2015-08-21

Bento de Jesus Caraça, um homem que abençoava as ilusões

Intervenção de Helena Neves 

na Iniciativa do Movimento Não Apaguem a Memória - NAM em parceria com campOvivo, em 5 de Janeiro de 2015, na Padaria do Povo, onde funcionou a Universidade Popular entre 1919 e 1948

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Há cem anos, nasceu uma criança do sexo masculino que, diriam mais tarde as velhas mulheres, parecia fadada por uma estrela. Estrela, sem dúvida, contraditória. Porque, se cedo se evidenciou que a sua sorte seria diversa daquela a que a origem social o destinava, e a sua vida se afirmou, desde a infância, como conquista de espaços cada vez mais amplos, o seu tempo seria breve. Ao morrer, 47 anos depois, o adulto que foi esse menino diria, segundo testemunho do sobrinho, «tão pouco tempo...» Tempo breve mas intenso. Marcando a sua época. E a nossa ainda.
 Falamos de Bento de Jesus Caraça, filho de trabalhadores rurais, nascido a 18 de Abril de 1901, em Vila Viçosa.
A morte tocou-lhe à nascença. Conta a irmã, mais nova, Filomena Caraça, que a mãe, aflita, vendo o menino a finar-se, correu à igreja a baptizá-lo, sem pensar sequer que nome pôr-lhe. Acudiu-lhe o padre, sugerindo Bento de Jesus. Mais tarde, Bento Caraça ironizará em resposta a uma crítica ao seu trabalho em O Diabo, jornal da frente intelectual mais radicalmente oposicionista e plataforma do movimento neo-realista. «Um articulista de Beja descobriu numa hora de ócio que há uma quase contradição entre o meu nome tão católico (sic) e o meu ingresso nas hostes diabólicas (re-sic). Que quer amigo? Fui baptizado à pressa e com um escasso mês de idade. Razões por que se julgaram dispensados de me consultar...»
Levado aos dois meses, pelos pais, para a Aldeia de Montoito, no Redondo, onde o pai é feitor da Herdade da Casa Branca, dá aí os primeiros passos e conhece, com pouco mais de 4 anos, as primeiras letras ensinadas por um trabalhador errante, desses que sazonalmente chegavam ao Alentejo, este trazendo, no pouco de seu, uma cartilha  escolar. Impressionada com a inteligência do menino, a senhora da herdade, D. Jerónima, torna-se «sua protectora»: assim assinará as cartas e postais que lhe escreve, até morrer, para os diferentes lugares para onde o envia a aprender a ser diferente: um homem culto.
 É neste percurso protegido que Bento Caraça passa pelo Liceu Sá da Bandeira, em Santarém, e, em 1915, se encontra no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa, espaço de descoberta de amigos, como Luís Dias Amado, tornado quase irmão, e Carlos Botelho, pintor da cidade e dos seus entardeceres; espaço de encontro com o amor através de Maria Octávia, filha do professor de matemática, Adolfo Sena; e limiar de um combate em que política e cultura constituem uma mesma matriz..
Em 1918, Bento Caraça termina com distinção o curso liceal e entra no Instituto Superior do Comércio, designação ao tempo do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, actualmente Instituto Superior de Economia e Gestão. Em Fevereiro de 1919, no segundo ano do curso de Economia, escreverá numa folha de papel que encontramos no seu espólio: «hei-de ser o primeiro aluno do meu curso». Sê-lo-á. Nesse mesmo ano, o professor Mira Fernandes, insigne matemático, recomenda a sua nomeação como 2º assistente temporário do Instituto para as cadeiras de Álgebra Superior e Geometria Analítica, 1º grupo. . Licencia-se em Outubro de 1923 com «bom com distinção», em 1924 passa a 1º assistente, em 1926 entra para a Comissão de Redacção da Revista de Economia, em 1927 é nomeado professor extraordinário e em 1929 é professor catedrático. A sua carreira revela-se fulgurante.
Com ele e através dele, a matemática torna-se um universo diferente, fascinante. Quer pelo seu estilo pedagógico, quer pela paixão que imprime e comunica na divulgação da matemática. Sucede algo de inusitado no Instituto. Alunos de outras turmas, de outras faculdades, de outro âmbito escolar, até de ciências humanas, afluem às suas aulas. As aulas inaugurais de início do ano escolar tornam-se um acontecimento cultural, um ritual de passagem. Este professor que transforma o olhar sobre uma matéria até considerada inóspita, este homem que vê no rosto dos alunos o estado de ânimo e os interpela pessoalmente, os consola e aconselha, este homem irónico e meigo, é, porém, extremamente rigoroso, exigente. Os alunos parodiam as iniciais do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras: «Isto sem o Caraça era fácil».
Como estudioso e divulgador, Bento Caraça introduz uma ruptura fundamental. Na sua obra, atrás do número, das figuras geométricas, das equações, é todo o tempo humano que pulsa, a respiração do social, as contradições de classes, a ansiedade e a luta dos homens fazendo-se no acto de fazer a história e as ciências. Praxis social e matemática cruzam-se dialecticamente. A renovação pedagógica e epistemológica do livro Os Conceitos Fundamentais da Matemática, editado em 1941, ofusca outras obras de Bento Caraça no mesmo domínio. É o caso de Lições de Álgebra e Análise, cuja publicação, em 1935, marca, segundo o professor Sebastião e Silva, «uma presença na história do ensino da matemática em Portugal». Este paradigma novo, que recupera a historicidade da produção científica, transparece no domínio da econometria que Bento Caraça introduz na investigação académica. Em consequência, cria, em 1938, com Mira Fernandes e Caetano Beirão da Veiga, o Centro de Estudos Matemáticos aplicados à Economia. Impulsionará, também, o Movimento Matemático que, entre 1937 e 1947, congregará matemáticos, físicos e químicos, numa linha de investigação inovadora, criativa, em consonância com a investigação internacional. Caraça encontra-se também entre os primeiros académicos que constituem, em 1940, a Sociedade Portuguesa de Matemática, cuja comissão Pedagógica dirige. Na Sociedade encontra-se entre os fundadores da Gazeta da Matemática, e participa nos congressos da associação Luso espanhola para o Progresso das Ciências, em 1941, no Porto, e, em 1944, em Cordoba.
Se na matemática Bento de Jesus Caraça opera um corte epistemológico transversal a todo o domínio científico, no plano cultural constituirá, como salienta Eduardo Lourenço, uma referência constante na sua própria geração e na que se lhe sucede. Quando dizemos «obra», significamos não apenas a vasta produção teórica, mas as práticas que protagoniza e incentiva. O que se trata é de praxis revolucionária, uma praxis em que combate cultural e político coincidem, no puro sentido do jovem Marx, filosofia, cultura, comprometidas na mudança do mundo.
Para o grupo social dos intelectuais de esquerda, dos anos trinta e quarenta, num leque vasto que vai de republicanos, mais ou menos radicais, seareiros, a marxistas, as armas da crítica têm um alvo político directo, a ditadura salazarista. Se divergem ideologicamente e se opõem, frequentemente, na concepção táctica e estratégica, o seu alvo é o mesmo: o derrube do auto-designado «Estado Novo». Toda a inteligência oposicionista esgrime contra a situação de miséria social e cultural, para cuja mudança a cultura é tão mais fundamental quanto o salazarismo investiu ideologicamente no obscurantismo, nomeadamente por via da «Escola, oficina de almas», e, de forma mais refinada, da «Política do Espirito» que, sob o impulso inteligente de António Ferro, mobilizou mesmo alguns intelectuais não fascistas.
É pois num contexto de condicionamento cultural, fortemente repressivo, agindo nas consciências e nos actos pela censura e pela interdição das liberdades de reunião e de associação, que Bento de Jesus Caraça sobressai num grupo de outros importantes combatentes. A sua concepção de cultura «como despertar das almas», de «aquisição da cultura» como significando «a conquista da liberdade» afirma-se na série de conferências e escritos (mesmo os matemáticos), nos artigos que publica no Globo, jornal efémero que, a 11 de Novembro de 1933, funda e  dirige com José Rodrigues Miguéis, no Liberdade, em O Diabo , na Seara Nova  e noutros órgãos de intervenção. Mas não somente. Toda a sua vida quotidiana é de empenho cultural e político. Na Universidade Popular Portuguesa, cujos corpos gerentes integra, desde a fundação em 1919, e a que preside, desde 1928 até à morte, Bento Caraça imprime um debate de ideias, uma perspectiva de cultura como impulso para a mudança, que tornam este espaço uma vanguarda de divulgação literária, artística e científica, cuja dimensão, em termos nacionais mas também internacionais, está ainda por ser devidamente estudada.
. No mesmo sentido, funda a Biblioteca Cosmos, com Manuel Rodrigues de Oliveira, que dirige desde 1941 até à morte. Uma Biblioteca que pretende ser, como escreve ao apresentar a colecção, «uma pequena pedra» para «toda uma vida nova a construir dominada por um humanismo novo». Em torno deste programa, Bento Caraça congrega intelectuais num espectro muito amplo de pertenças e referências do pensamento da época, muitos deles já colaboradores da Universidade Popular. O projecto gráfico é do amigo Carlos Botelho. Considerada já a primeira enciclopédia portuguesa, anterior à colecção francesa «Que sais-je?», a Biblioteca Cosmos, produção de transdisciplinaridade, no sentido conceptual contemporâneo, contará com a colaboração, entre outros, de Adolfo Casais Monteiro, Adriano Gusmão, António Sérgio, António da Silveira, Diogo de Macedo, escultor, José Gomes Ferreira, Luís Navarro Soeiro, Manuel Peres, Mário Dionísio, Mário Neves, Orlando Ribeiro, Paulo Quintela, Ruy Luís Gomes, Vitorino Magalhães Godinho. Publicam aqui os primeiros livros, Rómulo de Carvalho, Agostinho da Silva, Irene Lisboa, Luís de Freitas Branco, Fernando Lopes Graça, Manuel Mendes, Maria Silva, Alberto Candeias, Flausino Torres, Eugénio Conceição Silva, Ramiro da Fonseca. Até 1948, ano da morte de Caraça, a Cosmos publica 145 volumes, correspondendo a 114 títulos, com uma tiragem global de 793 500 exemplares.

