2005-06-21

O "Julgamento" de Álvaro Cunhal (1)

Correio dos leitores: De Manuel Nogueira o texto seguinte:

O meu insurgimento contra a injustiça desencontrou-se do comunismo quando ainda ia a tempo de acontecer alguma coisa entre os dois e, quando mais tarde se encontraram, a evolução das coisas tinha tornado impossível que se revissem um no outro.
Foi por causa disso que naquela tarde numa viagem de autocarro para El-Jadid em que o ar condicionado não funcionava e suávamos em bica, interrompi a nossa conversa com uma pergunta ao meu amigo marroquino:
- Porque é que és comunista?
Parecia-me irracional que, sendo um tipo inteligente, formado na Europa e tendo acompanhado a perestroika e o colapso dos sistemas do bloco de leste, que apesar de tudo permanecesse ainda teimosamente comunista.
A questão não era filosófica porque as críticas que se pudesse fazer a Marx-Engels-Lenine não lhe suscitavam nem oposição nem interesse. Politicamente reconhecia que, em muitos aspectos era verdade que os partidos revolucionários se tinham tornado no oposto daquilo que tinha sido o seu impulso original. Reconhecia os factos relativos à supressão das liberdades naqueles países com a mesma reprovação do que eu. Porém isso não riscava nem ao de leve a sua armadura de convicção.
Então, desta vez, depois de andarmos às voltas na conversa, como o nosso autocarro, que em vez de seguir uma estrada principal recta e direccionada, seguia como que erraticamente pelas mais secundárias estradas, sem pressa, de aldeia em aldeia, deixando adivinhar a custo a direcção do destino onde não havia meio de chegar, foi então, dizia, que lhe fiz aquela pergunta. Com uma vaga sensação de inconveniência, não por não me dizer respeito o assunto, porque, bolas, entre amigos não há essas coisas, mas porque para perguntar afirmei com toda a certeza coisas que ninguém tem nem pode ter certezas absolutas. Mas enfim, lá saiu a pergunta:
- Olha lá, porque é que tu és comunista se a utopia de justiça, igualdade social e tudo o mais entre os homens é impossível e nunca será realizável?
E ali estava o meu amigo marroquino, silencioso por um breve instante como a pesar bem as palavras, o olhar para o longe de fora da janela, fixo num ponto mais alto no horizonte para onde se dirigia a fita serpenteante da estrada. Talvez estivéssemos a chegar ao nosso destino. Pelo menos, o ponto no horizonte que se aproximava deixava adivinhar poder muito bem ser o forte português de El-Jadid. E ali estava ele despretencioso, sorriso sincero a responder-me muito calmamente:
- Porque, meu amigo, se isso for impossível de realizar, a vida não tem sentido.
E ali estava eu a chegar ao meu destino, julgo que meio sorridente também, sem concordar com nada de políticas, mas a entender. Calado por um momento sem pensar nada de especial acerca daquilo, porque se pensasse então é porque não estava completamente calado e eu estava calado até ao fundo e a viagem parecia mais fresca, talvez por já ser fim de tarde e o sol começasse a descer no horizonte por de trás do forte português para onde nos dirigíamos.
Não foi uma questão de ele ter tido razão. Sei lá se tinha. A questão é que não se tratava de se ter razão. Simplesmente aquilo tinha sido maior do que a nossa conversa. E eu entendi, calado até ao fundo entendi sem palavras e pareceu-me grande e certo qualquer coisa naquilo. Não mudei em nada a minha opinião sobre a incoerência de se continuar comunista depois das lições da história e da vida (se assim fosse ele teria tido razão), mas acredito que entendi muito bem e por isso não tinha nada a dizer.
E é por causa disso que quando o Álvaro Cunhal morreu tendo mantido a mesma postura até ao fim, sem concordar (até porque não se tratava disso), lembrei-me do meu amigo no autocarro a caminho de El-Jadid, e julgo que entendi.
Manuel Nogueira

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