Artigo de Rui Ramos, historiador. (Público de 2006-09-06)
Foi há cinco anos. Lembram-se? Fomos então todos americanos, ou pelo menos era assim que se dizia. No princípio do mês passado, em Londres, o slogan da manifestação anti-israelita era outro: “We are all Hezbollah now.” Estava lá, vi-os desfilar. Não eram os personagens barbudos ou velados que associamos à militância islâmica. Podiam ter-se limitado a negar a Israel o direito a defender-se perante a ofensiva iraniana. Mas não, quiseram ir mais longe: “Hoje somos todos do Hezbollah.” Nessa noite, na televisão, ouvi os seus representantes perfilhar os argumentos de Ahmadinejad para defender a opção nuclear do Irão. Não confiam em Tony Blair, mas acreditam piamente na palavra do Presidente iraniano.
Chegou a altura de os jornais e as revistas começarem a pingar sabedoria sobre os “erros”, a começar pela remoção de Saddam Hussein em 2003, que teriam comprometido a suposta harmonia pró-americana de Setembro de 2001. Em toda
esta história, há, de facto, um erro: o de pressupor que é possível suspender as nossas desavenças políticas, mesmo em nome de qualquer coisa como a defesa da civilização ocidental. Pelo contrário, nos países ocidentais mais comprometidos na chamada “guerra ao terror”, esta transformou-se no principal pretexto de polémica e debate. No Reino Unido, por exemplo, mais do que a reforma dos sistemas públicos saúde ou educação, é a política para o Médio Oriente que tem servido aos adversários de Blair, à esquerda e à direita, para o isolar e demolir. Até os conservadores passaram a criticar os EUA e Israel, logo que perceberam que era aí que estava o ponto fraco do Governo trabalhista.
Os conservadores ingleses, apesar de tudo, provaram que é possível criticar a Admnistração americana sem chegar ao “hoje somos todos do Hezbollah”. Porque é que a esquerda contestatária e revolucionária britânica passou essa linha? A chamada ‘extrema-esquerda” ocidental, depois da falência intelectual do marxismo e do desaparecimento do “movimento operário”, tentou reconstituir-se como um albergue para quem sente impulsos militantes no que diz respeito aos direitos das mulheres e das minorias, ou a velhas causas como o secularismo, o pacifismo ou o ecologismo. Como se sentirão agora feministas, militantes gays, e pacifistas na companhia de um movimento que nega os direitos das mulheres e dos homossexuais, prega a teocracia, e cultiva a guerra e o martírio? Foi o que se perguntou Sarah Baxter, uma militante pacifista e feminista da década de 1980, no Sunday Tiines, ao ver as suas antigas camaradas desfilar com as tabuletas do Hezbollak
Na Grã-Bretanha, uma parte da extrema-esquerda parece tentada a servir-se dos militantes islâmicos como um sucedâneo para as massas revolucionárias que a sociedade ocidental deixou de produzir. Em Londres, nas últimas eleições legislativas a coligação Respect, de George Gafloway, explorou isso: graças ao lastro da votação islamista, velhos marxistas elegeram um deputado pela primeira vez. Ajudou-os muito, de resto, o facto de a candidata oficial do Partido Trabalhista ser de origem judaica. Como contrapartida, Gailoway passou de socialista milionário a “cheer leader”do Hezbollah na imprensa inglesa. Aqueles que exigem liberdade de expressão, direito ao aborto, e diversidade de sexual condenam as sociedades onde há essa liberdade e direitos, e dão a mão a movimentos que condenam tudo isso como pecado e sacrilégio.
Alguns, como Baxter, detectam aqui uma contradição bizarra. Outros, como John Gray ou Paul Berman, uma filiação subtil: o radicalismo islâmico, no fundo, seria apenas o resultado da importação árabe do velho radicalismo ocidental. Duvido que esta filiação seja exacta, e parece-me que há aqui mais do que unia simples contradição. No fundo, precisamos de ver a esquerda contestatária ocidental, tal como o seu equivalente à direita; a uma nova luz, para além do discurso que esses extremistas têm sobre si próprios. Se o “somos todos do Hezbollah” é meramente táctico, por que não entender as outras causas que actualmente identificam a extrema-esquerda e a extrema-direita da mesma maneira: corno bandeiras que os extremistas usam e podem trocar por outras, conforme o seu potencial revolucionário?
