2017-11-11

VICHNIKI - continuação de post em A FOTO


Continuação do "post" do blog A FOTO: http://afoto1963.blogspot.pt/

[As imagens são da Universidade de Moscovo, 1ª e 2ª, parte nova da cidade, uma estação do Metro e a última do Teatro Bolshoi ]

Com o inverno, veio a neve. Estávamos numa aula de Russo com a nossa jovem professora e especial amiga, Rosa, quando   grandes flocos de algodão começaram a cair intensamente do céu, em frente das janelas da sala de aula. Parecia uma cortina branca que esfarrapada caía, infinita, do céu. Era a neve no seu máximo esplendor. Para nós um espectáculo verdadeiramente surpreendente. Os berlinenses continuaram imperturbáveis mas nós, meridionais de climas tépidos, ficámos paralisados de espanto. Olhávamos, boquiabertos, para as janelas, alheados da professora Rosa e do seu Russo. Quase se melindrou com o nosso súbito e incompreensível desinteresse antes de se aperceber do que se tratava. Interrompeu então a aula para admirarmos aquele espectáculo nunca visto.


Com a neve a cobrir tudo de branco,  portugueses, africanos, latino-americanos  iniciámos a nossa aprendizagem de esqui caindo e rebolando na neve. A maior parte dos passeios de esqui e brincadeiras na neve fazia-as com a Leonor, mais dada ao desporto e mais namoradeira. Acho que foi aqui que o nosso futuro casamento começou. Da neve, da paisagem ou das quedas que nos obrigavam a abraçarmo-nos mais longamente para nos ampararmos melhor surgiu um até aí insuspeitado fulgor nas nossas relações “partidárias”.  Passei depois a estudar com ela, frequentemente, no meu quarto, sem a presença da Ana, apesar da sua reprovação.                           
Próximo do fim do curso decidimos casar, em Portugal, na clandestinidade, sem padre nem registo civil, o que veio a suceder uns meses depois, em Março de 1968. Veio a um encontro comigo na Rua da Cruz Vermelha em frente da antiga Feira Popular, em Lisboa e daí seguimos para o apartamento que eu alugara para o efeito, no Bairro da Beneficência e onde Ângelo Veloso, meu controleiro nesse período, veio participar na boda com leitão e uma garrafa de champanhe e desejar-nos felicidades e muitos meninos.

Surgiam todos os anos, na Escola, paixões arrebatadas entre jovens de países diferentes. Por  vezes entre comunistas em tempo de paz e comunistas em teatro de guerra, como sucedeu com o Giovanni, italiano que se apaixonou pela Marcela, guatemalteca e guerrilheira. Giovanni não quis, nem o deixariam, com o seu aspecto de italiano sofisticado, ir combater a tirania nas florestas semitropicais da América Central e Marcela que tinha um compromisso com o seu povo em luta não queria mudar-se para Roma. Giovanni era alto, forte e moreno. Desgrenhado. Sarcástico com os aspectos negativos que encontrava na sociedade soviética e sempre a dizer que na Itália era tudo mais bonito. Generoso e amigo de todos. Cantava ópera, claro. 
Marcela era em tudo diferente. Não se pode dizer que fosse muito bonita mas era tão grácil, tão serena e tão segura do seu amor à sua Guatemala que era quase comovente ouvi-la falar da sua terra e da luta do seu povo. Tinha os cabelos muito pretos e uns olhos muito vivos. O seu aspecto físico era frágil mas tão determinada nas suas convicções que o Giovanni não resistiu. 

A separação no fim do curso foi dramática. Quanto o autocarro com os guatemaltecos, peruanos e colombianos, se despedia da Escola e arrancava lentamente com Marcela amparada pelos seus companheiros de "Latinoamérica",  os choros e os gritos eram de cortar a alma e estremeciam os gigantescos abetos, até aí imperturbáveis, que rodeavam o jardim.

Mas a vida é assim. Grandes alegrias,  grandes desgostos.  Poucos dias depois de pisarem a terra natal, talvez detectados no regresso à luta, três dos nossos companheiros, duas raparigas e um rapaz, foram metralhados na cidade de Guatemala. Ainda tivemos tempo de o saber e chorar a sua morte em Vichniki. Mas a informação não indicava os pseudónimos, que era o que deles conhecíamos, e não os soubemos identificar. Assim, sem identificação, para nós era como se todos tivessem sido mortos. 
O Giovanni, com os outros italianos, já tinha partido, mas pensámos no que seria a sua dor se tivesse sabido de tão triste nova. Certamente jamais soube o que sucedeu a Marcela.

