Foi assim que aconteceu quando abri o “Público” de 14 de Junho, e me deparei com a série de julgamentos: “Um revolucionário de corpo inteiro”; “um combatente político”; “um lutador pela liberdade”; “muito coerente”; “homem muito inteligente”; “homem de cultura”; “um homem grande”; “antifascista”. “Um sedutor”; “progressista de vistas curtas”; “maquiavélico”; “incoerente”; “manipulador”; “admirador da grande revolução conduzida por Lenine, mas também das misérias que vieram com Estaline, Krutchov, Brejnev...”
Honestamente talvez não se possa dizer que alguém se enganava. Provavelmente cada um, a partir da sua própria esfera de consciência estava razoavelmente certo. Mas para além de todos os juízos, eventualmente de altíssima qualidade, que não é isso que está em causa, haveria algo de objectivo que valesse a pena compreender? Esta pergunta lembrava-me a conversa com um amigo marroquino, incompreensivelmente comunista, e tinha a certeza que aqui o fundamental estava por dizer.
Pois quer-me parecer que é possível – apesar de muitíssimo difícil – viver-se uma vida em integridade com o núcleo de consciência mas íntima, mais âmago de nós próprios. Julgo que o cerne das coisas e de nós mesmos nos passa despercebido. Mas que se o procuramos e se o encontramos e o agarramos – ou aprendemos a deixar-nos agarrar por ele –, no evoluir dessa integridade do cerne de nós mesmos, desenvolve-se um novo sentido, que não é nenhum dos sentidos comuns, nem o da análise racional, mas poder-se-ia dizer que é uma percepção directa da vida. A percepção de um sentido da vida, que se revela para o próprio um sentido universal da vida. Uma vivência que confere uma energia e uma inteireza totalmente novas.
Muitos homens e mulheres ao longo da História deram provas de uma notável capacidade de entrega em esquecimento de si próprios e dos seus interesses pessoais, em serviço aos outros, realizada a partir de uma percepção mais ou menos directa do sentido universal da vida, no cerne da sua consciência. Uns viram-no como justiça, ou como bem ou como verdade. Outros conceberam-na como um Deus, ou um Logos.
Eu sou ateu, porque nem podia ser de outra maneira, e não me interessa a metafísica. O neurocientista António Damásio, procura explicar como todas estas coisas se passam no interior do nosso cérebro, a meu ver sem lhe retirar, nem realidade, nem grandeza, ou beleza.
Marx compreendeu este sentido colectivo universal da vida como o sentido da História, a dirigir-se para o Homem Novo. Lenine também, e procurou ser o intérprete desse sentido. E Darwin nas suas investigações viu na natureza um sentido inerente, tendente para a vida e para a evolução. Damásio vê essa evolução como uma grande viagem para a criação da consciência, e está convencido que a consciência não é o fim último da evolução da natureza.
Ora, a meu ver se por um lado é possível encontrar essa percepção directa do fulcro da vida (apesar de me parecer muito raro e difícil), enquanto realidade vibrante e sem conceitos, por outro lado isso passa sempre por um processo lento de auto-revolução pessoal que para muitos nunca chega ao fim. É que, somos todos tendencialmente ultra-conservadores e egocêntricos e irracionalmente não estamos interessados em abrir mão do passado e do nosso egoísmo estrutural.
Acontece que para fazermos algo e sobretudo para comunicarmos, temos de formar concepções em torno desse sentido das coisas. Enfim, temos de pensar. E assim formamos ideias, conceitos, estruturas de pensamento e até doutrinas. Até aqui não vejo mal nenhum. Pelo contrário. Mas o problema acontece quando se confunde a percepção directa da realidade interior com a ideia que se formou (o que é muito vulgar!). E então a ideia deixa de se formar a partir da relação entre a nossa realidade interior e a realidade factual. E então deixamos de actualizar a compreensão pessoal do nosso sentido da vida (deixamos de permitir que uma verdade seja substituída por outra) e cristalizamos em torno de um sistema de ideias, que acabam por se tornar ultrapassadas e portanto, falsas. É uma espécie de esclerose. Deixa-se de viver da realidade e passa-se a viver da ideia – fossilizada mas muito poderosa.
Suponho que foi isso que aconteceu com as religiões, com os absolutismos e com os fundamentalismos. E com todos aqueles que mataram, torturaram e perseguiram para impor ou para defender a sua verdade.
Poucos foram os que, como o poeta americano Walt Whitman – também ateu –, foram capazes de: a) não só abrirem-se ao seu próprio âmago e de manterem no seu comportamento de vida uma integridade com a percepção nuclear do sentido da vida, mas também b) renovar essa percepção através de uma contínua renovação e aprofundamento da vida de acções e da dinâmica da vida em si mesmos e em seu redor. Isto, para que c) esse sentido da vida não seja apenas uma ideia utópica, mas sim uma realidade objectiva e vivente, em auto-realização. Para que para aquele que a viveu, e para toda a espécie humana, essa vida tenha valido a pena viver. E desse modo se possa dizer como Walt Whitman: “Enquanto a ti, morte, e a ti, amargo abraço da mortalidade, é inútil tentarem alarmar-me”.