2009-11-23

Proença de Carvalho sobre as escutas da "Face Oculta"

Agentes da lei fora da lei?


Diário Económico 21/11/09 00:02
Daniel Proença de Carvalho, Advogado.

Tinha para comigo assumido o compromisso de resistir à tentação de expressar publicamente o que penso sobre o episódio das escutas em que interveio o primeiro-ministro...

Tinha para comigo assumido o compromisso de resistir à tentação de expressar publicamente o que penso sobre o episódio das escutas em que interveio o primeiro-ministro; patrocinando eu como advogado o eng. José Sócrates em processos por ele instaurados por abuso de liberdade de imprensa, e nunca tendo comentado publicamente esses casos, entendi, até hoje, manter essa postura de prudente reserva.

Quebro-a hoje, escrevendo o que penso sobre o episódio das escutas, obviamente sem o conhecimento e mesmo à revelia do primeiro-ministro, e tendo consciência dos riscos que corro. Acreditem ou não, faço-o por imperativo de consciência, como jurista e cidadão que se orgulha de sempre, desde muito jovem, antes e depois do 25 de Abril, ter lutado pela democracia, pelo respeito dos direitos humanos e pelo Estado de Direito.

Faço-o porque não me é mais possível silenciar o desgosto com que assisto à total descredibilização do sistema de justiça - que vem de longe - pelo veneno da política que nele se instalou e que está a conduzir à sua italianização, com resultados devastadores para o nosso futuro.

A verdade é que a polícia, o Ministério Público e o juiz de Instrução que participaram na intercepção, gravação e transcrição das escutas em que interveio o primeiro-ministro, agiram e continuam a agir na violação reiterada da Lei e contra os princípios do Estado de Direito. Deixemo-nos de rodriguinhos jurídicos com que alguns juristas disfarçam a sua militância política, citando a Lei: "Compete ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça... autorizar a intercepção, a gravação e a transcrição de conversações ou comunicações em que intervenham o Presidente da República, o presidente da Assembleia da República ou o primeiro-ministro e determinar a respectiva destruição..." (artigo 11º do Código de Processo Penal)

Qualquer cidadão dotado de literacia mediana não terá dúvidas quanto ao sentido da lei, tão clara é a sua expressão: não é apenas a colocação em escuta dos telefones dos titulares dos órgãos de soberania visados na lei que exige autorização do presidente do STJ. Essa autorização é exigida quanto à "intercepção, gravação e transcrição" de conversas em que "intervenham" o Presidente da República, o presidente da Assembleia da República e o primeiro-ministro. E não se pense que só estes titulares de órgãos de soberania estão sujeitos a regras especiais. Estão-no também os próprios magistrados.

Resulta, portanto, da Lei, que logo que uma conversa em que intervenha o primeiro-ministro seja interceptada, não pode a mesma ser mantida, sendo proibida a sua transcrição, sem autorização do presidente do Supremo. Sendo também este magistrado o único competente para apreciar em definitivo se a conversa contém prova de crime imputável ao primeiro-ministro. Ora, as autoridades que dirigem o Inquérito, usurpando a competência do presidente do Supremo, permitiram-se manter em seu poder escutas em que interveio o primeiro-ministro, durante vários meses, continuando a gravá-las, sem o consentimento da autoridade competente. A lei é também clara ao considerar como crime a intercepção, gravação ou mera tomada de conhecimento do conteúdo de conversas telefónicas sem consentimento. (artº 194º Nº 2 do Código Penal).

Tarde e a más horas, as escutas chegaram ao PGR e ao presidente do Supremo; ambos consideraram que não existem indícios de crime e o segundo considerou-as nulas e ordenou a sua destruição. Ao que diz a comunicação social, a ordem do presidente do Supremo continua por cumprir. Não é isto a subversão do Estado de Direito? Polícias, agentes do M.P. e um juiz que actuam contra a lei e não cumprem uma decisão do presidente do Supremo?

É claro que a prática destas ilegalidades conduziu a outro crime que diariamente é praticado na mais absoluta impunidade: o crime de violação do segredo de justiça. Os jornalistas cúmplices neste tipo de criminalidade já divulgaram alegados tópicos das conversas criminosamente guardadas e não tardará que apareçam as suas transcrições, obviamente por motivos de ordem política. O sistema de justiça afunda-se neste lamaçal arrastando na enxurrada a já pouca credibilidade do regime.

Isto foi possível em resultado da opacidade do sistema de justiça. Todos nós conhecemos os actores políticos, os seus percursos, as ideias que professam, os seus comportamentos políticos; e, muito importante, exercem o poder com base no voto popular, que é a regra da democracia. Que sabemos nós dos detentores do poder judiciário? Por onde andaram, que ideias políticas professam? E a pergunta fatal: qual a raiz do seu poder soberano? Com que legitimidade o exercem? Esta é a questão crucial com que, mais dia, menos dia, teremos de confrontar-nos.