No posto médico que nos examinava à chegada, informavam os alunos que não faziam abortos às mulheres originárias de países onde ele era proibido. E era o caso de Portugal. A pílula ou não havia ou não era de fácil obtenção na altura. Por isso, um dia, eu e a Leonor, depois de fugirmos à Ana, entrámos numa farmácia que os locais, ignorantes da língua de Camões, designavam sem elegância, por Apoteca, para comprar uns cúmplices preservativos. Estávamos especados no meio da farmácia levando connosco apenas o nosso russo precário e sem saber como pedir na língua de Puskin aquelas borrachinhas salvadoras. Queríamos evitar a linguagem gestual que muitas vezes nos salvava do nosso Russo insuficiente porque naquela situação não seria muito lisonjeira. Fiados na barreira da língua discorríamos em voz alta:
— Que raio de nome dará esta gente aos preservativos?
— Preservatif? Preservatif? — logo acorreu solícita e salvadora uma menina do outro lado do balcão.
A primeira reacção foi a de quem é apanhado em flagrante a cometer uma má acção, mas logo me alegrei com a insuspeitada proximidade das línguas. Aqui e além.

Também a palavra café não anda muito longe do quase britânico "cófi". Por isso, soletrando o cirílico, pronunciámos vitoriosos, mais rápida a Leonor que eu por causa do seu jeito para as línguas, a enigmática palavra: "cófi". Entrámos resolutos e disponíveis para um café que já saboreávamos, apesar da sala ter mais o aspecto de um "self-service" que o de um café como a Brasileira, o Nicola, a Mexicana ou mesmo o nosso Pão de Açúcar. Qual não foi o nosso desânimo ao vermos trazerem-nos uns enormes copos cheios de café com leite. De regresso à Tcê Cá Chá apresentámos queixa à nossa professora de Russo, a nossa amiga Rosa — Tavárich Rosa! - e lá lhe manifestámos a nossa indignação. Explicámos a diferença entre um belo e fumegante cafezinho lisboeta, originário de Angola, de São Tomé, de Timor ou do Brasil, moca e robusta sem falar no suave e perfumado café da Colômbia e aquele medonho galão que nos serviram.
— Têm de pedir "tchornie cófi".
E assim ficámos a saber que café, mesmo café, só pedindo café preto. Mas em geral, quando pedíamos o "tchornie cófi" o que nos davam era café turco, com as borras no fim da chávena. E não tinham aquelas salas próprias, de verdadeiros cafés, a não ser o Café Puskin, na Rua Gorki. Era o que mais falta sentia em Moscovo e perguntava a admirados moscovitas como é que conseguiam viver sem o café de bairro. Onde é que discutiam a política? Onde é que diziam mal, isto é, onde é que diziam bem do Governo? Onde comentavam o último filme? Onde namoravam...? Respondiam-me que era nos clubes das empresas. Talvez. 
Um pouco antes das oito horas da manhã corríamos, estremunhados e descompostos para a casa de banho colectiva com uma fila de lavatórios e duches. Depois corríamos para o refeitório, para o pequeno almoço e às nove horas em ponto estávamos com os alemães na aula. Nós com a nossa intérprete a nossa muito querida Galina que tratávamos familiarmente por Gália e eles com a sua intérprete de russo-alemão. Durante todo o ano lectivo nem uma vez os alemães chegaram atrasados às aulas. Os alemães - já suspeitávamos - seriam pontualíssimos. Mas não me recordo de ter havido, uma vez que fosse, qualquer atraso de professores ou intérpretes. Um comportamento que em Portugal não é suficientemente valorizado. Mas nós não queríamos deixar os pergaminhos por mãos alheias, por isso, por nacionalismo ou por não querermos perder, nem a feijões, também nunca chegámos atrasados! Suponho que os nossos amigos berlinenses nunca suspeitaram desta prova de força que diariamente travámos com eles. Levávamos a peito deixar uma boa imagem do país. No aproveitamento escolar e na nossa conduta.

Em Vichniky, na nossa turma, os professores davam a lição em Russo e os intérpretes vertiam-na em alemão e em português. Para não me andarem a ensinar o que já sabia, os professores organizaram para mim, diligentemente, um plano de estudo, bibliografia e fichas que me permitiram aprofundar conhecimentos e, consequentemente, adequaram as provas de avaliação. Era uma prática comum aos diferentes grupos nacionais.
  