Mesmo quando a intervenção de Bento Caraça se assume numa vertente mais situada politicamente, é ainda e sempre o «despertar das almas» que o move. Porque, como acentua em diversas fórmulas, as revoluções pressupõem uma consciência necessária à sua sustentabilidade.
            Destacando-se no empenho pelo frentismo político, Bento Caraça funda a Liga contra a Guerra e o Fascismo, é um activista no apoio aos presos nos campos de concentração nazis e aos refugiados, colabora na Frente Popular, surge como um dos  mais estacados fundadores do MUNAF, Movimento de Unidade Nacional Antifascista, em 1942, e do MUD, Movimento de Unidade Democrática, em 1945, de cuja comissão central será vice-presidente. Por este envolvimento, no qual produz importantes documentos de análise política, será preso várias vezes e demitido das funções de docência a 8 de Outubro de 1946, sob a acusação de ter assinado um documento contra a admissão de Portugal na NATO, tal como o professor Mário de Azevedo Gomes, co-autor do documento e presidente da comissão central do MUD.
É já então casado com a segunda mulher, Cândida Gaspar, a aluna que o levou a abandonar a longa viuvez do breve casamento com Maria Octávia, que durara menos de um ano. Com Cândida, que lhe devolve a paixão e a ternura, será também breve a vida. Ele sabe-o. A doença cardíaca, já de longa data, agravava-se. Por isso o olhar de profunda ternura com que segue os primeiros passos vacilantes de João, o seu filho, é um olhar pleno de nostalgia. Nostalgia do futuro. E nas últimas fotografias antes da morte, a 25 de Julho de 1948, Bento Caraça devolve-nos o sorriso magoado dos que sabem que vão morrer.
Deixará uma obra invulgar. E uma invulgar saudade. Porque muitos foram os que o amaram nesse tempo de cruzamento de cumplicidades, de militâncias e de amizades. E mais ainda os que o admiraram.
No seu enterro, a 27 de Julho de 1948, uma impressionante multidão, num impressionante silêncio, vai pelas ruas de Lisboa, de Campo de Ourique ao Cemitério dos Prazeres. Agentes da polícia política enquadram a multidão, infiltram-se nela à espera da quebra do silêncio que não sucede, e, intimidatoriamente, filmam todo o funeral, nas ruas e no cemitério. Um cortejo simbólico, uma quase coreografia, imaginada pelo amigo Fernando Piteira Santos, as jovens e os jovens,  em bloco, as mãos densas de flores. Afirmando a continuidade na ilusão do mundo que Bento Caraça procurou no seu empenho cultural e político.
Como ele escrevera em 1939, na Seara Nova, «as ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há de melhor na vida dos homens e dos povos. (...) Benditas as ilusões, a adesão firme e total a qualquer coisa de grande, que nos ultrapassa e nos requer. Sem ilusão nada de sublime teria sido realizado, nem a Catedral de Estrasburgo, nem as sinfonias de Beethoven. Nem a obra imortal de Galileu.»  

Universidade Popular Portuguesa: passado e futuro

Artigo do Prof. do IST (aposentado) Paulo Almeida.

Universidade Popular Portuguesa:
passado e futuro

1. O passado

A instrução popular era assim caracterizada por Alexandre Herculano no século XIX: Entendemos por educação e instrução popular a cultivação do espírito, e não o ensino das artes fabris ou mecânicas, a que muita gente dá aquele nome. Negar o aperfeiçoamento intelectual aos homens, deixá-los na bruteza e na ignorância, é um acto imoral, um menoscabo de deveres sagrados, e, por consequência, um crime[4].

Nesta linha de instrução popular surgiram várias agremiações de que é justo destacar a “Voz do Operário”, nascida em Lisboa em 1883 e a Academia de Estudos Livres, também em Lisboa, em 1889.
Com a instauração da República e o seu programa de enaltecimento da cidadania viriam logo a surgir inúmeras iniciativas imbuídas do mesmo espírito generoso, algumas delas reivindicando para si uma ideia de Universidade. Foi o caso da Universidade Livre, criada em 1911 graças sobretudo a Alexandre Ferreira (1887 –1950) (pro…ssional de seguros e pai do poeta José Gomes Ferreira)[3].

No âmbito das actividades da Universidade Livre, foram proferidas semanalmente muitas palestras, logo publicadas, contando com colaborações diversi…cadas: Agostinho Fortes, Ruy Telles Palhinha, Almeida Lima, António dos Reis Silva Barbosa, Balthazar Ozorio, Arthur Ricardo Jorge, etc.; eis alguns títulos: “O Homem antes da civilisação”, “O Homem como ser animal”, “O que é e para que serve a Physica”,
“O objecto da Biologia”, “Prólogo à Zoologia”, “Introdução ao estudo das Plantas”, etc. Cabe perguntar se hoje em dia, com todas as facilidades de edição do começo do século XXI seria possível uma tal realização.
Um pouco mais tarde aparece a Universidade Popular do Porto (julgo que em
1918), sob o patrocínio da Renascença Portuguesa e em 1919 foi fundada em Lisboa a
Universidade Popular Portuguesa (UPP), por iniciativa de António Augusto Ferreira
de Macedo (1887 – 1959)[7], seguida ainda pela Universidade Popular de Setúbal,
onde Bento de Jesus Caraça (1901 –48) viria a fazer uma uma palestra em 1931,
intitulada “As Universidades Populares e a Cultura”[2].

Na “Padaria do Povo”, em Campo de Ourique, teve a UPP a sua “sessão
inaugural com a presença do Chefe do Estado e do Ministro da Instrução, cabendo
a leitura do discurso de abertura a Pedro José da Cunha, reitor da Universidade de
Lisboa”[8], o que por si só aquilata quer do prestígio que inspiravam os colaboradores
da UPP, quer da qualidade das pessoas à frente daquelas três instituições. Na UPP
viriam a colaborar, palestrando, alguns dos maiores nomes da cultura portuguesa
da época; para só citar alguns: António Sérgio, Jaime Cortesão, Rodrigues Lapa,
Raul Proença, Mira Fernandes, Faria de Vasconcelos, Agostinho da Silva, Vieira de
Almeida, Cirilo Soares, Moisés Amzalak, Leite de Vasconcelos, Mendes Correia, Virgí-
nia de Castro Almeida, Aurélio Quintanilha, Azeredo Perdigão e dezenas de outros;
Bento de Jesus Caraça destinaria à Universidade Popular Portuguesa, em 1933, a sua
mais famosa conferência: “A Cultura Integral do Indivíduo”.
Constituiu a UPP um lugar de tolerância e construtiva controvérsia como convém
naturalmente a uma Universidade e a essas características não será alheio o facto de
contar no seu Conselho Administrativo um variado e equilibrado espectro de personal-
idades — professores, operários, tipógrafos — entre elas o então jovem Bento de Jesus
Caraça, cuja amizade com Ferreira de Macedo se …tornaria então defi…nitiva. Foi porém a partir de 1928 que Bento de Jesus Caraça daria novo vigor à UPP, fixando na já referida palestra feita em Setúbal as balizas da Universidade Popular Portuguesa:

O seu ensino não deve cristalizar em certas fórmulas, se isso acontecer, tornar-se-ão obstáculos ao progresso. Devem constituir, por assim dizer, a vanguarda do ensino e a sua acção, sem contrariar a da Escola, deve ser complemento dela.
A sua utilidade e justi…cação da sua existência está nas possibilidades de
libertação espiritual que der às massas trabalhadoras.
Às organizações sindicais cabe um papel enorme nesse trabalho de liber-
tação, promovendo intensamente a cultura dos seus membros.
A emancipação futura da humanidade será o resultado da união de todos
os esforços individuais e colectivos orientados pelos mesmos ideais.
Naturalmente que a questão da de…nição dos objectivos e características de uma
Universidade Popular foi na época assunto de inúmeros debates ou não fosse “a edu-
cação do povo uma dessas ideias que constantemente são so…smadas e atraiçoadas”
como bem disse Ferreira de Macedo numa das muitas conferências que dedicou ao as-
sunto, de que destacamos duas: uma, sobre a “A Educação Moral dos Trabalhadores”[5],
em que se historiavam as Universidades Populares, seria proferida na Universidade
Livre, animada pelo seu amigo Alexandre Ferreira; outra, donde retirámos aquela
citação, intitulada “A Educação do Povo”[6] não viria a ser proferida na Sociedade
“Voz do Operário”, em 1945, adivinhe o leitor porquê...
O texto desta última palestra, condimentado pelo tempo, é elucidativo do ideal de
Ferreira de Macedo:
Tudo se pode resumir no seguinte: temos que forjar uma nova humanidade,
e o novo homem, o homem de amanhã, não será apenas o animal humano,
belo e são, a quem uma nova orgânica social assegurará uma vida mate-
rial segura e desafogada, livre …nalmente de toda a opressão económica e
política; será também — será sobretudo — um ser moral e social que tem
a consciência do que é, e do que signi…ca na vida universal (tanto quanto
o permita o estado da Ciência e da Filoso…a) um ser com entusiasmo e fé
no progresso da comunidade, e a vontade e a capacidade de lutar por esse
progresso. Eis aqui, sinteticamente expresso, o meu ideal de educação do
povo.
Na sociedade em que vivemos, dominada pelo dinheiro, parece-nos pelo menos
idílica esta visão, mas por aí mesmo aferiremos a imensidão do que nos falta fazer;
por outro lado e infelizmente soam-nos actualíssimas estas palavras ainda cheias de
futuro:
[...]todo o ensino o…cial no nosso país está viciado, de alto a baixo. Falta-
lhe um ideal, falta-lhe um ambiente, falta-lhe uma organização cientí…ca
e harmónica com as necessidades actuais. Mas não é desse ensino que
tenho de tratar aqui. O que desejo frisar é que o ensino do povo, como eu
o concebo, será inteiramente e profundamente diferente do actual ensino
o…cial[...]

Naturalmente que para levar avante o seu projecto reivindica Ferreira de Macedo:
Os melhores instrumentos pedagógicos têm de ser utilizados, os melhores
métodos, os mais perfeitos programas!
A.A. Ferreira de Macedo
Não reste dúvida de que se quisermos fazer reviver a Universidade Popular Por-
tuguesa — certamente a melhor homenagem que poderíamos prestar a Ferreira de
Macedo e a Caraça — muito temos a aproveitar com as re‡exões, empapadas de
prática, destes dois matemáticos. Ao deparar com a sua lucidez límpida e simples
ocorrem-nos as palavras de mais um matemático, tão perseguido quanto os outros
dois; referimo-nos a António Lobo Vilela:
De ora em quando, no meio deste marasmo desolador, ouvem-se rumores
abafados de vozes vibrantes que mal encontram eco, como se fossem pro-
feridas no fundo de uma cisterna, ou gritadas num deserto imenso. Es-
sas vozes traduzem o pouco que entre nós ainda sobrevive de sinceridade
e de independência moral, mas as condições acústicas do ambiente são
tão más que elas se perdem como se fossem simples lamentos de almas
impotentes[9].

2. O futuro

A Universidade tal qual existe hoje na maioria dos países democráticos corresponde
nalguns aspectos ao ideal de Universidade Popular; a massi…cação do ensino nesses
países ao longo do século XX abriu as portas da Universidade a todas as classes e a
Universidade deixou de ser aí em grande medida uma reserva das élites económicas,
élites estas que continuam porém a ter o controlo dos meios decisivos de in‡uenciar a
sociedade: o ensino e a informação. E que tipo de ensino e de informação é oferecido?
O que conduz à formação integral do indivíduo? Não!! e é exactamente por isso que
a ideia da Universidade Popular é hoje ainda, infelizmente, de grande actualidade.
O ensino, hoje, em toda a Europa, visa sobretudo e cada vez mais o fabrico
de eleitores, consumidores e contribuintes relegando para segundo plano a riqueza
individual de cada um e cerceando as formas efectivas de participação colectiva. Só
o pensamento e a acção livres, num concerto de diversidade de opinião e de prática
solidária, a…rma a dignidade humana. Nós, eleitores, consumidores e contribuintes
somos ainda pessoas que recusam um rótulo único, que sentem a complexidade das
coisas, oposta às interpretações simplistas dos meios de informação, que têm imensas
dúvidas, que adoram a controvérsia, que descon…am dos consensos da mediocridade,
que suspeitam dos choques de civilizações; queremos enriquecer-nos com a diversidade
e não queremos empobrecer-nos na uniformidade. Queremos conhecer mas queremos
sobretudo compreender.
A Universidade Popular há-de opor-se aos aspectos negativos da massi…cação,
há-de aceitar a dúvida, há-de promover a controvérsia, há-de dar-nos os meios para
compreender o diferente, há-de fazer-nos dizer alto que de nada vale teimar em com-
preender o desconhecido se há quem se aproveite do conhecimento cientí…co para, à
solidariedade, privilegiar a guerra.
As universidades, hoje, em toda a Europa, são sobretudo escolas de formação
pro…ssional, donde se pretende que saiam rebanhos de jovens abúlicos sem a cons-
ciência do seu decisivo poder e obedientemente tomando o seu assento como os leões
no espectáculo do circo; a contenção forçada da nossa juventude nos quadros estreitos
de uma participação …ctícia onde o pensamento crítico inexiste só pode conduzir
a explosões selvagens quer no anonimato do hooliganismo, quer no anonimato dos
que no silêncio da socapa caucionam as guerras em que sem dar por isso nos vemos
envolvidos.
A Universidade Popular há-de ser um local onde se adquira a consciência do esforço
que ao longo de milénios sempre foi necessário para ter uma ideia nova, nesse esforço
persistente consistindo o essencial do espírito cientí…co; há-de ser um local onde se
entenda claramente que os erros são necessários para lograr algum acerto e que a
ideologia do sucesso é uma fraude publicitária.
As universidades europeias, que na origem eram corporações de mestres e alunos,
veiculando na raiz universitas a ideia de unidade do diverso, de enriquecimento mútuo,
tinham a sua criatividade assente na necessidade de acarinhar a crise permanente,
prevenindo a violência de crises maiores; só podiam pois essas universidades combater
a especialização prematura criando nos alunos, isso sim, a autonomia necessária para a
adquirir mais tarde e da forma mais conveniente. A Universidade Popular não terá por
objectivo formar especialistas mas há-de dar ocasião aos especialistas para resgatar
para si toda a dignidade de pessoas a que têm direito. A Universidade Popular há-
de ser um lugar de libertação para as potencialidades de cada um, e um lugar de
reabilitação da dignidade individual e colectiva. A Universidade Popular há-de ser
um grito de Liberdade!
A Universidade Popular chamará a si cada um de nós, sem rejeitar qualquer parcela
de saber ou de experiência, sendo por demais claro não terem aceite, muitas vezes,
um lugar no terreiro da massi…cação medíocre, aqueles que são porventura os nossos
melhores, rejeitados por uma sociedade que os não conseguiu formatar. Os reforma-
dos, e os desempregados, benvindos à Universidade Popular, serão uma minoria no
meio da multidão de desenganados que lhe dará vigor e de que todos precisamos. A
Universidade Popular libertará em muitos o que há de melhor em si e pretende levar
esse somatório de iniciativas individuais ao “despertar da alma colectiva das massas”,
como preconizava Bento de Jesus Caraça.[1]
A CGTP-IN, em cerimónia comemorativa do centenário do nascimento de Bento de
Jesus Caraça, anunciou publicamente, pela voz do Secretário-Geral Manuel Carvalho
da Silva, e na presença do Presidente da República, Jorge Sampaio, o seu empenho
determinado em levar por diante o projecto da Universidade Popular Portuguesa para
o que seria prudente convocar um amplo espectro de colaboradores e de agremiações;
pensamos por exemplo na Sociedade da Língua Portuguesa, cuja biblioteca de mais de
50.000 volumes bem poderia constituir um elemento precioso no projecto. Foi então
dito que “o papel dos sindicatos, neste conturbado contexto histórico, é difícil mas
ainda mais necessário. Aos sindicatos cabe contribuir para ‘promover a cultura dos
seus membros’.” Estamos por isso certos do apoio da grande massa dos trabalhadores
à futura Universidade Popular Portuguesa como estamos certos da presença do Presi-
dente da República, na futura sessão inaugural em que poderá repetir as palavras
que proferiu, na cerimónia do centenário do nascimento, referindo-se a Bento de Jesus
Caraça : “Uma parte do futuro a que apontava é o nosso presente”.

Referências

[1] Bento de Jesus Caraça. A Cultura Integral do Indivíduo, problema central do
nosso tempo. Cadernos de Cultura Vanguardista, No. 1. Edições Mocidade Livre,
Lisboa, 1933.
[2] Bento de Jesus Caraça. Conferências e Outros Escritos. s. ed., Lisboa, 1978 (2a.
ed.).
[3] Ferreira Deusdado. Educadores Portugueses. Clássicos da Cultura Portuguesa.
Lello & Irmão-Editores, Porto, 1995.
[4] Alberto Ferreira. Estudos de Cultura Portuguesa (Séc. XIX). Margens do texto,15.
Moraes Editores, Lisboa, 1980.
[5] A. A. Ferreira de Macedo. A Educação Moral dos Trabalhadores. Universidade
Livre, 1923.
[6] A. A. Ferreira de Macedo. A Educação do Povo. Seara Nova, 1945.
[7] Armando Myre Dores. O papel da Universidade Popular Portuguesa ao serviço
da cultura do povo. O Erro, (1), 2001.
[8] António Ventura. No centenário de António Augusto Ferreira de Macedo. Rev.
da Bibl. Nac., (2 (1)), 1987.
[9] A. Lôbo Vilela. A Crise da Universidade,. Renovação Democrática, Cadernos de
Cultura Democratista, Figueira da Foz, 1933.
Lisboa, 2 de Novembro de 2001 Paulo Almeida

2015-06-26

O que Varoufakis pediu e a Europa rejeitou

Palavra por palavra, proposta por proposta: o que Varoufakis pediu e a Europa rejeitou
Para que se informe e então avalie, para que se questione e depois o questione, para que possa elogiar ou criticar, caso pretenda lamentar ou exaltar, o Expresso traduziu na íntegra o que Varoufakis leu e apresentou na reunião de Eurogrupo de quinta-feira, que acabou como começou: em desacordo. A leitura é longa, mas recomendável e necessária para se perceber o que a Europa rejeitou e o que a Grécia pediu.
 
Nota de Varoufakis no seu blogue pessoal, onde disponibilizou o discurso: “O único antídoto para a propaganda e para as 'fugas' malévolas é a transparência. Depois de tanta desinformação em torno da apresentação que fiz no Eurogrupo da posição do governo grego, a única resposta é publicar exatamente as palavras que proferi. Leiam-nas e julguem por si mesmos se as propostas do governo grego constituem ou não uma base para um acordo”. 
Colegas, 
Há cinco meses, na minha primeira intervenção no Eurogrupo, disse-vos que o novo governo grego enfrentava uma tarefa dupla: 
Temos de ganhar uma moeda preciosa sem desbaratar um importante capital.  
moeda preciosa que tínhamos de ganhar era um sentimento de confiança, aqui, entre os nossos parceiros europeus e junto das instituições. Para obter essa moeda necessitaríamos de um pacote de reformas significativo e um plano de consolidação fiscal credível. 
Quanto ao capital  importante que não podíamos dar-nos ao luxo de desbaratar, esse era a confiança do povo grego, que teria de ser o pano de fundo de qualquer programa de reformas acordado que pusesse fim à crise grega. O pré-requisito para que esse capital não se perdesse era, e continua a ser, um só: a esperança tangível de que o acordo que levamos para Atenas:
. é o último a ser forjado em condições de crise;
. compreende um pacote de reformas que põe fim a uma recessão ininterrupta de seis anos;
. não atinge selvaticamente os pobres como as anteriores reformas atingiram;
. torna a nossa dívida sustentável, criando assim perspetivas genuínas do regresso da Grécia aos mercados, terminando a nossa dependência pouco digna dos nossos parceiros para pagar os empréstimos que deles recebemos.
Cinco meses passaram, o fim da estrada está à vista, mas este derradeiro ato de equilíbrio não se materializou. Sim, no Grupo de Bruxelas estivemos quase. Quase é quanto? Do lado dos impostos, as posições são realmente próximas, especialmente para 2015. Para 2016, o fosso restante representa 0,5% do PIB. Propusemos medidas paramétricas de 2% contra os 2,5% em que as instituições insistem. Esta diferença de meio por cento propomos eliminá-la através de medidas administrativas. Seria, digo-vos, um erro tremendo deixar que esta minúscula diferença causasse danos massivos na integridade da Zona Euro. A convergência foi também alcançada num vasto leque de questões. 
Ainda assim, não nego que as nossas propostas não instilaram em vós a confiança de que precisais. E, ao mesmo tempo, as propostas das instituições que o Sr. Juncker transmitiu ao primeiro-ministro Tsipras não podem gerar a esperança de que os nossos cidadãos necessitam. Assim, chegámos perto de um impasse. 
Assim, no último minuto e neste estado de negociação, antes de que acontecimentos incontroláveis tomem conta da situação, temos o dever moral, para não falar do dever político e económico, de ultrapassar este impasse. Não é altura para recriminações nem acusações. Os cidadãos europeus responsabilizar-nos-ão coletivamente, todos os que não conseguirem encontrar uma solução viável. 
Mesmo que, mal orientados por rumores de que a saída da Grécia pode não ser assim tão terrível, ou que possa até beneficiar o resto da Zona Euro, alguns estejam resignados a que isso aconteça, é um acontecimento que desencadeará poderes destrutivos que ninguém pode travar. Os cidadãos de toda a Europa não apontarão às instituições, mas aos seus ministros das Finanças, aos seus primeiros-ministros, aos seus presidentes. Ao fim e ao cabo, elegeram-nos para promover a prosperidade partilhada da Europa e para evitar  buracos que possam ferir a Europa. 
O nosso mandato político é encontrar um compromisso honroso e trabalhável. É assim tão difícil conseguir isto? Achamos que não. Há poucos dias, Olivier Blanchard, o economista-chefe do FMI, publicou um artigo intitulado "Grécia: um acordo credível vai requerer decisões difíceis de todas as partes". Tem razão. As quatro palavras significativas são "de todas as partes". O Dr. Blanchard acrescentava que: "no coração das negociações está uma questão simples. Que ajustamento tem de ser feito pela Grécia, que ajustamento tem de ser feito pelos seus credores oficiais?".  
Que a Grécia precisa de se ajustar não há dúvidas. A questão, porém, não é a quantidade de ajustamento que a Grécia precisa de fazer. É, pelo contrário, que tipo de ajustamento. Se por "ajustamento" queremos dizer consolidação fiscal, cortes de salários e pensões e aumento das taxas de juro, é claro que fizemos mais disso do que qualquer outro país em tempo de paz. 
. o défice fiscal, estrutural ou ciclicamente ajustado do setor público passou a superavit à custa de um ajustamento de 20% que bateu recordes mundiais;
. os salários caíram 37%;
. as pensões foram reduzidas até 48%;
. o número de funcionários públicos diminui em 30%;
. o consumo caiu 33%;
. até o crónico défice corrente do país caiu 16%.
Ninguém pode dizer que a Grécia não se ajustou às suas novas circunstâncias, do pós-2008. Mas o que podemos dizer é que este gigantesco ajustamento, necessário ou não, criou mais problemas do que resolveu: 
. o PIB agregado real caiu 27%, enquanto o PIB nominal continuou a cair quadrimestre sim, quadrimestre não ao longo de 18 quadrimestres sem parar até hoje;
. o desemprego disparou para os 27%;
. o trabalho não-declarado atingiu os 34%;
. a banca trabalha sob empréstimos não-produtivos que excedem em valor os 40%;
. a dívida pública ultrapassa os 180% do PIB;
. as pessoas jovens e bem qualificadas abandonam a Grécia aos magotes;
. a pobreza, a fome e a falta de energia registaram aumentos normalmente associados a estados de guerra;
. o investimento na capacidade produtiva evaporou-se. 
Portanto, a primeira parte da pergunta do Dr. Blanchard - "que ajustamento tem de ser feito pela Grécia?" - precisa de ser respondida. A Grécia precisa de uma grande dose de ajustamento. Mas não do mesmo tipo que teve no passado. Precisamos de mais reformas, não precisamos de mais cortes. Por exemplo, 
. precisamos de nos ajustar a uma nova cultura de pagamento de impostos, não de elevar as taxas do IVA, que reforçam o incentivo para fugir ao pagamento e conduzem os cidadãos respeitadores da lei a uma maior pobreza;
. precisamos de tornar o sistema de pensões sustentável, erradicando o trabalho não remunerado, minimizando as reformas antecipadas, eliminando a fraude no fundo de pensões, fazendo aumentar o emprego - não erradicando a tranche solidária das mais baixas das baixas pensões, como as instituições exigem, empurrando dessa forma os mais pobres dos pobres para uma pobreza ainda maior e convocando uma hostilidade popular massiva contra outro conjunto de ditas reformas.
Nas nossas propostas às instituições oferecemos: 
. uma extensa (mas otimizada) agenda de privatizações abrangendo o período entre 2015 e 2025;
. a criação de uma autoridade de Impostos e Alfândegas completamente independente (sob a égide e supervisão do Parlamento)
. um Conselho Fiscal que supervisione o orçamento do Estado;
. um programa a curto prazo que limite o crédito mal parado e gira empréstimos não produtivos
. reformas dos códigos do processo judicial e civil
. liberalização de vários mercados de produtos e serviços (com salvaguardas para os valores da classe média e profissões que deles fazem parte e parcela do tecido social);
. reformas da administração pública (introduzindo sistemas limpos de avaliação dos funcionários, reduzindo custos não-salariais, modernizando e unificando as carreiras do setor público).
Juntamente com estas reformas, as autoridades gregas pediram à OCDE que ajudasse Atenas a desenhar, implementar e monitorizar uma segunda série de reformas. Quarta-feira, encontrei-me com o secretário-geral da OCDE, o Sr. Angel Gurria, e a sua equipa para anunciar esta agenda conjunta de reformas, completada com um mapa específico: 
um grande movimento anticorrupção e instituições relevantes para o apoiar;
. liberalização do setor da construção, incluindo o mercado e padrões de materiais de construção;
. liberalização do comércio por grosso;
. código de práticas dos media, eletrónicos e impressos;
. centros de negócios na hora que erradiquem os obstáculos burocráticos ao negócio na Grécia;
. reforma do sistema de pensões - onde a ênfase esteja num estudo completo, atual e a longo prazo, no faseamento das reformas antecipadas, na redução dos custos operacionais dos fundos de pensões, na consolidação da segurança social - em vez de nos meros cortes de pensões. 
Sim, colegas, os gregos precisam de se ajustar mais. Precisamos desesperadamente de reformas profundas. Mas exorto-vos a levarem seriamente em consideração esta importante diferença entre: 
. reformas que ataquem ineficiências ou comportamentos parasitas e oportunistas, e
. 
mudanças de parâmetros que aumentem as taxas de juro e reduzem os benefícios dos mais fracos. 
Precisamos muito mais de reformas reais e muito menos de reformas de parâmetros. 
Muito se disse e escreveu acerca do nosso "recuo" na reforma do mercado de trabalho e quanto à nossa determinação para reintroduzir a proteção dos trabalhadores assalariados através da negociação coletiva. Será isto uma fixação de esquerda nossa que faz perigar a eficiência? Não, colegas, não é. Veja-se por exemplo a provação dos jovens trabalhadores em várias cadeias de lojas que são despedidos quando se avizinha o seu 24º aniversário, para que os empregadores possam contratar funcionários mais jovens e assim evitar pagar-lhes o salário mínimo normal que é inferior para empregados menores de 24 anos. Ou vejam o caso dos empregados que são contratados em part time por 300 euros ao mês, mas são obrigados a trabalhar a tempo inteiro e são ameaçados com a dispensa se se queixarem. Sem contratação coletiva, estes abusos abundam com efeitos nefastos na concorrência (uma vez que os patrões decentes competem em desvantagem com os que não têm escrúpulos), mas também com efeitos negativos nos fundos de pensões e na receita pública. Alguém seriamente pensa que a introdução de uma negociação laboral bem concebida, em colaboração com a OIT e a OCDE, constitui "reversão das reformas", um exemplo de "recuo"? 
Voltando por instantes à questão das pensões de reforma, muito foi feito para que as pensões contem por mais do que contavam no passado; tanto quanto 16% do PIB. Mas consideremos o seguinte: as pensões diminuíram 40% e o número de pensionistas mantém-se estável. Portanto, os gastos com pensões diminuíram, não aumentaram. Esses 16% do PIB não se devem a gastar mais em pensões, mas, pelo contrário, à dramática queda do PIB que trouxe com ela uma igualmente dramática redução nas contribuições devido à perda de empregos e ao crescimento do trabalho informal não-declarado. 
O nosso alegado recuo na "reforma das pensões" é que suspendemos a ulterior redução das pensões que já perderam 40% do seu valor, enquanto os preços dos bens e serviços de que os pensionistas precisam, isto é, medicamentos, mal foram alterados. Considerem este facto relativamente desconhecido: cerca de um milhão de famílias gregas sobrevive hoje à custa da magra pensão de um avô ou de uma avó, dado que o resto da família está desempregada num país onde apenas 9% dos desempregados recebem qualquer subsídio de desemprego. Cortar essa única, solitária pensão corresponde a lançar uma família nas ruas. 
É por isso que continuamos a dizer às instituições que sim, precisamos de uma reforma do sistema de pensões, mas não, não podemos cortar 1% do PIB às pensões sem causar uma nova e massiva miséria e mais um ciclo recessivo, uma vez que estes 1,8 mil milhões multiplicados por um grande multiplicador fiscal (de até 1,5) é retirado do fluxo circular da receita. Se ainda existissem grandes pensões, cujo corte faria diferença a nível fiscal, cortá-las-íamos. Mas a distribuição das pensões está tão comprimida que poupanças dessa magnitude teriam de ir comer nas pensões dos mais pobres. É por esta razão, suponho, que as instituições nos pedem para eliminarmos o complemento solidário de reforma para os mais pobres dos pobres. E é por essa razão que contrapropomos reformas decentes: uma redução drástica, quase eliminação, das reformas antecipadas, consolidação dos fundos de pensões e intervenções no mercado de trabalho que reduzam o trabalho na economia paralela. 
Reformas estruturais promovem o crescimento potencial. Mas meros cortes numa economia como a grega só promovem a recessão. A Grécia deve ajustar-se através da introdução de reformas genuínas. Mas ao mesmo tempo, voltando à resposta à pergunta do Dr. Blanchard, as instituições têm de ajustar as suas definições de reforma promotora do crescimento - para reconhecerem que cortes de parâmetros e aumentos de impostos não são reformas e que, pelo menos no caso da Grécia, minaram o crescimento económico. 
Alguns colegas notaram no passado, e podem voltar a fazê-lo, que as nossas pensões são demasiado altas em comparação com os idosos dos seus países e que é inaceitável que o governo grego espere que eles mantenham o nosso nível de pensões de reforma. Deixem-me ser claro acerca disto: nunca vos pediremos para subsidiarem o nosso Estado, os nossos salários, as nossas reformas, a nossa despesa pública. O Estado grego vive dentro dos seus meios. Nos últimos cinco meses conseguimos mesmo, apesar de termos zero acesso aos mercados, pagar aos nossos credores. Tencionamos continuar a pagar. 
Compreendo as preocupações de que o nosso governo possa cair de novo no défice primário e que é essa a razão que leva as instituições a pressionarem-nos para aceitar grandes aumentos do IVA e grandes cortes nas reformas. Embora seja nosso entender que um acordo viável seria suficiente para fazer disparar a atividade económica o suficiente para produzir um saudável superavit primário, percebo perfeitamente bem que os nossos credores e parceiros possam ter razões para ser céticos e exigir salvaguardas; uma apólice de seguro contra o eventual resvalar do nosso governo para o desperdício de recursos. É o que está por detrás do apelo do Dr. Blanchard ao governo grego para que ofereça "medidas verdadeiramente credíveis". Então, ouçam esta ideia. Uma "medida verdadeiramente credível". 
Em vez de se discutir meio ponto percentual de medidas (ou se estas medidas fiscais devem ser ou não do tipo paramétrico), que tal uma reforma mais profunda, mais abrangente, mais permanente? Um teto para o défice que seja legislado e monitorizado pelo Conselho Fiscal independente com que nós e as instituições já concordámos. O Conselho Fiscal monitorizaria a execução do orçamento de Estado numa base semanal, lançaria avisos se uma meta de superavit primário parecesse estar a ser violada e, em certas ocasiões, lançaria reduções automáticas horizontais a todos os níveis para evitar a derrapagem abaixo do limiar previamente acordado. Dessa forma está ativado um sistema de alerta que assegura a solvência do Estado grego enquanto o governo grego mantém o seu espaço político de que precisa para manter a soberania e ser capaz de governar num contexto democrático. Este é um firme propósito que o nosso governo implementará imediatamente após um acordo. 
Dado que o nosso governo nunca mais precisará de pedir emprestado dinheiro aos vossos contribuintes nem aos contribuintes que estão atrás do FMI, não faz sentido um debate entre Estados-membros que competem para ver quem tem pensionistas mais pobres, instigando um nivelamento por baixo. Em vez disso, o debate avança para os pagamentos da dívida. Quão grandes têm de ser os nossos superavits? Alguém acredita seriamente que a taxa de crescimento é independente do conjunto de metas primárias? O FMI sabe bem que os dois números andam juntos e é por isso que a dívida pública grega deve ser olhada de uma só vez. 
O nosso grande serviço da dívida deveria ser encarado como uma grande labilidade fiscal infundada. Embora seja verdade que as partes EFSF e GLF da nossa dívida têm maturidades elevadas e a taxa de juro não é grande, a labilidade fiscal infundada do Estado grego, a nossa dívida, constitui um componente poderoso que impede hoje a recuperação e o investimento. Refiro-me aos 27 mil milhões de obrigações ainda detidos pelo BCE. É uma labilidade infundada a curto prazo que os potenciais investidores na Grécia olham e viram costas porque podem ver o fosso de fundos que esta parte da dívida cria instantaneamente e porque reconhecem que estes 27 mil milhões na contabilidade do BCE travam a Grécia e não a deixam aproveitar o programa de financiamento do BCE quando este programa está em desenvolvimento e atinge a sua máxima capacidade para vir em auxílio dos países ameaçados pela deflação. É uma cruel ironia que o país mais afetado pela deflação seja precisamente o que é excluído do remédio antideflacionário do BCE. E é excluído por causa destes 27 mil milhões. 
 
FOTO REUTERS/ALKIS KONSTANTINIDIS
A nossa proposta é simples, eficaz e mutuamente vantajosa. Não propomos mais dinheiro, nem um euro para o nosso Estado. Imaginem o seguinte acordo em três partes a anunciar nos próximos poucos dias: 
Parte 1: Reformas profundas, incluindo o plafonamento do défice  que já mencionei. 
Parte 2: Racionalização do calendário de pagamentos da dívida grega segundo as seguintes linhas. Primeiro, para efetuar uma RECOMPRA DA DÍVIDA, a Grécia pede um novo empréstimo ao ESM, depois compra as obrigações ao BCE e retira-as. Para renegociar este novo empréstimo, concordamos que a agenda de reformas profundas é a condição comum para completar com êxito o atual programa e para assegurar o novo acordo ESM que entra em prática imediatamente depois e corre em concorrência com o continuado programa FMI até ao final de 2016. Os fundos a curto prazo assentes no cumprimento do programa corrente e no financiamento a longo prazo é completado com o retorno dos lucros SMP, ascendendo a 9 mil dos restantes 27 mil milhões, que vão para uma conta usada para satisfazer os pagamentos da Grécia ao FMI. 
Parte 3: Um programa de investimentos que impulsione a economia grega, fundado no Plano Juncker, o Banco de Investimento Europeu - com quem já estamos em conversações - o EBRD e outros parceiros que serão convidados a participar também em ligação com o nosso programa de privatizações e o estabelecimento de um banco de desenvolvimento que procure desenvolver, reformar e colateralizar bens públicos, incluindo propriedades imobiliárias. 
Alguém duvida verdadeiramente de que este anúncio em três partes mudaria dramaticamente o espírito, inspiraria os gregos a trabalharem duramente na esperança de um futuro melhor, convidaria investidores para um país cuja Bolsa caiu tanto e daria confiança aos europeus de que a Europa pode, no momento decisivo, fazer as coisas certas? 
Colegas, nesta encruzilhada é perigosamente fácil pensar que não há nada a fazer. Não caiamos na armadilha deste estado de espírito. Podemos forjar ainda um bom acordo. O nosso governo está de pé, com ideias e com a determinação de cultivar as duas formas de confiança necessárias para pôr fim ao drama grego: a vossa confiança em nós e a confiança do nosso povo na capacidade da Europa para produzir políticas que joguem a seu favor e não contra ele.

VAROUFAKIS entrevistado por Janice Turner no “The Times Magazine”/ The Interview People

Grande entrevista: as confissões, motivações e explicações de Varoufakis
Ele esclarece o casaco de couro e a gravata ausente: “Quem usa os melhores fatos Armani? Os mafiosos. Isso faz deles gente respeitável?”. Mas esse é o Varoufakis rock star, porque depois há o outro, governante de um país no purgatório - Tsipras avisou-o de antemão. “Disse-me: 'Ouve, vão tentar abater-te, abrir brechas entre nós, porque tu és a lebre. Se te atirarem abaixo, depois lançam-se a mim’.” Yanis Varoufakis, ministro grego das Finanças, concedeu esta entrevista no início de junho, mês que tem sido marcado pelo impasse nas negociações entre Atenas e as instituições europeias. “Quando aprender as maneiras dos políticos, demito-me. Por outras palavras, quando começar a mentir e a não chamar espada a uma espada, deixei de ser útil.” E tem um recado: “Quem se entusiasma com o poder político devia ser impedido de o ter”.
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O epicentro da crise económica europeia assenta numa suja rua secundária nas traseiras da Rua Oxford de Atenas. Dois cães vadios dormem no chão quente, à porta. Conduzida pela segurança lânguida até ao sexto andar, sento-me numa sala de espera com o ar condicionado avariado. Passa uma hora. Membros do staff, em calças de ganga e t-shirt, saem de uma sala de reuniões, a falar alto. Mas eu estou preparada para esperar. Para ser franca, estou até espantada que o ministro grego das Finanças, Yanis Varoufakis, tenha tempo para me receber.

A nossa entrevista estava marcada para Paris, no elegante Hotel du Collectionneur, junto ao Arco do Triunfo. Mas de repente recebi uma mensagem do assessor de imprensa do Governo do Syriza: “URGENTE-URGENTE; VIAGEM A PARIS CANCELADA DEVIDO A DESENVOLVIMENTOS MUITO GRAVES NAS NEGOCIAÇÕES". Varoufakis tinha de ficar em Atenas, enquanto o seu primeiro-ministro, Alexis Tsipras, voava para Bruxelas. A situação estava, para dizer o menos, fluida. 
Dois dias depois de nos encontrarmos, a Grécia devia fazer o seu primeiro pagamento de junho ao Fundo Monetário Internacional (FMI), no valor de 310 milhões de euros, iniciando uma série de reembolsos que totalizarão 13 mil milhões de euros até ao fim do mês. A Grécia já andou à cata de trocos no forro do sofá da nação. Hospitais, universidades e autarquias locais entregaram as suas reservas ao Governo; o Estado protela os pagamentos aos fornecedores, para ter dinheiro vivo. Depois de cinco anos de austeridade, a economia grega encolheu 25% e mantém-se em recessão; um quarto da população (e 60% dos jovens) está no desemprego.
Do que a Grécia precisa, do que espera neste carrossel pede-a-Pedro-para-pagar-a-Paulo da finança mundial, é de mais um empréstimo, de 7,2 mil milhões de euros, de resgate da chamada “troika” de instituições financeiras: FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia. Mas o dinheiro está a ser retido até a Grécia concordar em cumprir as exigências da troika: mais privatizações, mais cortes nas pensões e mais mudanças nas leis laborais que facilitem os despedimentos. Por outras palavras, mais austeridade, precisamente o que o Governo radical do Syriza foi mandatado para combater após a sua retumbante vitória eleitoral.  
As conversações, que oscilaram entre Riga, Berlim, Paris e Bruxelas, tornaram-se num jogo do sisudo. Quem pisca primeiro os olhos? Quem sorri primeiro? A Grécia, que se arrisca ao incumprimento, saindo do euro e mergulhando na completa depressão? Ou os eurocratas, que temem que o “Grexit”, a saída do país da Zona Euro, desestabilize a união monetária e que os gregos se encostem à Rússia? 
Conversa abertamente, interrompendo-se de dez em dez minutos para atender o telefone. A última chamada – “Olá, Larry!” – para falar com Larry Summers, o professor de Harvard e secretário do Tesouro de Clinton, é feita na casa de banho privada
Quando o adido de imprensa aparece, um homem grande e pesado vem com ele a abanar a cabeça. “A situação é terrível.” Mas o intelectual que acredita que um país falido de 11 milhões de habitantes pode levar a melhor sobre os alemães, que a economia radical pode derrotar o neoliberalismo, não parece aterrorizado. Yanis Varoufakis inclina-se para me cumprimentar, os olhos brilhantes.
Conversa abertamente, interrompendo-se de dez em dez minutos para atender o telefone. A última chamada – “Olá, Larry!” – para falar com Larry Summers, o professor de Harvard e secretário do Tesouro de Clinton, é feita na casa de banho privada. Varoufakis, 54 anos, não parece esmagado por ter às costas o destino da nação. À medida que me fala dos seus dias de 16 horas, de ter ido falar com Alexis Tsipras na véspera, às 20h, só tendo ido para casa à meia-noite, e quando diz que “estes últimos quatro meses parecem um século”, parece apenas excitado. Suspeito que o académico que há nele está entusiasmado por todo este material em primeira mão. Vai escrever um livro? “Claro que vou! Ha, ha!” 
Varoufakis descreveu-se a si mesmo como um “economista acidental” e diz agora que é um “político relutante”
E ele é, claro, o menos enfadado dos políticos. Quando lhe pergunto se, enquanto jovem assistente na Universidade de Essex  – onde a sua máxima “Subvertam o paradigma dominante” foi estampada em t-shirts pelos estudantes  – poderia imaginar-se ministro das Finanças, Varoufakis ri-se. “Nem há um ano poderia imaginar!” Na verdade, estava a trabalhar no Texas quando o Syriza o pôs nas listas. Não era membro do partido e continua a não o ser, ainda que nas eleições de janeiro tenha recolhido a maior votação de todos os candidatos apoiados pelo Syriza.
Varoufakis, apesar dos muitos livros que escreveu, descreveu-se a si mesmo como um “economista acidental” e diz agora que é um “político relutante”. É este o seu superpoder. Como professor, não conseguia perceber como alguém podia ambicionar ser chefe de departamento: “É tão rotineiro. Como é que se pode ambicionar isso, a menos que se seja um mau académico?”. “Da mesma forma, acredito em políticos relutantes. Uma pessoa que se entusiasme com o poder político devia ser impedida de o ter.”
Na primeira reunião do Governo do Syriza, conta, o novo primeiro-ministro disse: “Rapazes, lembrem-se: não queremos saber dos nossos gabinetes”. Varoufakis olha à sua volta, com as suas pinturas modernas, as plantas yucca, as estantes de livros de economia e uma ausência total de objetos pessoais, e depois ergue os braços do sofá magenta. “Não estou ligado a este gabinete, a este sofá. Quero dizer, se ficar sem eles amanhã, estou-me nas tintas. Isso, acho, é fundamental. Se começamos a sentir que perdemos a nossa posição ministerial – as sondagens estão a resvalar, meu deus, o Wall Street Journal não está a dizer grande coisa sobre mim, se calhar estou de saída –, se começamos a ralar-nos com isso, então muito depressa perdemos a força.”
Este Varoufakis recusa-se a aceitar que o seu caráter, as suas ideias ou o seu discurso extravagante tenham tido consequências mistas. A sua cabeça rapada, o seu ar sexy, o casaco de couro que vestia durante a sua digressão inaugural pelos líderes europeus e a moto com que anda sempre fizeram-no destacar-se como uma estrela rock entre os engravatados.
“A minha moto está lá em baixo”, diz. “Vim com ela de manhã. Comprei a minha primeira moto em 1978, em Colchester, e sempre tive moto desde então.” Mandou vender o BMW ministerial à prova de bala e no valor de 350 mil euros e usa um Toyota com seis anos para o levar ao aeroporto. “E sempre tive também casacos de couro”, acrescenta, embora neste calor de junho esteja de jeans e camisa roxa desabotoada. “Portanto, não sei porque deveria mudar só porque sou ministro das Finanças. É muito simples, no que me diz respeito. Quem usa os melhores fatos Armani? Os mafiosos. Isso faz deles gente respeitável?”
Mas o seu discurso aberto e rumores de mau feitio significaram que após a cimeira de Riga ele fosse rotulado de peso-leve diletante que impede qualquer acordo. Disse-se que Tsipras o tinha posto de lado ou que sairia em breve do Governo. Varoufakis respondeu no Twitter com uma citação de Roosevelt: “São unânimes no seu ódio por mim; e eu aprecio o seu ódio”. Foi a sua mensagem à comunicação social, que acusava de espalhar “propaganda negra”, e escolheu Roosevelt porque também se vê como autor de um New Deal. 
É função do ministro das Finanças ser um farol para os críticos, ser o polícia mau que fala grosso. Tsipras avisou-o de antemão. “Disse-me 'ouve, vão tentar abater-te, abrir brechas entre nós, porque tu és a lebre. Se te atirarem abaixo, depois lançam-se a mim'.” Não foi afastado das conversações, afirma; não estava nessa altura em Bruxelas porque o seu homónimo, o ministro alemão das Finanças, Wolfgang Schäuble, não tinha ido lá.
Varoufakis está refrescantemente livre do estilo treinado para os media de fugir às questões. Abre um livro de candura e eloquência. Quando lhe digo que ainda não aprendeu as maneiras dos políticos, diz com dramatismo: “Quando as aprender, demito-me. Por outras palavras, quando começar a mentir e a não chamar espada a uma espada, deixei de ser útil. Não acho que o mundo, e a Grécia de certeza, precise de mais um político que distorça a realidade. Eu não falei de mais, só falei verdade”.
Na sua eleição, causou furor ao declarar “sou o ministro das Finanças de um Estado na bancarrota”. Mas isto, afirma, é um simples facto. A Grécia não sofre de falta de liquidez - é insolvente. E não há empréstimo que a cure. “É como um amigo seu que não pode pagar a hipoteca da casa obtendo um novo cartão de crédito e dizendo que o problema está resolvido.”
Diz que recebe ameaças de morte desde a crise de 2010, quando se manifestou exaltado contra os resgates, contra os cleptocratas que esgotaram os fundos e contra a injustiça que é o grego comum sofrer pelo desgoverno dos banqueiros. 
O que é preciso, reclama Varoufakis, não é só investimento na Grécia, mas generosidade de espírito. Fala do famoso “discurso da esperança” feito pelo secretário de Estado norte-americano James Byrnes à Alemanha em 1946, como prelúdio do Plano Marshall. Foi a declaração da América de que desejava a paz com o seu inimigo derrotado; de que a Alemanha tinha o direito de voltar a ser próspera à custa de trabalho esforçado. O discurso de esperança da Grécia, declara, deve ser feito por Angela Merkel.
Quando negoceia, mantém presente vários gregos que lhe exemplificam os males do país: pensa num casal de empresários que conheceu e que tenta erguer das cinzas uma start-up arrasada pelo sistema fiscal; lembra-se de um homem de quarenta e muitos anos que veio servir de tradutor quando Varoufakis deu uma entrevista a um jornal espanhol - antigo professor de línguas com família, vive agora na rua. “Disse-me: 'apoio-o, mas não pode fazer nada por mim. Estou feito. Acabado. Faça qualquer coisa é pelos que estão à beira do precipício e ainda não caíram'.”
Depois, numa noite em que foi beber um copo com a mulher, a artista Danae Stratou, ao bairro rico de Kolonaki, em Atenas, viu “uma idosa muito bonita, dos seus oitenta, muito limpa e bem arranjada, sentada num banco de jardim”. Veio a saber que era uma burguesa que vivia num dos apartamentos da zona e que se tinha tornado numa sem-abrigo. “Passa ali a noite e quem a conhece toma conta dela.”
E depois há os seus antigos alunos da Universidade de Atenas. Antes da crise, faziam fila à porta do seu gabinete para pedir recomendações para os mestrados. Depois de 2010 pediam-lhe referências para irem trabalhar para o estrangeiro. Ele próprio se juntou à fuga de cérebros, em 2012, saindo para os Estados Unidos desencantado com o desfazer do seu departamento e com o corte no salário, que significava que não podia apoiar a filha, Xenia, que desde 2005 vive com a sua ex-mulher, a académica Margarite Poulos, em Sydney.
Embora seja um político recente, Varoufakis foi criado num ambiente muito politizado. O seu pai, Giorgos, que subiu a pulso até se tornar presidente da maior siderurgia grega, lutou do lado dos comunistas na guerra civil; a sua mãe, bioquímica, era militante feminista. O pai foi preso uns tempos pela junta militar que deteve o poder na Grécia no final dos anos 60, princípio da década de 70 do século passado; o tio esteve preso vários anos. “Lembro-me de a porta ser arrombada ao pontapé pela polícia secreta”, recorda Varoufakis. À noite, a família juntava-se em segredo a ouvir a BBC, cuja emissão estava proibida.
Saiu para estudar em Inglaterra com 17 anos - ficando por lá até aos 27 - e foi-lhe difícil transmitir aos amigos britânicos o horror de viver em ditadura. Está à vontade no Reino Unido e cita os Monty Python nos seus discursos perante os (provavelmente intrigados) alemães. Está, no entanto, surpreendido com a urgência dos britânicos em deixar a União Europeia. “Acho que há um bocado de paranoia na Grã Bretanha. Estão à procura de um bode expiatório.” Um dos seus melhores amigos na política internacional é Norman Lamont. “Dou-me melhor com os Conservadores do que com a esquerda, o que me cria uma grande dose de angústia existencial.”