A esse respeito, a história de David Myatt, queo Times de Londres divulgou em Abril deste ano, é ilustrativa. Myatt era o líder de uma das mais violentas organizações
neonazis britãnicas , de onde saiu o bombista que em 1999 procurou atingir frequentadores homossexuais dos pubs de Soho, matando três. Hoje, Myatt dá pelo nome de Abdul Aziz Ibn Myatt. O neonazi explica a sua conversão, argumentando que o islão, tal como ele o entende, é hoje a única força capaz de atingir os alvos que, enquanto nazi, já eram os dele: o capitalismo, a democracia e a “corrupção” dos costumes. Myatt convenceu-se que a “nação” e a “raça”, na medida em que já não incutem nos indivíduos uma razão para matar e morrer, nem despertam simpatia na sociedade, deixaram de servir para criar uma “situação revolucionária” no Ocidente. Só o islão, segundo Myatt, pode desempenhar essa função. Não há aqui qualquer contradição, nem é necessário imaginar filiações espúrias entre os credos. O objectivo, para Myatt, é o mesmo, só os meios mudaram (há um livro sobre o assunto: George Michael, The Enemy of my Enemy. The Alarming Convergence of Militant Islam and the Extreme Right, University of Kansas Press, 2006).
Quando veremos gente, à esquerda, a perceber o mesmo, e trocar abertamente a velha “classe operária” e as “minorias” dos últimos tempos pela nova força anti-sistema identificada por Myatt no islamismo? Em França, o velho estalinista Roger Garaudy já abriu o caminho, com a sua conversão ao islão e um livro a negar o Holocausto. Foi um best-seller quando traduzido em árabe. Para alguns dos cidadãos do Ocidente, dado o ódio que lhes inspira a sociedade em que vivem, faz todo o sentido “ser do Hezbollah”.
Foi há cinco anos. Lembram-se? Fomos então todos americanos, ou pelo menos era assim que se dizia. No princípio do mês passado, em Londres, o slogan da manifestação anti-israelita era outro: “We are all Hezbollah now.” Estava lá, vi-os desfilar. Não eram os personagens barbudos ou velados que associamos à militância islâmica. Podiam ter-se limitado a negar a Israel o direito a defender-se perante a ofensiva iraniana. Mas não, quiseram ir mais longe: “Hoje somos todos do Hezbollah.” Nessa noite, na televisão, ouvi os seus representantes perfilhar os argumentos de Ahmadinejad para defender a opção nuclear do Irão. Não confiam em Tony Blair, mas acreditam piamente na palavra do Presidente iraniano.
Chegou a altura de os jornais e as revistas começarem a pingar sabedoria sobre os “erros”, a começar pela remoção de Saddam Hussein em 2003, que teriam comprometido a suposta harmonia pró-americana de Setembro de 2001. Em toda
esta história, há, de facto, um erro: o de pressupor que é possível suspender as nossas desavenças políticas, mesmo em nome de qualquer coisa como a defesa da civilização ocidental. Pelo contrário, nos países ocidentais mais comprometidos na chamada “guerra ao terror”, esta transformou-se no principal pretexto de polémica e debate. No Reino Unido, por exemplo, mais do que a reforma dos sistemas públicos saúde ou educação, é a política para o Médio Oriente que tem servido aos adversários de Blair, à esquerda e à direita, para o isolar e demolir. Até os conservadores passaram a criticar os EUA e Israel, logo que perceberam que era aí que estava o ponto fraco do Governo trabalhista.
Os conservadores ingleses, apesar de tudo, provaram que é possível criticar a Admnistração americana sem chegar ao “hoje somos todos do Hezbollah”. Porque é que a esquerda contestatária e revolucionária britânica passou essa linha? A chamada ‘extrema-esquerda” ocidental, depois da falência intelectual do marxismo e do desaparecimento do “movimento operário”, tentou reconstituir-se como um albergue para quem sente impulsos militantes no que diz respeito aos direitos das mulheres e das minorias, ou a velhas causas como o secularismo, o pacifismo ou o ecologismo. Como se sentirão agora feministas, militantes gays, e pacifistas na companhia de um movimento que nega os direitos das mulheres e dos homossexuais, prega a teocracia, e cultiva a guerra e o martírio? Foi o que se perguntou Sarah Baxter, uma militante pacifista e feminista da década de 1980, no Sunday Tiines, ao ver as suas antigas camaradas desfilar com as tabuletas do Hezbollak
Na Grã-Bretanha, uma parte da extrema-esquerda parece tentada a servir-se dos militantes islâmicos como um sucedâneo para as massas revolucionárias que a sociedade ocidental deixou de produzir. Em Londres, nas últimas eleições legislativas a coligação Respect, de George Gafloway, explorou isso: graças ao lastro da votação islamista, velhos marxistas elegeram um deputado pela primeira vez. Ajudou-os muito, de resto, o facto de a candidata oficial do Partido Trabalhista ser de origem judaica. Como contrapartida, Gailoway passou de socialista milionário a “cheer leader”do Hezbollah na imprensa inglesa. Aqueles que exigem liberdade de expressão, direito ao aborto, e diversidade de sexual condenam as sociedades onde há essa liberdade e direitos, e dão a mão a movimentos que condenam tudo isso como pecado e sacrilégio.
Alguns, como Baxter, detectam aqui uma contradição bizarra. Outros, como John Gray ou Paul Berman, uma filiação subtil: o radicalismo islâmico, no fundo, seria apenas o resultado da importação árabe do velho radicalismo ocidental. Duvido que esta filiação seja exacta, e parece-me que há aqui mais do que unia simples contradição. No fundo, precisamos de ver a esquerda contestatária ocidental, tal como o seu equivalente à direita; a uma nova luz, para além do discurso que esses extremistas têm sobre si próprios. Se o “somos todos do Hezbollah” é meramente táctico, por que não entender as outras causas que actualmente identificam a extrema-esquerda e a extrema-direita da mesma maneira: corno bandeiras que os extremistas usam e podem trocar por outras, conforme o seu potencial revolucionário?
A esse respeito, a história de David Myatt, queo Times de Londres divulgou em Abril deste ano, é ilustrativa. Myatt era o líder de uma das mais violentas organizações
neonazis britãnicas , de onde saiu o bombista que em 1999 procurou atingir frequentadores homossexuais dos pubs de Soho, matando três. Hoje, Myatt dá pelo nome de Abdul Aziz Ibn Myatt. O neonazi explica a sua conversão, argumentando que o islão, tal como ele o entende, é hoje a única força capaz de atingir os alvos que, enquanto nazi, já eram os dele: o capitalismo, a democracia e a “corrupção” dos costumes. Myatt convenceu-se que a “nação” e a “raça”, na medida em que já não incutem nos indivíduos uma razão para matar e morrer, nem despertam simpatia na sociedade, deixaram de servir para criar uma “situação revolucionária” no Ocidente. Só o islão, segundo Myatt, pode desempenhar essa função. Não há aqui qualquer contradição, nem é necessário imaginar filiações espúrias entre os credos. O objectivo, para Myatt, é o mesmo, só os meios mudaram (há um livro sobre o assunto: George Michael, The Enemy of my Enemy. The Alarming Convergence of Militant Islam and the Extreme Right, University of Kansas Press, 2006).
Quando veremos gente, à esquerda, a perceber o mesmo, e trocar abertamente a velha “classe operária” e as “minorias” dos últimos tempos pela nova força anti-sistema identificada por Myatt no islamismo? Em França, o velho estalinista Roger Garaudy já abriu o caminho, com a sua conversão ao islão e um livro a negar o Holocausto. Foi um best-seller quando traduzido em árabe. Para alguns dos cidadãos do Ocidente, dado o ódio que lhes inspira a sociedade em que vivem, faz todo o sentido “ser do Hezbollah”.
Historiador