"O livro de Santana Lopes sobre a “crise de 2004” merece ser lido. A imprensa
limitou-se a tratá-lo como urna simples fonte de indiscrições e um pretexto para piadas Todos parecem muito satisfeitos com a teoria de que Santana foi um caso isolado de incompetência e irresponsabilidade, e como tal uma aberração singular e passageira da política portuguesa. Imagino que isto não desagrade totalmente ao próprio. Encaixa, de algum modo, na sua tese de que é uni político diferente, destinado a estragar os arranjos dos outros. Ora, o livro lembra outra coisa: que o “populista”, a quem os sábios de serviço fizeram o favor de promover a perigoso condutor de multidões “anti-sistémicas”, era de facto um velho insider do regime, fechado no mundo dos acordos e intrigas da classe política estabelecida, de que dependia totalmente.
Em 2004, a força política do presidente da Câmara de Lisboa derivava menos de uma qualquer base eleitoral do que de um acordo de amigos, que fazia dele o muro de lamentações do Governo. Santana não estava identificado com as políticas de Barroso. Pelo contrário. Mas estava identificado com a estratégia pessoal de Barroso. O pacto entre eles assentava nisto: Santana só podia querer o que Barroso não quisesse. Era a política reduzida ao pessoalismo mais básico.
Subitamente, Barroso deixou de querer ser primeiro-ministro. Santana passou. então a poder querer ser primeiro-ministro E por isso não quis eleições antecipadas. Ora, a alternativa a eleições era pôr-se nas mãos do Presidente da República. Foi Santana que, de facto, começou a “presidencialização” do regime, de que agora acusa Jorge Sampaio. Não foi ingénuo Calculou que Sampaio nunca pudesse tirar todas as consequências da situação. Para subir ao poder Santana dependeu da chantagem patriótica de Barroso. Para continuar, apostou em duas coisas: no medo de Sampaio ao “precedente” constitucional e no fim da “crise”. Santana, note-se, partilhava as reservas do Presidente em relação à política financeira do Governo. Ora, para sua grande danação, não foram as circunstâncias do país que mudaram, mas Sampaio, que passou a falar como se estivesse possesso pelo fantasma de Ferreira Leite. O medo da “crise”prevaleceu sobre o medo ao “precedente”.
Tal como Manuel Maria Carrilho, Santana atribui o fracasso a uma cabala dos seus inimigos. Um e outro acreditam que o eleitorado é, através da engenharia mediática, um mero reflexo de intrigas de bastidores. Mas se isso é verdade, também a sua vitória teria sido o resultado de uma cabala — a dos seus amigos.
Que género de político é, então, Santana Lopes? Num ensaio publicado em 1989, argumentou que o líder do PSD teria de ser um líder “carismático e populista”, como Sá Carneiro. Conseguiu assim enganar os seus rivais, que se convenceram de que, se ele dizia isso, é porque talvez fosse “carismático e populista”. No livro, Santana evoca o “sonho de Sá Carneiro”: “Uma maioria, um Governo, um Presidente.” É verdade que Sá Carneiro pediu isso. Mas o sonho não era esse. Esse era o meio para lá chegar. O sonho era uma democracia assente numa sociedade civil farte e não na tutela de uma vanguarda fardada de iluminados. Leia-se o manifesto da AD de 1980: “Não há liberdade política sem um amplo espaço de liberdade social e económica.” Foi através deste “sonho” que uma liderança política se encontrou com o país e descobriu a força que, enquanto apostou em manobras palacianas, nunca tinha tido. Em 1980, Sá Carneiro não tentou segurar-se no poder agarrando-se a Eanes, mas propondo um futuro diferente ao eleitorado. O contraste não podia ser maior.
Na primeira página do livro, ficamos a saber que Santana já tinha, aos 25 anos, uma certa importância política. Páginas adiante, mostra-se a si próprio e a Barroso, muito jovens e sonhadores, a partilharem antecipadamente entre os dois as regedorias do regime. Ungidos por uma aproximação precoce ao poder, propiciada pela revolução de 1974, pertencem a um pequeno grupo desde sempre convencido de que o poder em Portugal seria distribuído em função das relações de força entre eles. Tornaram-se exímios na criação de “percepções” e “factos políticos”. Tornaram-se também um pouco paranóicos (por exemplo, Barroso e Santana evitavam falar de política ao telefone). Quanto ao povo, esperaram que, à porta do palácio, lhes fosse admirando a esperteza e a sorte, enquanto roía os sobejos do Estado social.
Eis os políticos que temos. Não formam, de facto, uma classe política democrática, mas uma “camarilha” digna de qualquer corte absolutista do século XVIII . Têm muitos sonhos: Mas nós — os eleitores — não fazemos parte desses sonhos.
• HISTORIADOR"
Blog de Raimundo Narciso para reprodução por extenso de textos referidos nos seus outros blogs: Puxa Palavra, Memórias e A Grande Dissidência
2006-11-22
"O SONHO DELES"
Artigo de Rui Ramos, no Público de 2006-11-22: