2018-04-11

Controlada por uma seita, abusada pelo pai e afastada dos filhos — esta é a história de Rachel Jeffs

É uma história de horror. Não é na Arábia Saudita ou numa tribo do Afeganistão, é nos EUA.
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link:  https://nit.pt/coolt/livros/controlada-seita-abusada-pai-historia-rachel-jeffs          Texto Andreia Costa  03/04/2018
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Foi educada na poligamia e o líder mórmon, o pai, era um dos mais procurados pelo FBI. “Filha do Profeta” conta tudo e a NiT mostra-lhe um capítulo em exclusivo.
O Pai (é assim, com letra maiúscula, que é referido) controlava tudo, desde os nomes e a educação dos miúdos — mesmo os que não eram dele — àquilo que os maridos podiam ou não praticar com as inúmeras mulheres na intimidade. Pior do que tudo isso era o que fazia na sua própria família: começou a abusar da filha Rachel quando ela tinha oito anos e casou com crianças de 12. 

Warren Jeffs, líder da Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (um culto dentro da igreja mórmon), fazia parte da lista das dez pessoas mais procuradas pelo FBI. Foi condenado a prisão perpétua mas, mesmo preso, continua a controlar   o que se passa na sua seita poligâmica.

Rachel com os filhos (fotos de editora Planet  

Rachel Jeffs, uma de 53 filhos, conseguiu fugir e decidiu contar a sua experiência em “Filha do Profeta” 

Em miúda, o pai levava-a a bibliotecas para lhe mostrar pornografia e depois recriar com ela as imagens; conheceu o marido na véspera casamento e dividiu-o com esposas-irmãs, que não gostavam  dela e lhe trancavam os filhos em closets escuros; acusada de crimes falsos, foi enviada para casas de refúgio e afastada da família; a própria mãe foi considerada indigna quando lhe diagnosticaram cancro.
As histórias macabras e surreais sucedem-se nas cerca de 300 páginas deste livro. A NiT mostra-lhe, em exclusivo, um dos capítulos de “Filha do Profeta"                                                                                      
12. Terra de Refúgio
“Assim que fiquei apta a viajar, o Rich levou-me e ao nosso novo bebé de volta ao R23. Depois de cinco semanas no R17, no Texas, com a família do Pai, estava ansiosa por partir. Senti-me mal pelos meus irmãos e irmãs, que tinham de viver lá, rodeados de stress e do medo de serem expulsos à mínima infracção.
Mas a distância pouco fez para nos livrar do controlo do Pai. Quando ele deu o nome de Martha à minha segunda filha, eu disse ao Rich:
– Gostava tanto que pudéssemos ser nós a dar nomes aos nossos bebés. O Pai dá-lhes nomes tão feios e antiquados.
(A mãe do Rich chamava-se Martha.)

– Não digas isso, Rachel. É um privilégio ter o teu Pai a escolher os nomes para os nossos filhos. É o Pai do Céu que o inspira e devias sentir-te grata.
Graças ao antibiótico que a parteira me deu, desenvolvi uma infecção fúngica grave, chamada candidíase, que fez com que os meus mamilos inchassem de forma dolorosa e começassem a sangrar. Por isso, tornou-se difícil amamentar a minha recém-nascida. A intervenção médica não era uma opção, já que era suposto que nos mantivéssemos escondidos do mundo exterior e o Pai dizia que os médicos estavam guardados apenas para situações de vida ou de morte (e mesmo aí, como provara com a doença da minha mãe, podia ser que ele não permitisse). Em vez disso, devíamos rezar a Deus pela cura.
O Rich ficou contente por eu não poder dar de             Com o marido, Rich          mamar, porque em Fevereiro o Pai tinha dado formação aos homens em «moral celestial» e tinha-lhes dito que nunca deveriam ter relações sexuais com uma mulher que estivesse grávida ou             
a amamentar. O Rich encorajou-me a alimentar a Martha com                 
biberão. 
A minha infecção durou vários meses, até que o Rich pediu a um dos homens que ia a Short Creek para pedir Diflucan a uma das enfermeiras certificadas que trabalhavam no Centro de Saúde de Hildale. O Diflucan acabou com a infecção mas nunca mais pude amamentar a minha bebé, porque tinha perdido o leite.
A nossa família vivia num apartamento no armazém com uma pequena cozinha/zona de refeições, uma pequena sala de estar e quatro quartos. O Rich pôs-me no quarto junto ao dele, e tanto a Susan como a Molly tinham os seus próprios quartos. A Trish ainda estava em Short Creek, mas tínhamos as duas filhas dela connosco, o que significava que todas as mulheres tinham duas ou mais crianças a partilhar os quartos.
As minhas esposas-irmãs estavam cada vez mais ciumentas. Elas pensavam que como não estava a amamentar eu e o Rich tínhamos sexo todas as vezes que estávamos sozinhos. Por causa disso, estavam sempre a inventar formas 
criativas de se vingarem de mim e das minhas filhas. Por vezes, o Rich levava-me com ele para tratar de recados para o meu Pai e dizia-me para deixar em casa a Barbie, que ainda não tinha dois anos. Quando voltava, via que a tinham deixado por sua conta durante a minha ausência. Ela tinha de se vestir sozinha e perceber como se limpar quando sujava as calças. Os sinais não deixavam margem para dúvidas: ela tinha um ar desgrenhado e o meu quarto e casa de banho estavam uma confusão.
Ficava furiosa, mas não havia nada que pudesse fazer. O Rich dizia-me apenas:
– Ama e perdoa as tuas esposas-irmãs. É a única maneira de ajudar a Barbie.
Quando não estávamos a competir pela atenção do Rich, todas nós aprendemos muito sobre sobrevivência durante aqueles primeiros anos no Dakota do Sul. A nossa água tinha de ser transportada de uma cidade distante e havia alturas em que o camião se avariava e chegávamos a passar dois dias sem água. No Inverno, juntávamos neve em panelas e derretíamo-la para termos água para limpar e cozinhar. Fez-me perceber quão ingrata tinha sido sempre em relação ao luxo de ter água corrente.
As quatro passávamos muito tempo a coser roupas para a nossa família. De início tudo parecia bastante terrível e amador, mas lá acabámos por aprender a coser depressa e bem. Até nos divertíamos ao fazê-lo, desde que o Rich não estivesse por perto, para nos tornar a todas ciumentas.
O Rich estava encarregue do armazém e pediu-me para gerir os registos do inventário e a contabilidade. Aprendi sozinha a usar o QuickBooks para registar tudo. Também me pôs na estufa, onde eu semeava sementes e colhia as plantas de flores, frutos e vegetais para o nosso jardim. Não percebia muito do assunto, mas aprendi através da tentativa e erro  e           Com três das esposas-irmãs                             de todos e quaisquer livros que encontrasse sobre o assunto.
As minha esposa-irmã Molly mugia as vacas e tomava conta das galinhas. Levava muitas vezes as crianças com ela para a ajudar a dar comida e levar a cabo outras tarefas relacionadas com os animais. Elas gostavam muito.
Isto revelou-se uma bênção, uma vez que no início de 2005 o Pai nos enviou uma revelação de que o Senhor não queria que as crianças tivessem qualquer tipo de brinquedo. Ele disse que Deus considerava as bonecas uma paródia da Sua imagem e um ídolo. Bicicletas, skates, jogos – qualquer coisa divertida ou que as mantivesse entretidas era vista como obra do diabo.
[…]
A única coisa que nos restava para fazer era trabalhar, e havia trabalho de sobra, mesmo que fosse só para assegurar que tínhamos tudo aquilo de que precisávamos, incluindo medicamentos. Cultivávamos todas as ervas que o clima do Dakota do Sul permitia. Quando as crianças adoeciam, fazíamos-lhes chás de ervas e desenvolvíamos os nossos remédios naturais para as curarmos. Certo dia, enquanto fui a uma reunião geral, deixei as minhas filhas com a minha irmã Melanie, que agora vivia lá. A Melanie irrompeu pela reunião, com a Martha ao colo, que gritava sem parar. A minha irmã tinha adormecido enquanto a pequena Martha saltava na cama. Ela tinha saltado para fora da cama, aterrado num aquecedor e o pé ficara preso. A Melanie acordou quando ouviu os gritos da Martha.
Agarrei na minha filha e corri para a casa de banho, para pôr o pé dela debaixo de água fria. Assisti à pele dela a cair do pequeno tornozelo e da parte de baixo do pé.