O Russo que fomos aprendendo já dava, ao fim de alguns meses, para nos fazermos entender nas visitas que duas ou três vezes por semana, fazíamos, sós, a Moscovo e também para sustentar uma conversação pouco rigorosa mas não era suficiente para dispensar o intérprete nas aulas.
A nossa turma era pequena. Além de nós três tinha apenas mais os quatro alemães de Berlim Ocidental.
O Sábado de manhã estava reservado à prestação de provas sob a forma de debates com o professor respectivo.
Sábado à noite havia convívio organizado pela escola com música e baile. O que hoje chamaríamos uma discoteca. Sem os efeitos especiais, sem música ensurdecedora, sem os belos sons da moderna música anglo-saxónica e quase sempre com as modas românticas da música russa.
Aprendíamos as cantigas populares das Américas, da Rússia e dávamos a conhecer, ao vivo , os fados da Amália, as cantigas do Zeca Afonso, e as populares como a Oliveirinha da Serra, Meu Lírio Roxo, Ai Malhão, Malhão. Afirmar que dávamos a conhecer as cantigas portuguesas é uma forma de dizer. A minha total incapacidade para cantar seja o que for deixava à Ana e em especial à Leonor essa incumbência. 
Quem melhor cantava era a Leonor cuja voz já gozava de grande popularidade e sempre era solicitada para cantar.  
Muitas vezes tínhamos que fugir dos nossos quartos ou fingir que não estávamos, para podermos estudar em sossego. Uma parte daqueles jovens “latinos” vinha da guerrilha urbana ou "campesina" ou de sociedades onde imperava a repressão brutal de esquadrões da morte. Talvez por isso, aquela ânsia de viver, pensei inicialmente. Mas depois verificava que os rapazes e as raparigas da Argentina, do México ou do Chile, países onde existia há muitos anos uma relativa paz social (Pinochet só veio cinco anos depois) eram iguais aos outros.
Por causa da língua e da proximidade, na nossa zona residencial, dávamo-nos mais com os latino-americanos e os franceses. E também com os guineenses e moçambicanos, apesar destes terem os quartos noutro edifício. Nesse ano não havia angolanos na escola.

Também evitámos as paixões internacionais, apesar da Deolinda, de pele acetinada e lindo tom castanho e do Cali que falava melhor o Inglês que o Português, constituírem um desafio nos primeiros meses à capacidade de resistência da delegação portuguesa. Assim, no continente africano, só namoriscávamos com os moçambicanos e guineenses e evitávamos o fogo ardente que nos imolasse como adivinhávamos acontecer à Carmela e ao Giovanni. 
Deolinda e Cali eram nomes de guerra. Nunca saberíamos o seu verdadeiro nome e nunca mais as nossas vidas se cruzariam. Sabíamos isso. O que dava às nossas relações um carácter transitório. E também um pouco estranho. Tudo o que poderia  haver entre nós ou aconteceria agora ou não mais aconteceria. E tudo o que activamente fomentássemos ou passivamente deixássemos surgir, amor ou ódio, zanga ou amizade, cooperação ou rivalidade, ficaria eterno no efémero encontro das nossas vidas em Vichniky.

No nosso círculo de convívio privilegiado entravam alguns soviéticos, em geral intérpretes ou professores, que falavam português, castelhano ou francês. Com alguns tínhamos uma relação muito próxima, cúmplice e amiga. E isso sucedia com cinco ou seis russos e russas, um tchetcheno, o que dominava sete línguas, e que para que conseguíssemos pronunciar-lhe o nome passou para nós a chamar-se Henrique, um mongol nosso professor e uma lituana de nome Liuda. Surpresas com os nomes também nos trouxe a delegação do Ceilão na qual havia um José e falava-nos dos indícios, ainda detectáveis, na sua terra, da passada presença portuguesa.

Tinham-nos dado um bilhete de identidade soviético que nos permitia o livre trânsito por Moscovo e a região à volta e recebíamos uma bolsa que nos permitia uma vida relativamente folgada. Amealhámos rublos e copeques e adquirimos um gira-discos com um "design" muito desanimador,[mas em contrapartida comprámos, muito barata, uma robusta colecção da melhor música e dos melhores intérpretes. Do Barroco ao século XX, Bach, Hendel, Vivaldi, passando por Mozart e Wagner aos russos do século XIX e XX Tchaikovsky, Borodine, Mussorgsky, Rimsky-Korsakov, Scriabin, Shostakovitch, Stravinsky, obras completas e não apenas excertos. Uma excelente colecção de discos, de música erudita, que, como tudo o resto, lá ficou. Não era impossível fazer chegar a Portugal todo o nosso património adquirido em rublos mas, para além de ostentarem marcas pouco discretas no Portugal salazarento, não era aconselhável andarmos com demasiado enxoval atrás de cada vez que tínhamos de mudar apressadamente de casa, por vezes abandonando tudo.

Gália, a nossa intérprete era uma russa de vistoso cabelo de tons dourados, culta, grande conhecedora da literatura portuguesa e brasileira. Conhecia Fernão Lopes e Fernão Mendes Pinto e, é claro, Camões. Conhecia Camilo, Eça, Oliveira Martins, Camilo Pessanha, Pessoa, Cesarini, Aquilino, Namora, Redol, ou Fiama ou Ruy Belo. E não era apenas os nomes.

