Mário Lino ao apresentar, com Mário de Carvalho, o livro Alvaro Cunhal e a dissidência da terceira via, em 2007-05-17, na Livraria Fnac/Chiado em Lisboa disse o seguinte:
O livro Álvaro Cunhal e a Dissidência da Terceira Via é o segundo livro escrito pelo Raimundo Narciso e, tal como o primeiro, aborda a organização, o funcionamento e a actividade do PCP em períodos em que o autor teve um papel muito relevante nesse partido.
Aquando da sessão de lançamento do seu primeiro livro – ARA: Acção Revolucionária Armada. A História Secreta do Braço Armado do PCP, realizada em Dezembro de 2000, o nosso saudoso camarada e amigo José Barros Moura, que fez a respectiva apresentação, referiu: «este livro não é um livro de teoria política, nem um ensaio histórico, nem um romance, nem um livro de memórias. É um pouco de tudo isto ao mesmo tempo e nessa característica reside muito do seu valor». Penso que a mesma apreciação se aplica perfeitamente a este segundo livro do Raimundo Narciso. Mas sendo o Raimundo um protagonista importante, ou mesmo um dos protagonistas centrais deste livro, considero apropriado que tanto o livro como o seu autor/protagonista sejam objecto desta minha contribuição para a apresentação do livro.
Comecemos, pois, pelo autor.
Conheci o Raimundo Narciso em finais de 1959, princípios de 1960, pouco tempo depois de, vindo de Moçambique onde vivia com os meus pais, ter chegado a Lisboa para frequentar o curso de engenharia no Instituto Superior Técnico. Tinha então alugado um quarto próximo do Técnico e tinha adoptado a pastelaria Pão de Açúcar como local de estudo e de convívio com outros estudantes. O Raimundo, já então aluno do Técnico e frequentador do Pão de Açúcar, foi um dos primeiros estudantes com quem estabeleci uma relação de amizade que hoje se continua a manter. Datam deste período outras boas amizades que também ainda hoje se mantêm, como o Rui Martins e o Ernâni Pinto Bastos, aqui presentes, o José Gameiro, já falecido, e tantos outros, também já então amigos do Raimundo.
Foi o período em que dei os primeiros passos no Movimento Associativo, através da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico, e em que comecei a partilhar com o Raimundo e os outros estudantes amigos, já envolvidos nesse Movimento, preocupações de natureza política e social que conduziram a uma crescente tomada de consciência sobre a situação do País e do Mundo, a imperiosidade da luta contra o fascismo, a ditadura, a opressão, o colonialismo, o racismo, a descriminação da mulher; mas também envolveram a frequência do Cineclube Universitário de Lisboa e o desenvolvimento do gosto pelo cinema e pelo teatro, a frequência do Clube Universitário de Jazz e dos concertos de música dita clássica. E depois o envolvimento na Crise Académica de 1962 e em tantas outras lutas, preocupações e anseios.
Ao longo desses primeiros anos de convivência com o Raimundo Narciso, não pude deixar de registar alguns dos traços do seu carácter que muito me impressionaram e que hoje continuam a marcar a sua forte personalidade: verticalidade, honradez, coragem, firmeza de princípios, humanidade, solidariedade, companheirismo, grande sensibilidade social, simplicidade, sentido de responsabilidade. Também bom conversador e de fino humor. Um carácter muito marcante e cativante.
Julgo que estes traços de carácter são, aliás, claramente perceptíveis ao longo dos seus dois livros.
Em 1964, inesperadamente para mim, e julgo que para muitos amigos, o Raimundo bruscamente desapareceu. Pouco tempo depois vim a saber que era há já alguns anos militante do PCP e que tinha mergulhado na clandestinidade para se dedicar, a tempo inteiro, à actividade política. Nesse ano aderi também ao PCP, mas como militante não clandestino.
Passaram-se vários anos sem me esquecer do Raimundo, mas também sem saber praticamente nada da sua actividade. Até que em 1970, confesso que sem que tal tivesse constituído uma grande surpresa, recebi um telefonema do Raimundo e combinamos um encontro, tudo feito com as devidas cautelas conspirativas. Vim então a saber que ele estava organizado na ARA-Acção Revolucionária Armada e, respondendo à sua proposta, passei a dar a minha colaboração à actividade desenvolvida pelo Raimundo.
