2010-12-10

PISA - O seu a seu dono

Maria de Lurdes Rodrigues a quem os portugueses devem estes resultados. Que melhor melhor prenda de Natal?

PISA 2009 – Competências dos Alunos Portugueses
Lisboa, 7 de Dezembro de 2010
PISA – Programme for International Student Assessment Estudo internacional com ciclos de 3 anos.
Avalia o desempenho dos alunos de 15 anos
Avalia as competências dos alunos em 3 domínios
• Literacia de leitura
• Literacia matemática
• Literacia científica
2000 Leitura 2003 Matemática 2006 Ciências 2009 Leitura


Em 2009, os testes PISA foram aplicados a 6298 alunos portugueses
Participaram 212 escolas
Em cada escola foram seleccionados aleatoriamente 40 alunos
O processo de constituição da amostra foi integralmente conduzido e controlado pela OCDE






A progressão verificada resultou
• da redução da percentagem de alunos com desempenhos negativos (níveis 1 e abaixo de 1)
• do aumento da percentagem de alunos com desempenhos médios a excelentes (níveis 3, 4, 5 e 6)
Portugal é o 6.º país cujo sistema educativo melhor compensa as assimetrias socioeconómicas
Portugal é um dos países com maior percentagem de alunos de famílias economicamente desfavorecidas que atingem excelentes níveis de desempenho, em leitura

Literacia de Leitura
Em 2009, Portugal obteve em literacia de leitura 489 pontos [ 470 em 2000]
Com este resultado, Portugal situa-se, pela primeira vez, na média da OCDE
Desde o primeiro ciclo, em 2000, os resultados dos alunos portugueses aumentaram 19 pontos




Literacia de Leitura
Percentagens por níveis de desempenho – Portugal 2000 e 2009
Entre 2000 e 2009, a percentagem de alunos com
• níveis médios a excelentes aumentou 7,5 pontos
• níveis negativos diminuiu 9 pontos
• aumentou a percentagem de alunos com desempenhos positivos
• diminuiu a percentagem de alunos com desempenhos negativos
Entre 2000 e 2009, Portugal aproximou-se dos países com maiores percentagens de alunos com níveis de desempenho acima do nível 3
Literacia Matemática
Em 2009, Portugal obteve em literacia matemática 487 pontos
Desde o ciclo de 2003, os resultados dos alunos portugueses aumentaram 21 pontos


Literacia Científica
Em 2009, Portugal obteve, em literacia científica, 493 pontos Desde o ciclo de 2003, os resultados dos alunos portugueses aumentaram 19 pontos

2010-10-26

As pensões douradas da oligarquia

Artigo de opinião de José Vitor Malheiros In Público de 2010-10-19

" O Governo tem um problema. Não é o único problema nem o mais importante, mas este é um daqueles que o Governo admite: o Governo não sabe como aplicar o corte de 10 por cento nas pensões acima de 5000 euros.

Se fosse nos salários, era fácil - como vai ser fácil, aliás. Se fosse nas pensões mais baixas também era fácil. Se fosse mais um aumento de IRS era fácil, ou do IVA, ou do IMI, ou do imposto de selo. Mas cortar nos pensionistas de luxo, naqueles que se reformaram aos cinquenta anos para acumular duas ou três pensões (além de continuarem a trabalhar e a receber salários, porque recuperaram milagrosamente do cansaço que os obrigou à reforma), aí, é “complicado”.

Não é que a administração fiscal não saiba quem ganha o quê. Não é que a administração fiscal não saiba quem paga o quê a quem e quanto e quando. Mas é complicado, pronto.

Para começar, nunca se começou. E verdade que esta situação imoral é denunciada há anos, e que todos sabemos que o dinheiro da Segurança Social anda a servir para pagar reformas de luxo a quem não precisa delas, mas nunca se tentou fazer o levantamento ou conceber o sistema que permitiria fazer o levantamento dessas situações. A razão? É complicado, já dissemos.
Uma das razões por que isso é complicado é que muitos destes pensionistas são pessoas educadíssimas, de excelentes famílias. Alguns são ex-governantes que usufruem das suas pensões por terem exercido cargos políticos. Outros são políticos de outras esferas. Outros são altos funcionários da administração pública. Outros são altos quadros de empresas públicas ou privadas. Outros são todas estas coisas juntas. Todos eles se reformaram porque tinham direito à reforma. Melhor, às reformas, porque o que aqui nos preocupa são os acumuladores de pensões e subvenções. E todos eles a solicitaram porque imaginaram que estavam demasiado doentes ou fragilizados para trabalhar e a sua única hipótese de sobreviver era a solidariedade nacional. Depois, quando descobriram que afinal podiam trabalhar e começaram de facto a dar umas aulas aqui, a fazer uma consultoria ali, a receber uma avença acolá, mais um part-time além, ter-se-ão esquecido de que estavam a receber as pensõezinhas.
A imoralidade é clara. Não é admissível que, no contexto actual de cortes salariais, apenas seja objecto de um corte de dez por cento a parcela do cúmulo de pensões que exceder 5000 euros. Por que não se faz então a mesma coisa com os salários? Trata-se apenas de mais uma borla oferecida à oligarquia. Não é admissível que se garanta tão repetidamente que estes cortes apenas vigorarão em 2011, quando a mesma garantia não existe para os salários. Não é admissível que sejam proibidas as acumulações de pensões com salários do Estado mas se permita a acumulação de salários privados com pensões públicas. Finalmente, não é admissível que essa proibição não abranja aqueles que já beneficiam neste momento dessas acumulações e que apenas atinja os futuros pensionistas.
Já se sabe que tudo isto representa apenas uns poucos milhões. Mas usar a depauperada Segurança Social para que uns milhares de privilegiados possam manter hábitos de luxo é imoral.
Há outra norma que seria bom adoptar. Não tenho nada contra o facto de alguém conquistar o direito a uma pensão por inteiro por ter sido deputado ou ministro durante uma dúzia de anos. A regra é defensável. Mas o “direito a uma pensão por inteiro” não significa que essa pensão deva começar a ser paga imediatamente, quando o beneficiário ainda está em idade activa e produtiva e tem, efectivamente, emprego. O que seria lógico e decente seria que esse direito fosse accionado apenas - salvo casos de verdadeira necessidade - no momento da idade da reforma. (jvmalheiros@gmail.com)

