2005-06-25

O “Julgamento” de Cunhal (2)

Correio dos leitores: de Manuel Nogueira recebemos a 2ª parte do seu artigo que se publica em seguida:
Através dos jornais sobre a morte de Álvaro Cunhal deparei-me com o seu julgamento – julgamentos condenatórios e aprovatórios (que também são julgamentos) – por aqueles que de algum modo se relacionaram com ele. Sentado na esplanada e a achar que o essencial ainda faltava, folheava as páginas interessado no palpitar das vidas e à espera de uma nova compreensão. Pois, parece que somos mesmo assim: Julgamos tudo em nosso redor por aquilo que as coisas nos dão de prazer/proveito ou sofrimento/desproveito a nós e aos nossos. E parece que é mesmo assim que está certo, pelo menos para as coisas mais práticas, que de outro modo já não andávamos cá. Mas talvez esta faculdade de julgar não seja totalmente útil para obter resultados mais completos em assuntos mais complexos...
Foi assim que aconteceu quando abri o “Público” de 14 de Junho, e me deparei com a série de julgamentos: “Um revolucionário de corpo inteiro”; “um combatente político”; “um lutador pela liberdade”; “muito coerente”; “homem muito inteligente”; “homem de cultura”; “um homem grande”; “antifascista”. “Um sedutor”; “progressista de vistas curtas”; “maquiavélico”; “incoerente”; “manipulador”; “admirador da grande revolução conduzida por Lenine, mas também das misérias que vieram com Estaline, Krutchov, Brejnev...”
Honestamente talvez não se possa dizer que alguém se enganava. Provavelmente cada um, a partir da sua própria esfera de consciência estava razoavelmente certo. Mas para além de todos os juízos, eventualmente de altíssima qualidade, que não é isso que está em causa, haveria algo de objectivo que valesse a pena compreender? Esta pergunta lembrava-me a conversa com um amigo marroquino, incompreensivelmente comunista, e tinha a certeza que aqui o fundamental estava por dizer.

Pois quer-me parecer que é possível – apesar de muitíssimo difícil – viver-se uma vida em integridade com o núcleo de consciência mas íntima, mais âmago de nós próprios. Julgo que o cerne das coisas e de nós mesmos nos passa despercebido. Mas que se o procuramos e se o encontramos e o agarramos – ou aprendemos a deixar-nos agarrar por ele –, no evoluir dessa integridade do cerne de nós mesmos, desenvolve-se um novo sentido, que não é nenhum dos sentidos comuns, nem o da análise racional, mas poder-se-ia dizer que é uma percepção directa da vida. A percepção de um sentido da vida, que se revela para o próprio um sentido universal da vida. Uma vivência que confere uma energia e uma inteireza totalmente novas.
Muitos homens e mulheres ao longo da História deram provas de uma notável capacidade de entrega em esquecimento de si próprios e dos seus interesses pessoais, em serviço aos outros, realizada a partir de uma percepção mais ou menos directa do sentido universal da vida, no cerne da sua consciência. Uns viram-no como justiça, ou como bem ou como verdade. Outros conceberam-na como um Deus, ou um Logos.
Eu sou ateu, porque nem podia ser de outra maneira, e não me interessa a metafísica. O neurocientista António Damásio, procura explicar como todas estas coisas se passam no interior do nosso cérebro, a meu ver sem lhe retirar, nem realidade, nem grandeza, ou beleza.
Marx compreendeu este sentido colectivo universal da vida como o sentido da História, a dirigir-se para o Homem Novo. Lenine também, e procurou ser o intérprete desse sentido. E Darwin nas suas investigações viu na natureza um sentido inerente, tendente para a vida e para a evolução. Damásio vê essa evolução como uma grande viagem para a criação da consciência, e está convencido que a consciência não é o fim último da evolução da natureza.
Ora, a meu ver se por um lado é possível encontrar essa percepção directa do fulcro da vida (apesar de me parecer muito raro e difícil), enquanto realidade vibrante e sem conceitos, por outro lado isso passa sempre por um processo lento de auto-revolução pessoal que para muitos nunca chega ao fim. É que, somos todos tendencialmente ultra-conservadores e egocêntricos e irracionalmente não estamos interessados em abrir mão do passado e do nosso egoísmo estrutural.
Acontece que para fazermos algo e sobretudo para comunicarmos, temos de formar concepções em torno desse sentido das coisas. Enfim, temos de pensar. E assim formamos ideias, conceitos, estruturas de pensamento e até doutrinas. Até aqui não vejo mal nenhum. Pelo contrário. Mas o problema acontece quando se confunde a percepção directa da realidade interior com a ideia que se formou (o que é muito vulgar!). E então a ideia deixa de se formar a partir da relação entre a nossa realidade interior e a realidade factual. E então deixamos de actualizar a compreensão pessoal do nosso sentido da vida (deixamos de permitir que uma verdade seja substituída por outra) e cristalizamos em torno de um sistema de ideias, que acabam por se tornar ultrapassadas e portanto, falsas. É uma espécie de esclerose. Deixa-se de viver da realidade e passa-se a viver da ideia – fossilizada mas muito poderosa.
Suponho que foi isso que aconteceu com as religiões, com os absolutismos e com os fundamentalismos. E com todos aqueles que mataram, torturaram e perseguiram para impor ou para defender a sua verdade.
Poucos foram os que, como o poeta americano Walt Whitman – também ateu –, foram capazes de: a) não só abrirem-se ao seu próprio âmago e de manterem no seu comportamento de vida uma integridade com a percepção nuclear do sentido da vida, mas também b) renovar essa percepção através de uma contínua renovação e aprofundamento da vida de acções e da dinâmica da vida em si mesmos e em seu redor. Isto, para que c) esse sentido da vida não seja apenas uma ideia utópica, mas sim uma realidade objectiva e vivente, em auto-realização. Para que para aquele que a viveu, e para toda a espécie humana, essa vida tenha valido a pena viver. E desse modo se possa dizer como Walt Whitman: “Enquanto a ti, morte, e a ti, amargo abraço da mortalidade, é inútil tentarem alarmar-me”.

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