Deve conhecer a visão popular no norte da Europa de que, por muito lamentável que seja a provação do povo grego, a sua miséria é autoinfligida. A evasão fiscal na Grécia é endémica, a política suja, a idade de reforma baixa, o sector público hiperdimensionado — e isto endurece os corações. “São grandes mentiras baseadas numa miríade de pequenas verdades”, diz Varoufakis. “A imunidade fiscal para os poderosos, a corrupção, uma oligarquia que gere tudo mal… Sim, montes de coisas mal feitas. Isso é assim desde 1827, quando o Estado grego moderno foi criado.” Mas, argumenta, o Estado grego vive dentro das suas possibilidades no que toca a salários e pensões - só está paralisado pelas dívidas. E os atuais problemas da Grécia vêm da própria entrada do país na Zona Euro: “A crise que tivemos nos últimos sete anos não teria simplesmente existido. Em 2008, teríamos tido uma pequena correção, mais ou menos como a Bulgária. E nos últimos três ou quatro anos temos crescido muito rapidamente.”
“São grandes mentiras baseadas numa miríade de pequenas verdades”, diz Varoufakis, referindo-se às acusações de que a evasão fiscal na Grécia é endémica, a política suja, a idade de reforma baixa, o sector público hiperdimensionado
Onde o Syriza concorda com a troika é na necessidade de uma reforma fiscal. Mas, dos bancos da Grécia, já foram tirados milhares de milhões de capital, levado para o estrangeiro ou disperso de outras formas. Os ricos não vão fugir? “É deixá-los ir”, diz Varoufakis com um gesto vago. “Eles já foram, de qualquer forma - o seu dinheiro está em Londres ou nas Ilhas Caimão. Por isso, acho que nos desenvencilhamos sem eles. O que precisamos de fazer é travar este regime que perpetua e reproduz as coisas más.”
“Destruição. Completa destruição”. (...) “Não sobraria nada; voltava tudo à Idade da Pedra. Por isso não estou preparado para realizar essa experiência de nos libertarmos do euro. Acho que temos de consertar o euro”, refere Varoufakis
Mas e quanto àqueles que dizem que a Grécia mascarou as dívidas para atingir os critérios de entrada no euro? “Acredita mesmo que os europeus são tão facilmente enganados?”, exclama. “Que lhes mentimos e nos safámos? Dizer que os governos gregos da época conseguiram mentir para entrar é simplesmente desonesto.”  “Claro” que a Grécia “não devia ter entrado no euro”, mas uma vez que a sua situação é integralmente causada por essa entrada, cabe à Europa resolver a crise resultante.
Não sente, após meses de negociações, que a Alemanha e a Grécia são simplesmente irreconciliáveis? “Sou um otimista”, diz. O que mais o desapontou nas conversações, depois de anos de universidade, é a falta de rigor e superficialidade dos debates. Dez minutos para cada, “burocratas não eleitos falam na perspetiva das suas instituições e depois passamos horas a discutir o comunicado final”.

Wolfgang Schäuble tem sido o mais firme opositor da Grécia, insistindo em medidas de austeridade, mas Varoufakis diz que o prefere a outros negociadores com duas faces. “Gosto das nossas reuniões, porque ele também chama espada a uma espada. Por isso, quando falamos, é tudo muito civilizado, cheio de respeito mútuo – discordamos, mas sei que posso acreditar no que ele me diz.”

No turbilhão de especulações sobre as intenções do Syriza, há uma teoria de que Varoufakis, que escreveu livros sobre a teoria dos jogos, está secretamente a trabalhar num plano B - a saída da Grécia do euro. Mas ele rejeita isto com veemência: “Não tenho mandato para empobrecer mais um milhão ou dois de gregos, para fazer uma experiência social, pôr quatro milhões de pessoas a viver abaixo da linha de pobreza, só para ver em quanto tempo recuperamos mais tarde”.

Não seria como o seu amigo Norman Lamont a assobiar no duche depois de ter retirado a libra do mecanismo de câmbio europeu. Levaria um ano à Grécia para criar uma nova moeda.  “Imagine se a Grã Bretanha anunciasse com um ano de avanço que ia desvalorizar a libra. Destruição. Completa destruição. Toda a gente se punha a vender e a retirar todo o capital do Reino Unido. Não sobraria nada; voltava tudo à Idade da Pedra. Por isso não estou preparado para realizar essa experiência de nos libertarmos do euro. Acho que temos de consertar o euro.”

O Syriza estabeleceu muitas “linhas vermelhas” nas negociações. Mas quais são as suas próprias? “Eu só não quero dar muita importância ao facto de ser político e ainda menos de ser ministro. Não vou negociar a minha integridade para manter este cargo.” Demitir-se-ia, declara, se não fosse capaz de libertar a Grécia do seu eterno ciclo empréstimo-pagamento-austeridade.

Mas avisa com ar soturno: se a Grécia for à bancarrota e deixar o euro, se o país mergulhar no passado, o governo do Syriza não será substituído pelos velhos partidos centristas que falharam, mas pela Aurora Dourada, o partido neonazi grego. “Este é um país que lutou com unhas e dentes contra os nazis. Os três países europeus que tiveram uma maior percentagem de baixas no combate aos nazis foram a Rússia, a Jugoslávia e a Grécia. Um movimento nazi indígena na Grécia é uma afronta à nossa História.” Mas a combinação da implosão económica e da humilhação nacional  – “como vocês, europeus, dizem, os gregos são um caso perdido de aldrabões do fisco e preguiçosos, não é?” – pode levá-la ao poder.
E para onde iria Varoufakis? “De volta para a universidade”, diz, encolhendo os ombros. Sente falta de ter tempo para ler e de correr na rua sem ser detido por cidadãos que querem contar-lhe as suas histórias pessoais. (Diz-me que está morto por ir ao ginásio: “Limpa-me a cabeça como mais nada”) Com a sua bela Danae, ainda come em esplanadas de Atenas sem seguranças, mesmo depois do incidente de abril em que foi cercado e ameaçado por anarquistas. Embora nos dias que correm tenha muito pouco tempo para gozar o seu pequeno barco e outros prazeres da vida. Depois de uma sessão fotográfica para a “Paris Match” de que hoje se arrepende, foi criticado por ousar comer peixe no seu terraço durante a crise. “Não sou católico - não acredito no purgatório e na autoflagelação. As pessoas dizem-me, 'Foste apanhado a beber vinho'. E daí?”
Entretanto, o telefone toca. Em Bruxelas e Berlim e Washington, banqueiros e burocratas dão voltas à cabeça para saberem como lidar com este político relutante que continua a subverter o paradigma dominante, porque ele e o seu país sentem que têm tudo a perder.