Com o 25 de Abril, acabou-se a clandestinidade, e retomei o convívio frequente e de grande amizade com o Raimundo, partilhando igualmente a militância activa no PCP, embora em organizações diferentes.
Como é descrito neste livro, acabámos por ser expulsos do PCP em Novembro de 1991, juntamente com o José Barros Moura. E até hoje, já lá vão 47 anos, a nossa amizade mantém-se intacta, tendo passado a envolver também, ao longo destes anos, os nossos familiares mais chegados.
O Raimundo foi militante do PCP durante 32 anos, partido onde, entre outras responsabilidades, foi membro da direcção da ARA e membro do Comité Central. Esteve na clandestinidade durante 10 anos, com tudo o que tal situação significa de grande abnegação, de risco de prisão e tortura e de sacrifício pessoal. Mas sempre com a mesma simplicidade, mas também com a mesma firmeza e determinação.
Entretanto, evidenciou-se uma nova qualidade do Raimundo: a de escritor, já materializada pela autoria de dois excelentes livros, daqueles que se lêem de um só fôlego, e nos quais se manifestam muitos traços da sua personalidade: simplicidade, rigor, objectividade, humor fino, frescura; mas que também mostram que está bem com o seu passado, com a sua consciência, sem rancores e sem arrependimentos mesmo face a factos certamente muito dolorosos que teve que enfrentar.
Através destes livros ficamos a conhecer melhor a vida, a actividade, a forma de organização e de funcionamento do PCP, em particular no que se refere ao período e às actividades em que o Raimundo esteve mais envolvido e exerceu maiores responsabilidades. E ficamos a conhecer também melhor o seu autor.
Estamos portanto perante livros úteis, bem escritos e que dão prazer ler.
O livro que hoje aqui é lançado constitui, como é dito na sua contracapa, «o relato do debate político, em particular nas reuniões do comité central, que acompanhou a maior crise do PCP depois do 25 de Abril de 1974. É também um testemunho da perturbação e das reacções que ele provocou na direcção deste partido». O livro permite-nos, portanto, conhecer melhor a génese e a evolução das principais dissidências internas, depois do 25 de Abril, de um partido que teve, sem qualquer dúvida, um papel determinante na dura luta contra o fascismo e na implantação da democracia em Portugal.
Assim, o livro começa por nos descrever a evolução da situação do PCP entre 1980 e 1990, período em que se revela, cada vez melhor, a incapacidade do PCP em adequar o seu tradicional acervo conceptual a uma realidade em rápida mudança, agravada pela perestroika e glasnost de Gorbachev; descreve o papel e actuação de Álvaro Cunhal e de outros dirigentes partidários nessa evolução; mostra o processo de despertar de consciências ao longo desse período, passando pelas primeiras desafinações no seio do Comité Central até às tomadas de posição do Grupo dos 6 que envolvia Veiga de Oliveira, Vital Moreira, Vitor Louro, Silva Graça, Sousa Marques e Dulce Martins.
O livro passa depois a descrever o processo de separação das águas dentro do Comité Central, resultante da afirmação e explicitação das divergências, o processo Zita Seabra, o surgimento e desenvolvimento do movimento da terceira via tendo como motivação directa a marcação da data de realização e a definição da forma de organização e funcionamento do XII Congresso do PCP. O livro evidencia os objectivos centrais dos dissidentes, de reformar o partido por dentro, designadamente a partir do seu Comité Central, destacando o papel de Barros Moura, José Luís Judas, Pina Moura, António Graça, Vitor Neto, Fernando Castro e muitos outros, grande parte dos quais aqui presentes, nesse período.
O livro descreve também as consequências destes acontecimentos, traduzidas pela saída e abandono de inúmeros funcionários, quadros e militantes do partido, e a radicação da consciência da impossibilidade de reformar o PCP por dentro.
Refere-se ainda o percurso seguido por muitos destes ex-militantes e também por muitos ainda militantes que se vieram a envolver na criação, em 1990, e na actividade do INES-Instituto Nacional de Estudos Sociais que teve grande impacte mediático e que promoveu diversas conferências e debates durante o período de desagregação final da ex-URSS, agora já com o objectivo de provocar a reforma do PCP, não por dentro mas por fora.
E, depois, recorda-se a reunião do Hotel Roma, em Agosto de 1991, onde um vasto conjunto de membros do PCP procedeu à denúncia pública da posição, assumida pela direcção do seu partido, de justificação do golpe de Estado perpetrado contra Gorbachev, e de que veio a resultar, em Novembro desse ano, a expulsão do PCP de Raimundo Narciso, José Barros Moura e de mim próprio.
A partir daqui, o livro recorda o percurso seguido por muitos dos principais intervenientes nos acontecimentos anteriormente relatados, com principal destaque para a criação da Plataforma de Esquerda, a aproximação deste movimento ao Partido Socialista, designadamente o seu envolvimento nas eleições autárquicas e legislativas de 1995 e, posteriormente, a adesão de muitos dos membros da Plataforma ao PS bem como de alguns outros ao Bloco de Esquerda.
Merece ainda referência no livro o facto de vários militantes destacados do PCP, que tiveram em todos estes acontecimentos uma posição crítica das dissidências, muitas vezes feita em termos de grande agressividade, terem posteriormente vindo a assumir também posições dissidentes e a afastar-se ou a ser afastados do PCP.
O livro inclui ainda um importante conjunto de fotografias e de Anexos com documentos produzidos durante este período, relacionados com os acontecimentos relatados.
O livro permite assim, aos que menos conhecem esta fase da história do PCP, penetrar no universo deste partido pela mão de quem o conhecia muito bem. É uma visita guiada de um protagonista privilegiado dos acontecimentos relatados, um protagonista que, em consequência dos acontecimentos em que participou, viu cortada a sua relação de amizade e solidariedade com amigos de muitos anos, teve de romper com uma longa experiência de vida e dedicação, que foi submetido a situações aviltantes de vigilância, mas que consegue analisar todos estes acontecimentos com grande objectividade, sem rancor ou qualquer espírito de vingança ou perseguição, feita até com algum distanciamento.
De tudo isto o que fica? Foi a militância no PCP uma grande desilusão, um grande embuste?
Conheço um grande número de ex-membros do PCP que viveram estes acontecimentos, mas, salvo muito raras excepções, e tal como eu ou, estou convicto, o Raimundo Narciso, nenhum se mostra arrependido dos anos dedicados à militância neste Partido.
Reconhecemos, certamente, grandes defeitos ao PCP, mas também encontramos na nossa experiência partidária grandes virtudes.
Para todos foi, certamente, exaltante a defesa de ideais nobres de transformação da sociedade, de forma a torná-la mais justa, mais solidária, sem exploração do homem pelo homem. Para todos foi marcante o espírito de dedicação, de despojamento, de abnegação, de coragem, de sacrifício evidenciado pela generalidade do colectivo partidário. Para todos foi empolgante a luta por causas que consideram justas e por princípios que consideram fundamentais. Para todos foi determinante o sentimento de pertença a um colectivo mobilizador da concretização destes objectivos.
Mas todos reconhecem também a falência do caminho seguido pelo PCP para concretizar os seus objectivos mais nobres de vida e de luta. Todos estão cientes da desactualização e falência de conceitos como o centralismo democrático, a ditadura do proletariado ou o carácter de vanguarda do partido. Todos repudiam o autoritarismo e o despotismo iluminado exercido pela direcção do Partido como forma correcta de mobilização do colectivo partidário. Todos reconhecem a importância decisiva da liberdade individual e da democracia no partido e na sociedade, como a melhor forma do exercício da vontade colectiva e da responsabilidade social. Todos partilham a convicção de que a vida interna e as práticas do partido devem reflectir o que queremos para a sociedade.
Por isso, grande parte dos ex-membros do PCP mantêm intactas as suas convicções, o seu empenho na luta pelas causas que marcaram, desde a sua juventude, o seu pensamento e a sua acção, os mais nobres traços de carácter que desenvolveram e interiorizaram durante a sua passagem pelo PCP.
Afinal, para mim, e certamente para o Raimundo e para a maior parte de vós, os objectivos de luta mantêm-se os mesmos. E se continuamos a lutar é porque estamos vivos.