As outras mulheres trancavam uma das filhas de Rachel um closet o dia todo

A Melanie sentiu-se culpada e ajudou-me a cuidar da Martha. Fiz-lhe um unguento com ervas e mudava-lho a cada cinco horas. Por sorte, passados dois dias já a Martha andava e as queimaduras sararam tão bem que quase não deixaram cicatrizes, embora ela tenha perdido a sensibilidade em algumas zonas por causa da gravidade dos ferimentos em certas terminações nervosas.
A maior parte das mulheres da igreja ficava de esperanças quando o filho mais novo tinha cerca de um ano. Mas depois da Martha não fui capaz de engravidar, o que fez as minhas esposas-irmãs ficarem ainda mais ciumentas e mais inclinadas a acharem que eu e o Rich andávamos a ter sexo a toda a hora. (Não andávamos.) Comecei a ficar desesperada por engravidar, nem que fosse porque não queria que estivessem todos zangados comigo. As esposas também estavam zangadas com o Rich e ele começou a passar cada vez menos tempo comigo para lhes agradar.

Entretanto, os problemas do Pai agravavam-se. Em Junho de 2005, as autoridades agiram por fim contra ele. Um grande júri do condado de Mohave, no Arizona, acusou-o de má conduta sexual com uma menor, de conspiração para cometer má conduta sexual com uma menor e de arranjar um casamento plural entre uma adolescente e um homem mais velho. Nesse mesmo mês, procuradores federais acusaram-no de fuga ilícita para evitar a acusação. O procurador-geral do Utah pediu a um juiz para congelar os bens da igreja, que ascendiam a mais de 100 milhões de dólares. Durante anos a igreja deteve e operou uma série de negócios, incluindo construção e usinagem, que resultaram em enormes receitas usadas para financiar a compra e construção das várias terras de refúgio e outras propriedades da igreja. Em Julho, o Utah e o Arizona juntaram-se para anunciar em conjunto uma recompensa de 10 mil dólares por inf. que levasse à detenção do pai.
Em Novembro, o irmão mais novo do Pai, Seth, foi mandado parar no Colorado, com mais de 140 mil dólares em dinheiro, cartões de telefone pré-pagos e cartões de crédito, e molhos de cartas dirigidas ao Pai, fosse como «Warren Jeffs» ou como «O Profeta». Seth admitiu às autoridades estar a levar estas coisas ao Pai mas recusou-se a revelar-lhes o seu paradeiro.
[…]
O Pai veio ao Dakota do Sul visitar-nos em Maio de 2006, mais ou menos na mesma altura em que o procurador-geral dos EUA o acusou de fuga ilícita e que o FBI o incluiu na lista dos 10 mais procurados, com uma recompensa de 100 mil dólares por informações que conduzissem à sua captura.
O Pai não nos contou nada disto e, uma vez que não tínhamos acesso à televisão ou à rádio, não tínhamos maneira de saber. Em vez disso, disse-nos a todos para escrevermos cartas de confissão, enume-     Ao lado do pai, Warren Jeffs. Com 12 anos  rando-lhe os nossos pecados. Na minha carta, disse-lhe que estava zangada com as minhas esposas-irmãs por causa da forma como me tratavam e às minhas filhas. O Pai,   
  que agora  era procurado pelo governo federal, lado a lado com assassinos e traficantes de droga,
     mandou-me uma mensagem de penitência, onde dizia que eu não era digna de o ver e que toda a nossa família tinha pecado.
O nosso castigo seria insano.”