
menino, a senhora da herdade, D. Jerónima, torna-se «sua protectora»: assim
assinará as cartas e postais que lhe escreve, até morrer, para os diferentes
lugares para onde o envia a aprender a ser diferente: um homem culto.
É neste percurso protegido que Bento Caraça
passa pelo Liceu Sá da Bandeira, em Santarém, e, em 1915, se encontra no Liceu
Pedro Nunes, em Lisboa, espaço de descoberta de amigos, como Luís Dias Amado,
tornado quase irmão, e Carlos Botelho, pintor da cidade e dos seus entardeceres;
espaço de encontro com o amor através de Maria Octávia, filha do professor de
matemática, Adolfo Sena; e limiar de um combate em que política e cultura
constituem uma mesma matriz..
Em 1918, Bento Caraça
termina com distinção o curso liceal e entra no Instituto Superior do Comércio,
designação ao tempo do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras,
actualmente Instituto Superior de Economia e Gestão. Em Fevereiro de 1919, no
segundo ano do curso de Economia, escreverá numa folha de papel que encontramos
no seu espólio: «hei-de ser o primeiro aluno do meu curso».
Sê-lo-á. Nesse mesmo ano, o professor Mira Fernandes, insigne matemático,
recomenda a sua nomeação como 2º assistente temporário do Instituto para as
cadeiras de Álgebra Superior e Geometria Analítica, 1º grupo. . Licencia-se em
Outubro de 1923 com «bom com distinção», em 1924 passa a 1º assistente, em 1926
entra para a Comissão de Redacção da Revista de Economia, em 1927 é nomeado
professor extraordinário e em 1929 é professor catedrático. A sua carreira
revela-se fulgurante.
Com ele e através dele, a
matemática torna-se um universo diferente, fascinante. Quer pelo seu estilo
pedagógico, quer pela paixão que imprime e comunica na divulgação da
matemática. Sucede algo de inusitado no Instituto. Alunos de outras turmas, de
outras faculdades, de outro âmbito escolar, até de ciências humanas, afluem às
suas aulas. As aulas inaugurais de início do ano escolar tornam-se um
acontecimento cultural, um ritual de passagem. Este professor que transforma o
olhar sobre uma matéria até considerada inóspita, este homem que vê no rosto
dos alunos o estado de ânimo e os interpela pessoalmente, os consola e
aconselha, este homem irónico e meigo, é, porém, extremamente rigoroso,
exigente. Os alunos parodiam as iniciais do Instituto Superior de Ciências
Económicas e Financeiras: «Isto sem o Caraça era fácil».
Como estudioso e
divulgador, Bento Caraça introduz uma ruptura fundamental. Na sua obra, atrás
do número, das figuras geométricas, das equações, é todo o tempo humano que
pulsa, a respiração do social, as contradições de classes, a ansiedade e a luta
dos homens fazendo-se no acto de fazer a história e as ciências. Praxis
social e matemática cruzam-se dialecticamente. A renovação pedagógica e
epistemológica do livro Os Conceitos Fundamentais da Matemática, editado
em 1941, ofusca outras obras de Bento Caraça no mesmo domínio. É o caso de Lições
de Álgebra e Análise, cuja publicação, em 1935, marca, segundo o
professor Sebastião e Silva, «uma presença na história do ensino da
matemática em Portugal». Este paradigma novo, que recupera a historicidade
da produção científica, transparece no domínio da econometria que Bento Caraça
introduz na investigação académica. Em consequência, cria, em 1938, com Mira
Fernandes e Caetano Beirão da Veiga, o Centro de Estudos Matemáticos aplicados
à Economia. Impulsionará, também, o Movimento Matemático que, entre 1937 e
1947, congregará matemáticos, físicos e químicos, numa linha de investigação
inovadora, criativa, em consonância com a investigação internacional. Caraça
encontra-se também entre os primeiros académicos que constituem, em 1940, a
Sociedade Portuguesa de Matemática, cuja comissão Pedagógica dirige. Na
Sociedade encontra-se entre os fundadores da Gazeta da Matemática, e
participa nos congressos da associação Luso espanhola para o Progresso das
Ciências, em 1941, no Porto, e, em 1944, em Cordoba.
Se na matemática Bento de
Jesus Caraça opera um corte epistemológico transversal a todo o domínio
científico, no plano cultural constituirá, como salienta Eduardo Lourenço, uma
referência constante na sua própria geração e na que se lhe sucede. Quando
dizemos «obra», significamos não apenas a vasta produção teórica, mas as práticas
que protagoniza e incentiva. O que se trata é de praxis revolucionária,
uma praxis em que combate cultural e político coincidem, no puro sentido
do jovem Marx, filosofia, cultura, comprometidas na mudança do mundo.
Para o grupo social dos
intelectuais de esquerda, dos anos trinta e quarenta, num leque vasto que vai
de republicanos, mais ou menos radicais, seareiros, a marxistas, as armas da
crítica têm um alvo político directo, a ditadura salazarista. Se divergem
ideologicamente e se opõem, frequentemente, na concepção táctica e estratégica,
o seu alvo é o mesmo: o derrube do auto-designado «Estado Novo». Toda a
inteligência oposicionista esgrime contra a situação de miséria social e
cultural, para cuja mudança a cultura é tão mais fundamental quanto o
salazarismo investiu ideologicamente no obscurantismo, nomeadamente por via da
«Escola, oficina de almas», e, de forma mais refinada, da «Política do
Espirito» que, sob o impulso inteligente de António Ferro, mobilizou mesmo
alguns intelectuais não fascistas.