2010-06-29

Vìtimas do Franquismo

VÍDEO CULTURA CONTRA LA IMPUNIDAD
14/06/2010 - (Link , El País )

Artistas y familiares de víctimas del franquismo han presentado esta mañana un vídeo, en el que 15 escritores, actores y músicos ponen rostros y voz a otros tantos asesinados durante la Guerra Civil y la dictadura franquista. Ninguno de los artistas que participan en el vídeo ha cobrado por ello. "Nunca hemos sentido tan fuerte un personaje como ahora", ha explicado emocionado el actor Juan Diego. "Ha sido necesario un vídeo así porque las historias de estas personas no están en los libros de texto, no se escuchan, no se sabe lo que han sufrido", ha denunciado Emilio Silva, presidente de la Asociación para la Recuperación de la Memoria Histórica, quien ha confiado en que el documental sirva, no solo para "avergonzar" a "los jueces que han perseguido a un juez por intentar investigar unos crímenes reales", sino para que "hagan algo".

Estos son los 15 relatos separados en el vídeo por el estruendo de la descarga de un pelotón de fusilamiento.

Pedro Almodóvar interpreta a Virgilio Leret Ruiz, aviador, Jefe de las Fuerzas Aéreas de la Zona Oriental de Marruecos. Fue el primer militar asesinado por sus compañeros sublevados al amanecer del 18 de julio de 1936 en la Base Aérea Militar de Melilla. No tuvo ni abogado, ni juicio, ni sentencia. Sus hijas todavía lo están buscando. El cineasta no ha podido asistir a la presentación del vídeo porque estaba haciendo localizaciones para su próxima película, pero envió una nota en la que se leía: "No es una cuestión política, sino humana. España no debe olvidar la deuda que tiene con estas miles de familias".

Maribel Verdú pone voz a Primitiva Rodríguez, enlace de la guerrilla antifranquista, detenida el 6 de septiembre de 1947. Su sobrino iba con ella y vio cómo dos hombres la violaban detrás de unos arbustos mientras a él lo alejaban del lugar en una camioneta.

Javier Bardem es Francisco Escribano, un cabrero de 18 años al que fusilaron el 1 de julio de 1941 por haber robado "para los del monte" dos sacos de garbanzos, una manta, unas tijeras, seis calcetines, seis pañuelos y diez pesetas. En la misma tapia, y por el mismo delito, murieron su padre, dos de sus tíos y uno de sus primos.

Almudena Grandes se mete en la piel de Granada Garzón de la Hera. El cura de su pueblo la denunció por no estar casada por la Iglesia. Primero la excomulgaron, después, la raptaron y le raparon la cabeza. Fue fusilada con otras 16 mujeres. Después de enterrar sus cuerpos en un lugar desconocido, denunciaron a su marido. También fue asesinado, como el mayor de sus siete hijos. "Lo que han visto", ha dicho la escritora tras la presentación del vídeo, "no tiene que ver con el pasado de este país, sino con el presente, y sobre todo con su futuro. La democracia no puede seguir ignorando esta tragedia y caminando sobre el vacío. Esto no es un ejercicio nostálgico, sino una llamada a la reflexión sobre el tipo de país que queremos ser", ha añadido.

María Galiana, que antes de ser actriz fue maestra, recuerda la historia de Balbina Gayo Gutiérrez, maestra republicana, detenida el 9 de septiembre de 1936 y asesinada al día siguiente. A su marido, Ceferino Farfante Rodríguez, también maestro, lo mataron un día después, cuando fue a preguntar por ella. Dejaron tres hijas muy pequeñas que todavía los están buscando. Entre ellas, Hilda Farfante, que ha asistido, muy emocionada, a la presentación del vídeo. "Me ha parecido un grito contra tan largo y vergonzoso silencio. Nadie había hecho nada semejante por nuestros muertos. Gracias en nombre de 113.000 familias", ha dicho.