 Gália, que se veio a tornar uma dedicada amiga, organizava-nos um intenso e requintado programa cultural extra-escolar. Assistimos à temporada de ópera de um dos mais famosos teatros do mundo, o Teatro Bolshoi. Tornámo-nos assíduos frequentadores da Tchaikovskaya Zal, onde conseguimos ver actuar alguns dos mais famosos intérpretes musicais de então. Sviatoslav Richter ao piano, David Oistrakh, não ao violino como já o vira em Lisboa, no Tivoli, mas como regente de orquestra. O filho, Igor Oistrakh, outra celebridade, no violino. No famoso palácio dos Congressos ou no Teatro Bolchói familiarizámo-nos com o clássico balet russo e conseguimos ver a inesquecível Maya Plisetskaya que, já velhinha, nove anos depois, encheu de aplausos o Coliseu de Lisboa, e um infindável número de excelentes bailarinos.


Uma vez por mês recebíamos a visita do representante do PCP, Manuel Rodrigues da Silva, para uma reunião política. Tratava-nos com desvelo e parecia-me bastante mais à vontade em Moscovo do que da primeira vez que o vi, em 1965. Tinha o bom senso, coisa que não aconteceu com outros, de não nos andar a explicar como havíamos de considerar boas as coisas más que  observássemos na sociedade soviética nem se devíamos namorar muito ou pouco e quem. Trazia-nos jornais portugueses e notícias de Portugal. As prendas que mais apreciávamos.

Estávamos em Junho e quase a partirmos para a viagem de fim de curso, com o grupo de Berlim Ocidental, quando chegou a ordem do PCP para eu partir imediatamente para Portugal para se dar inicio rapidamente às acções armadas.
Achei a ordem totalmente inoportuna porque a viagem de fim de curso era nem mais nem menos que à Sibéria e, como se sabe, não se vai à Sibéria todos os dias. Ia à Sibéria. Não para a Sibéria! Coisa muito distinta. O objectivo era visitar as grandes barragens hidroeléctricas do Oriente. A de Bratsk no Angara e a de Krasnoyarsk  no Yenisey. E incluía uma visita ao Lago Baikal e um passeio pela taiga siberiana.
No fim do curso, cada grupo tinha direito a uma visita a uma república ou região da União Soviética.
— Carliucha, que quer você ir visitar no fim do curso? — perguntava-me, solícita e interessada, a nossa amiga intérprete Galina, no seu português de sotaque brasileiro e com o diminutivo à russa.
— Aonde é que podemos ir?
— Aonde você pedir, Carloss  (Carlos era o pseudónimo que usava em Moscovo) Se o vosso curso não conseguir o que quer, nenhum conseguirá! — animava-nos a Gália. De facto, o pequeno grupo português usufruía da mais elevada cotação na opinião dos professores e da Direcção da Escola. Quer pelo aproveitamento escolar, onde nunca tirámos menos que o máximo, nos seminários, quer pelo comportamento. Também cuidávamos da imagem de Portugal com iniciativas políticas e culturais, em realizações de carácter circum-escolar, como o Dia de Portugal, ou de solidariedade com a luta dos povos das colónias portuguesas. E até pela higiene e arranjo dos nossos quartos.
Um dia fomos surpreendidos com uma menção pública por sermos a delegação que tinha os quartos mais limpos e melhor decorados. Não sabíamos que nos revistavam os quartos enquanto estávamos nas aulas!
— Então posso pedir à vontade? — enfatizei para a nossa amiga Gália, desconfiado da fartura. Se assim é, então quero ir à Sibéria — propus, descrente.
Era o que Gália queria ouvir porque essa era a sua secreta ambição. Já tinha viajado muito pelo seu país mas à Sibéria, quase no outro lado do mundo, nunca tinha ido e, como nossa intérprete, acompanhar-nos-ia.
— Que óptima ideia! Mas o pedido tem de ser fundamentado porque é uma viagem muito grande, dispendiosa e só muito raramente concedida. Mas para as "mininas" e para o "Carloss" os camaradas vão, com certeza, concordar.
O pedido foi aceite e a comunicação da Galina fez que todos, nós e ela, pulássemos de contentamento. Afinal… para eu não ir. Fiquei sempre a invejar a visita da Ana e da Leonor cujos verdadeiros nomes são Mariana e Maria Machado, à Sibéria, e a maldizer o fascismo português porque maldizer o partido, por me requisitar tão intempestivamente e afinal sem razão plausível, parecia-me pouco estatutário .

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