É pois num contexto de
condicionamento cultural, fortemente repressivo, agindo nas consciências e nos
actos pela censura e pela interdição das liberdades de reunião e de associação,
que Bento de Jesus Caraça sobressai num grupo de outros importantes
combatentes. A sua concepção de cultura «como despertar das almas», de «aquisição
da cultura» como significando «a conquista da liberdade» afirma-se
na série de conferências e escritos (mesmo os matemáticos), nos artigos que
publica no Globo, jornal efémero que, a 11 de Novembro de 1933, funda
e dirige com José Rodrigues Miguéis, no Liberdade,
em O Diabo , na Seara Nova
e noutros órgãos de intervenção. Mas não somente. Toda a sua vida
quotidiana é de empenho cultural e político. Na Universidade Popular Portuguesa,
cujos corpos gerentes integra, desde a fundação em 1919, e a que preside, desde
1928 até à morte, Bento Caraça imprime um debate de ideias, uma perspectiva de
cultura como impulso para a mudança, que tornam este espaço uma vanguarda de
divulgação literária, artística e científica, cuja dimensão, em termos
nacionais mas também internacionais, está ainda por ser devidamente estudada.
. No mesmo sentido, funda
a Biblioteca Cosmos, com Manuel Rodrigues de Oliveira, que dirige desde 1941
até à morte. Uma Biblioteca que pretende ser, como escreve ao apresentar a
colecção, «uma pequena pedra» para «toda uma vida nova a construir
dominada por um humanismo novo». Em torno deste programa, Bento Caraça
congrega intelectuais num espectro muito amplo de pertenças e referências do
pensamento da época, muitos deles já colaboradores da Universidade Popular. O
projecto gráfico é do amigo Carlos Botelho. Considerada já a primeira
enciclopédia portuguesa, anterior à colecção francesa «Que
sais-je?», a Biblioteca Cosmos, produção de
transdisciplinaridade, no sentido conceptual contemporâneo, contará com a
colaboração, entre outros, de Adolfo Casais Monteiro, Adriano Gusmão, António
Sérgio, António da Silveira, Diogo de Macedo, escultor, José Gomes Ferreira,
Luís Navarro Soeiro, Manuel Peres, Mário Dionísio, Mário Neves, Orlando
Ribeiro, Paulo Quintela, Ruy Luís Gomes, Vitorino Magalhães Godinho. Publicam
aqui os primeiros livros, Rómulo de Carvalho, Agostinho da Silva, Irene Lisboa,
Luís de Freitas Branco, Fernando Lopes Graça, Manuel Mendes, Maria Silva,
Alberto Candeias, Flausino Torres, Eugénio Conceição Silva, Ramiro da Fonseca.
Até 1948, ano da morte de Caraça, a Cosmos publica 145 volumes, correspondendo
a 114 títulos, com uma tiragem global de 793 500 exemplares.
Mesmo quando a
intervenção de Bento Caraça se assume numa vertente mais situada politicamente,
é ainda e sempre o «despertar das almas» que o move. Porque, como
acentua em diversas fórmulas, as revoluções pressupõem uma consciência
necessária à sua sustentabilidade.
Destacando-se no empenho pelo frentismo político, Bento
Caraça funda a Liga contra a Guerra e o Fascismo, é um activista no apoio aos
presos nos campos de concentração nazis e aos refugiados, colabora na Frente
Popular, surge como um dos mais estacados
fundadores do MUNAF, Movimento de Unidade Nacional Antifascista, em 1942, e do
MUD, Movimento de Unidade Democrática, em 1945, de cuja comissão central será
vice-presidente. Por este envolvimento, no qual produz importantes documentos
de análise política, será preso várias vezes e demitido das funções de docência
a 8 de Outubro de 1946, sob a acusação de ter assinado um documento contra a
admissão de Portugal na NATO, tal como o professor Mário de Azevedo Gomes, co-autor
do documento e presidente da comissão central do MUD.
É já então casado com a
segunda mulher, Cândida Gaspar, a aluna que o levou a abandonar a longa viuvez
do breve casamento com Maria Octávia, que durara menos de um ano. Com Cândida,
que lhe devolve a paixão e a ternura, será também breve a vida. Ele sabe-o. A
doença cardíaca, já de longa data, agravava-se. Por isso o olhar de profunda
ternura com que segue os primeiros passos vacilantes de João, o seu filho, é um
olhar pleno de nostalgia. Nostalgia do futuro. E nas últimas fotografias antes
da morte, a 25 de Julho de 1948, Bento Caraça devolve-nos o sorriso magoado dos
que sabem que vão morrer.
Deixará uma obra
invulgar. E uma invulgar saudade. Porque muitos foram os que o amaram nesse
tempo de cruzamento de cumplicidades, de militâncias e de amizades. E mais
ainda os que o admiraram.
No seu enterro, a 27 de
Julho de 1948, uma impressionante multidão, num impressionante silêncio, vai
pelas ruas de Lisboa, de Campo de Ourique ao Cemitério dos Prazeres. Agentes da
polícia política enquadram a multidão, infiltram-se nela à espera da quebra do
silêncio que não sucede, e, intimidatoriamente, filmam todo o funeral, nas ruas
e no cemitério. Um cortejo simbólico, uma quase coreografia, imaginada pelo
amigo Fernando Piteira Santos, as jovens e os jovens, em bloco, as mãos densas de flores. Afirmando
a continuidade na ilusão do mundo que Bento Caraça procurou no seu empenho
cultural e político.
Como ele escrevera em
1939, na Seara Nova, «as ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que
há de melhor na vida dos homens e dos povos. (...) Benditas as ilusões, a
adesão firme e total a qualquer coisa de grande, que nos ultrapassa e nos
requer. Sem ilusão nada de sublime teria sido realizado, nem a Catedral de
Estrasburgo, nem as sinfonias de Beethoven. Nem a obra imortal de
Galileu.»
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