Juan Diego Botto es Santos Valentín Francisco Díaz, herrador, tesorero del Círculo Obrero. Fue detenido en agosto de 1936 y encerrado en un campo de concentración. En octubre de ese mismo año le fusilaron junto a otras seis personas en Villadangos del Páramo (León). Dejó siete hijos, el mayor de 17 años, el menor de 11 meses. Su cuerpo no ha sido recuperado. Botto ha agradecido esta mañana "el coraje, la generosidad y la inmensa paciencia que los familiares de las víctimas han demostrado todos estos años, desde la Transición", y ha deseado que el país "se ponga a su altura".

Carmen Machi pone voz a Isabel Picorel. El 26 de agosto de 1936 escapó de su casa junto a sus tres hijos, después de que la avisaran de que los falangistas iban a detenerla por sus simpatías republicanas y como castigo a su marido, quien, tras el golpe de Estado del 18 de julio, se había unido a las fuerzas democráticas republicanas de Asturias. Al volver a su casa para recoger algunas pertenencias fue detenida. La asesinaron junto a otros tres hombres en una cuneta en el municipio de Fresnedo.

Juan José Millás es Antonio Parra Ortega, un jornalero de 34 años, asesinado el 4 de septiembre de 1936. Tenía dos hijos y dos meses después de que lo asesinaran nació su hija Antonia que ha viajado desde Marchena a Madrid para ver el vídeo. "Me ha emocionado mucho conocerla", ha dicho Millás, al que le había impresionado mucho sobre todo, una imagen de la historia de Antonio Parra. "Su mujer enterró los libros que había en casa en el patio porque ella sabía que lo habían matado por leer".

Aitana Sánchez-Gijón recuerda a Julia Conesa, una de las 13 rosas. En mayo de 1939 un conocido de su novio la denunció a la policía. La fusilaron el 5 de agosto. Tenía 19 años. La actriz, muy emocionada, ha reconocido, tras ver el vídeo, que le estaba costando "mantener la compostura". "La democracia no es completa si no hay reparación. Ya basta", ha dicho.

Paco León se pone en la piel de su bisabuelo, Joaquín León Trejo, maestro de escuela en un pueblo de Sevilla. Un alumno le denunció por republicano. Le fusilaron a él y a sus dos hermanos.

Pilar Bardem habla en nombre de María Álvarez, que durante años ayudó a los guerrilleros antifranquistas. Fue asesinada con su hermano Marcelino en julio de 1951.

José Manuel Seda recuerda a Gerardo González Iglesias, jornalero, militante de UGT y padre de cuatro hijos. Al comienzo de la guerra se alistó como miliciano. Fue fusilado el 5 de marzo de 1938. Fue a parar a una fosa común. Sus hermanos Ángel, de 32 años y Ramón, de 26, también fueron asesinados. En la presentación del vídeo ha destacado la valentía de los que, como Gerardo González, habían dado su vida por defender sus convicciones. "Me pregunto si yo sería capaz de tirarme al monte para defender lo que creo".

Hugo Silva es José Villalibre Toral, albañil y labrador. El 22 de agosto de 1936 fueron a buscarlo un grupo de falangistas, que lo asesinaron horas después. Tampoco tuvo ni abogado, ni juicio, ni sentencia.

Miguel Ríos recuerda a Severiano Rivas, alcalde republicano. Fue detenido en 1936 mientras estaba tomando un café. A los dos meses, le pegaron un tiro y abandonaron su cuerpo en los alrededores del cementerio.

Juan Diego es Feliciano Marcos Brasa, de Destriana (León), miembro de las Juventudes Socialistas de su localidad natal e hijo de Higinio Marcos Pérez, presidente de la Sociedad de Trabajadores de la Tierra. A finales de julio de 1936, Feliciano fue secuestrado en su pueblo y torturado, asesinado y enterrado en un paraje alejado varios kilómetros. En octubre de ese mismo año su padre fue también asesinado junto a dos vecinos.

2010-03-17

A Lápide da ex-sede da PIDE

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A Lápide em honra e memória dos quadro jovens mortos pela PIDE/DGS, no dia 25 de Abril de 1974, foi recolocado pelo promotor imobiliário do condomínio privado em 16 de Março de 2010, em posição mais visível do que aquela em que inicialmente a colocara (a um metro do chão) depois dos protestos do Movimento Não Apaguem a Memória - NAM e de muitos cidadãos por email e carta dirigidos ao GEP.

2010-02-28

Victor Louro sobre Eng. Silvicultor Cecílio Gomes da Silva

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Victor Louro é engenheiro silvicultor reformado, foi Secretário de Estado da Reforma Agrária no VI Governo Provisório e comenta o artigo de Cecílio Gomes da Silva, publicado em 1985, [ver post abaixo] que descreve um "sonho" onde "viu" a catástrofe que se poderia abater sobre o Funchal se não se tomassem medidas como as que propunha, e que... se abateu sobre a cidade em 2010!!
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"O meu colega não é bruxo, mas é um grande Silvicultor. É um homem entusiasta e sabedor, que elaborou a 1ª carta de risco de incêndios florestais, nos anos 80: apesar das técnicas de então, esteve em uso 20 anos até 2003, quando foi substituida por uma outra resultante das imagens de satélite, com alta tecnologia !
Foi este Homem que eu quis que o Ministério lhe atribuisse a medalha de Mérito Agrícola aquando da publicação da referida carta de 2003, sob a minha responsabilidade enquanto Director de Serviços. Mas nem sequer aceitaram a minha insistência para o convidar para a apresentação pública da mesma !
Escrevi na Apresentação desse livro:

"A Carta de 1981 traduziu esse fenómeno com assinalável consistência. Ela foi possível graças ao conhecimento prático acumulado na DGF (que, na época detinha não só a responsabilidade da vigilância, como a do combate, ao menos nas matas que estavam sob sua gestao, ou seja, as Matas Nacionais e os Baldios). Mas, essencialmente, graças ao conhecimento científico que ali residia. E como as instituições não fazem o trabalho por elas próprias, é de elementar justiça destacar o saber e a técnica do Engenheiro Silvicultor Cecílio Gomes da Silva, o grande autor da referida Carta. Com papel vegetal e lápis, sobrepondo sucessivas cartas (climáticas, exposições, demografia e distribuição da vegetação), esse distinto silvicultor produziu um instrumento cartográfico assente nos conceitos disponíveis na época, que se revelou de grande utilidade. Deve-lhe o País este reconhecimento público".

Quando o saber respeitar a Natureza é substituído pelo patobravismo, e a ganância ganha foros de "valor" humano e "guia" do comportamento, é inevitável que, mais tarde ou mais cedo, ela - a Natureza - nos lembre a burrice dessas irresponsabilidades. Mesmo que nos chamem idealistas e utópicos, é preciso ter a coragem de denunciar constantemente essas burrices -. porque a Terra é só uma.

Eu tive um sonho

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A catástrofe da Madeira de Fevereiro de 2010 prevista em 1985.

Artigo publicado no “Diário de Notícias” do Funchal no dia 13 de Janeiro de 1985 pelo Engenheiro Silvicultor. Cecílio Gomes da Silva (Madeirense falecido em 2005) [Aqui] e [aqui] (Relacionado com o autor: Link)
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«Traumatizado pelo estado de desertificação das serras do interior da Ilha da Madeira, muito especialmente da região a Norte do Funchal e que constitui as bacias hidrográficas das três ribeiras que confluem para o Funchal, dando-lhe aquela fisiografia de perfeito anfiteatro, aliado a recordações da infância passada junto à margem de uma das mais torrenciais dessas ribeiras – a de Santa Luzia – o mundo dos meus sonhos é frequentemente tomado por pesadelos sempre ligados às enxurradas invernais e infernais dessa ribeira. Tive um sonho.

Adormecendo ao som do vento e da chuva fustigando o arvoredo do exemplar Bairro dos Olivais Sul onde resido, subia a escadaria do Pico das Pedras, sobranceiro ao Funchal. Nuvens negras apareceram a Sudoeste da cidade, fazendo desaparecer o largo e profundo horizonte, ligando o mar ao céu. Acompanhavam-me dois dos meus irmãos – memórias do tempo da Juventude – em que nós, depois do almoço, íamos a pé, subindo a Ribeira de Santa Luzia e trepando até à Alegria por alturas da Fundoa, até ao Pico das Pedras, Esteias e Pico Escalvado. Mas no sonho, a meio da escadaria de lascas de pedra, o vento fez-nos parar, obrigando-nos a agarrarmo-nos a uns pinheiros que ladeavam a pequena levada que corria ao lado da escadaria. Lembro-me que corria água em supetões, devido ao grande declive, como nesses velhos tempos. De repente, tudo escureceu. Cordas de água desabaram sobre toda a paisagem que desaparecia rapidamente à nossa volta. O tempo passava e um ruído ensurdecedor, semelhante a uma trovoada, enchia todo o espaço. Quanto durou, é difícil calcular em sonhos. Repentinamente, como começou, tudo parou; as nuvens dissiparam-se, o vento amainou e a luz voltou. Só o ruído continuava cada vez mais cavo e assustador. Olhei para o Sul e qualquer coisa de terrível, dantesco e caótico se me deparou. A Ribeira de Santa Luzia, a Ribeira de S. João e a Ribeira de João Gomes eram três grandes rios, monstruosamente caudalosos e arrasadores. De onde me encontrava via-os transformarem-se numa só torrente de lama, pedras e detritos de toda a ordem. A Ribeira de Santa Luzia, bloqueada por alturas da Ponte Nova – um elevado monturo de pedras, plantas, arames e toda a ordem de entulho fez de tampão ao reduzido canal formado pelas muralhas da Rua 31 de Janeiro e da Rua 5 de Outubro – galgou para um e outro lado em ondas alterosas vermelho acastanhadas, arrasando todos os quarteirões entre a Rua dos Ferreiros na margem direita e a Rua das Hortas na margem esquerda. As águas efervescentes, engrossando cada vez mais em montanhas de vagas espessas, tudo cobriram até à Sé – único edifício de pé. Toda a velha baixa tinha desaparecido debaixo de um fervedouro de água e lama. A Ribeira de João Gomes quase não saiu do seu leito até alturas do Campo da Barca; aí, porém, chocando com as águas vindas da Ribeira de Santa Luzia, soltou pela margem esquerda formando um vasto leito que ia desaguar no Campo Almirante Reis junto ao Forte de S. Tiago. A Ribeira de S. João, interrompida por alturas da Cabouqueira fez da Rua da Carreira o seu novo leito que, transbordando, tudo arrasou até à Avenida Arriaga. Um tumultuoso lençol espumante de lama ia dos pés do Infante D. Henrique à muralha do Forte de S. Tiago. O mar em fúria disputava a terra com as ribeiras. Recordo-me de ver três ilhas no meio daquele turbilhão imenso: o Palácio de S. Lourenço, A torre da Sé e a fortaleza de S. Tiago. Tudo o mais tinha desaparecido – só água lamacenta em turbilhões devastadores.

Acordei encharcado. Não era água, mas suor. Não consegui voltar a adormecer. Acordado o resto da noite por tremenda insónia, resolvi arborizar toda a serra que forma as bacias dessas ribeiras. Continuei a sonhar, desta vez acordado. Quase materializei a imaginação; via-me por aquelas chapas nuas e erosionadas, com batalhões de homens, mulheres e máquinas, semeando urze e louro, plantando castanheiros, nogueiras, pau-branco e vinháticos; corrigindo as barrocas com pequenas barragens de correcção torrencial, canalizando talvegues, desobstruindo canais. E vi a serra verdejante; a água cristalina deslizar lentamente pelos relvados, saltitando pelos córregos enchendo levadas. Voltei a ouvir os cantares dolentes dos regantes pelos socalcos ubérrimos das vertentes. Foram dois sonhos. Nenhum deles era real; felizmente para o primeiro; infelizmente para o segundo.

Oxalá que nunca se diga que sou profeta. Mas as condições para a concretização do pesadelo existem em grau mais do que suficiente.

Os grandes aluviões são cíclicos na Madeira. Basta lembrar o da Ribeira da Madalena e mais recentemente o da Ribeira de Machico. Aqui, porém, já não é uma ribeira, mas três, qualquer delas com bacias hidrográficas mais amplas e totalmente desarborizadas. Os canais de dejecção praticamente não existem nestas ribeiras e os cones de dejecção estão a níveis mais elevados do que a baixa da cidade. As margens estão obstruídas por vegetação e nalguns troços estão cobertas por arames e trepadeiras. Agradável à vista mas preocupante se as águas as atingirem. Estão criadas todas as condições, a montante e a jusante para uma tragédia de dimensões imprevisíveis (só em sonhos).

Não sei como me classificaria Freud se ouvisse este sonho. Apenas posso afirmar sem necessidade de demonstrações matemáticas que 1 mais 1 são 2, com ou sem computador. O que me deprime, porém, é pensar que o segundo sonho é menos provável de acontecer do que o primeiro.
Dei o alarme – pensem nele.
Cecílio Gomes da Silva

2010-02-13

Estados Unidos: Farsa em vez de tragédia

Paul Krugman
Economista
Nobel 2008
Exclusivo i/New York Times
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Os dois principais partidos estão a tornar os Estados Unidos praticamente ingovernáveis. É verdade que nem tudo está perdido, mas o Senado está a fazer por isso.
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Sempre soubemos que o reinado dos Estados Unidos como nação mais poderosa do mundo acabaria um dia. Só que a maioria de nós imaginava que a nossa queda, quando chegasse, seria algo de grandioso e trágico.

Em vez disso, depara-se-nos não uma tragédia, mas uma absoluta farsa. Em vez de nos estarmos a vergar sob o peso de um expansionismo imperial excessivo, estamos a ser paralisados por procedimentos. Em vez de uma nova versão do declínio e da queda de Roma, estamos perante uma réplica da dissolução da Polónia do século xviii. Não sei o que isto vale...

Uma pequena lição de história: nos séculos xvii e xviii, o órgão legislativo polaco, o Sejm, funcionava segundo o princípio da unanimidade. Qualquer deputado tinha o poder de anular uma proposta legislativa gritando "Não consinto!". Isto tornou o país ingovernável em termos práticos, e as potências vizinhas começaram a anexar pedaços do território polaco. Em 1795, a Polónia desapareceu, para só voltar a emergir um século mais tarde.

Hoje em dia, o Senado dos EUA parece determinado a fazer que o Sejm pareça, por comparação, uma benesse.

A semana passada, ao fim de nove meses, o Senado aprovou por fim o nome de Martha Johnson para chefiar a General Services Administration, órgão que gere o património edificado e os aprovisionamentos governamentais. É, em essência, um lugar não político, e ninguém contestou as qualificações de Johnson para o ocupar: o seu nome foi aprovado por 94 votos a favor e 2 contra. No entanto, o senador Christopher Bond, (republicano, do Missouri) tinha posto a nomeação em "suspenso", como forma de pressionar o governo a aprovar um projecto de construção em Kansas City.

Esse feito de características duvidosas pode ter inspirado o senador Richard Shelby (republicano, do Alabama). Seja como for, Shelby já pôs em suspenso todas as nomeações da administração Obama - cerca de 70 cargos oficiais de alto nível - até que o Estado que representa obtenha um contrato de produção de navios-tanque e um centro de contraterrorismo.

O que dá a senadores individuais um poder desta magnitude? A maioria dos assuntos do Senado assenta na aprovação por unanimidade: é difícil conseguir que alguma coisa se faça até que todos os membros concordem com os respectivos termos processuais. Nasceu assim, e consolidou-se, uma tradição segundo a qual os senadores, em troca de não invalidarem tudo, obtêm o direito de bloquear a nomeação de indigitados de quem não gostam.

Antigamente, as suspensões eram utilizadas de forma comedida - isto porque o Senado costumava observar "tradições de civilidade, cortesia, reciprocidade e conciliação". Mas isso era antigamente. As regras que costumavam ser viáveis tornam-se incapacitantes, agora que os principais partidos políticos do país se deixaram cair num niilismo e não vêem mal algum - aliás, vêem ganhos políticos - em tornar a nação ingovernável.

Hoje os dirigentes republicanos recusam-se a enunciar propostas específicas. Protestam contra o défice; no mês passado, os senadores desse partido votaram em bloco contra qualquer aumento do limite de endividamento federal, uma medida que poderia ter provocado mais um bloqueio do governo, não fora o facto de os democratas terem 60 votos no Senado. Mas também denunciam tudo o que possa reduzir o défice, incluindo, ironicamente, quaisquer esforços para gastar mais racionalmente os fundos do Medicare. Tendo o Partido Republicano, a nível nacional, abdicado de qualquer responsabilidade de fazer que as coisas funcionem, é mais que natural que os senadores, individualmente, se sintam à vontade para tomarem a nação como refém até conseguirem o financiamento pretendido para os seus projectos preferidos.

A verdade é que, dado o estado da vida política nos EUA, o comportamento do Senado está completamente divorciado de qualquer noção de governo funcional. Os próprios senadores deveriam reconhecer este facto e pugnar por uma alteração dessas regras, incluindo a eliminação, ou pelo menos a limitação, da flibusteria, o processo de bloqueio parlamentar. Eis algo que podem e devem fazer, por voto de maioria, no primeiro dia da próxima sessão do Senado. Mas é melhor esperarmos sentados. Da maneira como as coisas se apresentam, os democratas parecem nem sequer ser capazes de ganhar pontos pela denúncia do obstrucionismo dos seus opositores.

Deveria ser uma mensagem simples (e deveria ter sido mesmo a mensagem central no Massachusetts): um voto num republicano, independentemente do que se pense dele em termos pessoais, é um voto na paralisia. Mas, nesta altura do campeonato, já sabemos como a administração Obama lida com os que a destroem: vai-lhes directamente... aos vasos capilares. É bem verdade que Robert Gibbs, secretário de imprensa da Casa Branca, acusou Shelby de "parvoíce". Pois. Isso vai mesmo ter um impacto avassalador junto dos eleitores!

2010-01-27

Discurso do Bastonário António Marinho e Pinto na Abertura do ano Judial em 2010-01 27


A Sessão Solene de Abertura do Ano Judicial teve lugar hoje, dia 27 de Janeiro, pelas 15horas, no Supremo Tribunal de Justiça. A cerimónia foi presidida pelo Presidente da República.
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Exmo. Senhor Presidente da República
Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República
Exmo. Senhor Primeiro Ministro
Exmo. Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Exmo. Senhor Ministro da Justiça
Exmo. Senhor Procurador-Geral da República
Exmo. Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa
Senhores Convidados
Exmos. Senhores Magistrados
Caros Colegas

Este é o terceiro ano consecutivo em que tenho a honra de, em nome dos Advogados Portugueses, usar da palavra nesta cerimónia solene.

Nas edições anteriores fiz diagnósticos pouco elogiosos para a justiça e para o funcionamento de algumas das suas instituições. E, infelizmente, não há motivos para mudar de perspectiva.

Em Portugal, como em qualquer estado de direito democrático, a administração da justiça assenta em três pilares (o Juiz, o Procurador da República e o Advogado), a que corresponde, respectivamente, a função jurisdicional (dizer o direito para os concretos litígios judiciais), a função de representar o estado (que consiste na titularidade em exclusivo da acção penal e na titularidade dos interesses punitivos do estado) e a função de representação dos interesses jurídicos dos cidadãos (através do patrocínio forense).

As três funções têm assento na Constituição da República Portuguesa, o que significa que qualquer delas é imprescindível à administração da justiça.

Nenhum tribunal pode funcionar se faltar um desses pilares ou se algum deles estiver subalternizado ou diminuído na sua dignidade própria.

O que se passa hoje em Portugal é que a representação dos cidadãos está subalternizada, enquanto a representação do estado, a cargo do Ministério Público, está desproporcionadamente favorecida.

Os pratos da balança estão muito desequilibrados e o fiel inclina-se acentuadamente para um dos lados.

Juízes e Procuradores convivem no exercício das respectivas funções, quase da mesma forma que conviveram durante os tempos da formação no Centro de Estudos Judiciários.

Trabalham lado a lado, almoçam juntos, viajam juntos, entram e saem juntos das salas de audiência e, muitas vezes, discutem juntos aquilo que deveriam analisar e decidir em separado.

Há casos em que o juiz entra na sala de audiências já com o despacho preparado para decidir a promoção que o magistrado do MP previamente lhe comunicou, sem que a defesa disso tivesse conhecimento.

Por outro lado, a realidade judiciária demonstra que os magistrados do MP representam-se mais a si próprios do que à República de que são Procuradores; ou então actuam orientados pela particular visão que, em cada momento, cada um deles tem dos interesses do estado.

No mesmo processo, com os mesmos factos, as mesmas provas, as mesmas leis, o MP, frequentemente, tem uma posição na 1ª instância, tem outra, diametralmente oposta, na segunda e, por vezes, ainda consegue ter uma terceira diferente das anteriores, no Supremo Tribunal de Justiça ou no Tribunal Constitucional.

Na verdade não podemos deixar de constatar que os Procuradores da República agem, em Portugal, com total independência, como se fossem juízes e, pior do que isso, também verificamos que muitos juízes actuam como se fossem Procuradores.

Na justiça penal os julgadores, em regra, não têm uma posição de rigorosa equidistância em relação à defesa e à acusação – em relação às pretensões punitivas do estado e aos direitos dos arguidos.

E isso não é só nos tribunais. Se atentarmos no discurso público de alguns juízes, pretensamente falando em nome de todos, vemos claramente que esse discurso se confunde com o discurso dos magistrados do MP e, por vezes, até, com o das polícias.

Eles reivindicam permanentemente mais escutas telefónicas, mais segredo de justiça, mais detenção, mais prisão preventiva.

Os sindicatos dos juízes, dos procuradores e das polícias estão quase sempre unidos nas mesmas reivindicações, ou seja, reclamando leis que lhes permitam deter mais, escutar mais, silenciar mais, prender mais e sempre durante mais tempo.

Exmo. Senhor Presidente da República
Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República
Exmo. Senhor Primeiro Ministro

Em Portugal, a luta política está judicializada e, pior do que isso, há sinais evidentes de que a justiça está politizada.

Grande parte do debate político tem vindo a fazer-se em torno dos problemas da justiça, não com o objectivo de encontrar soluções consensuais e duradouras, mas sim para ver quem desses problemas tira os maiores dividendos políticos.

Uma parte importante da luta política tem vindo realizar-se à volta de processos judiciais pendentes com o objectivo de obter vantagens partidárias.

Infelizmente, alguns magistrados contribuem para essa situação e chegam mesmo a participar abertamente nesse debate sem para tal, obviamente, possuir a necessária legitimidade.

Com efeito, alguns desses magistrados não são capazes de manter a distância e a reserva que deviam ter e participam abertamente no debate político, mesmo quando ele se faz a partir de decisões de outros magistrados em processos pendentes.

Decisões judiciais legítimas já foram mesmo contestadas publicamente por esses magistrados, por razões manifestamente políticas.

Já se chegou ao ponto de o exercício legítimo das competências legais do próprio presidente deste Supremo Tribunal de Justiça, ter sido publicamente posto em causa por outros magistrados, unicamente porque as suas decisões não proporcionaram os efeitos políticos que alguns esperavam obter com elas.

E isso depois de se ter tentado condicionar o uso dessas competências através de decisões tomadas em primeira instância por quem não tinha competência legal para as proferir.

E, claro, tudo sempre atirado para a comunicação social com uma abundância de pormenores que já só espanta pela impunidade com que tudo isso acontece.

É neste contexto que se agravou o problema das permanentes e cirúrgicas violações do segredo de justiça em fases processuais em que os arguidos e os seus defensores não podem aceder ao processo. Essas violações vão quase sempre no sentido de incriminar os suspeitos e de conduzir à formulação pública de juízos de culpabilidade sobre pessoas a quem a lei, ingenuamente, manda tratar como inocentes.

Há uma chocante promiscuidade entre certos sectores da investigação criminal e certos órgãos da comunicação social.

A gravação de conversas entre um jornalista e um juiz de um tribunal superior (que curiosamente desempenhava funções policiais durante a investigação do chamado «Processo Casa Pia»), gravação essa, aliás, efectuada ilicitamente por um dos intervenientes nessas conversas, esclareceu de forma lapidar qual a cultura e as preocupações que predominam em certos sectores das magistraturas e do jornalismo português.

Grande parte da investigação criminal faz-se para a comunicação social, com o intuito óbvio de criar artificialmente o alarme social necessário à aplicação de medidas de coacção mais severas e de condenações mais duras.

As violações cirúrgicas do segredo de justiça traduzem-se quase sempre em vantagens processuais para a acusação e em prejuízos para a defesa.

Em muitos casos os arguidos já chegam condenados à audiência de julgamento, sendo eles que têm de provar a sua inocência e não a acusação que tem de provar a sua culpabilidade.

A culpa necessária à condenação já fora previamente demonstrada na comunicação social, e de tal maneira, que ao julgador não resta outra alternativa que não condenar os arguidos, senão acaba ele mesmo condenado a preceito por certos órgãos de informação, através da já consagrada fórmula tabelar - «polícia prende, juiz solta».

Já se generalizou na sociedade portuguesa a convicção de que as violações do segredo de justiça não podem ser punidas porque certos jornalistas e certos jornais que publicam essas violações sabem demais.

Por outro lado, para certos órgãos de informação, a liberdade de imprensa transformou-se em pura «libertinagem de imprensa».

Perante a incapacidade dos jornalistas sérios e do próprio estado em proteger esse valor fundamental da sociedade democrática, esses órgãos de pseudo informação acusam, denunciam, especulam e caluniam, sob a orientação de fontes judiciais anónimas, sempre sem qualquer respeito pela dignidade humana e pelos direitos mais elementares das suas vítimas.

É tempo de pôr cobro a essa promiscuidade.

Os tribunais deixaram de inspirar confiança aos cidadãos.

Como se pode compreender que as gravações de conversas telefónicas, ordenadas por um juiz no âmbito de uma investigação criminal, sejam colocadas na Internet, mais concretamente no You Tube, depois de os visados terem sido absolvidos e o processo ter sido arquivado?

Como se pode compreender que essas gravações não tenham sido destruídas quando deixaram de ter relevância como meio de prova ou, pelo menos, com o trânsito em julgado da decisão que absolveu os arguidos escutados?

O segredo de justiça foi transformado numa verdadeira farsa e já tempo de lhe pôr termo - ou à farsa ou ao segredo.

Exmo. Senhor Presidente da República
Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República
Exmo. Senhor Primeiro Ministro

A justiça portuguesa terá também de responder por que é que alguns magistrados violam as imunidades dos Advogados, ao realizar buscas aos seus escritórios para obter provas que incriminem os seus clientes, sem que nenhum Advogado seja suspeito da prática de qualquer crime.

Não é próprio de um estado de direito, mas sim de estados terroristas, a realização de buscas a um escritório para apreender a correspondência de um Advogado com o seu cliente, sem que esse Advogado seja suspeito de comparticipação em algum crime.

Também não é juridicamente admissível (nem moralmente sério) constituir um Advogado arguido unicamente para legitimar processualmente a busca que se deseja.

Se um Advogado auxilia um seu cliente a cometer um crime – e, infelizmente, temos alguns que o fazem - então deve responder como qualquer criminoso, sem nenhum privilégio.

Mas se ele se limita a ajudar o seu cliente a defender-se em tribunal, então ele está a cumprir a sua obrigação profissional e, mais do que isso, está a desempenhar uma função importantíssima para o estado de direito.

Não compreender isto é não compreender os pressupostos básicos do funcionamento da justiça no mundo civilizado.

As imunidades profissionais dos Advogados, nomeadamente, a garantia do sigilo profissional, foram criadas como garantias dos cidadãos e, por isso, são tão importantes para a boa administração da justiça como o é a independência dos juízes.

É necessário que os magistrados portugueses respeitem o sigilo profissional dos Advogados, enquanto valor superior da ordem jurídica indissociável da boa administração da justiça.

Infelizmente, os ataques às imunidades constitucionais e legais dos Advogados não têm partido apenas de alguns sectores judiciais.

Também de certos departamentos governamentais tem havido tentativas de desqualificar a Advocacia portuguesa, procurando colocá-la sob o escrutínio de uma polícia dependente directamente do governo.

Exmo. Senhor Presidente da República
Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República
Exmo. Senhor Primeiro Ministro

O que se tem passado com as tentativas da ASAE em fiscalizar os escritórios de Advogados sob pretexto de verificar a existência de livros de reclamações só revela a incapacidade de alguns sectores do governo em compreender a essência da Advocacia.

Será próprio de um estado de direito democrático atribuir a um órgão de polícia criminal, como é a ASAE, competência para fiscalizar a actividade profissional dos Advogados?

O estado quer que a Advocacia portuguesa seja regulada pela Ordem dos Advogados com base num Estatuto aprovado por lei da Assembleia da República ou pretende também que seja o governo a regula-la directamente com base em decretos-leis avulsos?

O Governo da República reconhece e respeita a independência dos Advogados portugueses, ou, pelo contrário, entende que o exercício do patrocínio forense (que a Constituição da República define no seu artigo 208º como um elemento essencial à administração da Justiça), deve ficar, pelo menos parcialmente, sob o escrutínio de uma polícia económica dependente do próprio governo?

Sendo uma actividade privada, a Advocacia possui, no entanto, um relevantíssimo interesse público, já que é imprescindível à administração da justiça.

Ora, se o Estado delegou na Ordem dos Advogados os poderes para a sua regulação profissional, foi precisamente para salvaguardar a independência dos Advogados.

Portanto, não faz qualquer sentido, que o próprio estado venha depois avocar parte desse poder regulador para o entregar a um órgão policial, ameaçando, assim, a essência da profissão, ou seja, a sua independência.

Por isso, saudamos o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, recentemente aprovado, que, acolhendo as posições da OA, considerou que não é obrigatória a existência e disponibilização de livros de reclamações nos escritórios dos Advogados.

Saudamos esse parecer porque ele reconhece o óbvio, isto é, que a Advocacia reveste especificidades que impedem que seja equiparada a uma qualquer actividade mercantil e os escritórios dos Advogados reduzidos a meros estabelecimentos comerciais.

Lamenta-se é que ainda haja magistrados que, não compreendendo ou não aceitando essas especificidades, tenham chegado ao ponto de equiparar a confiança recíproca que tem de existir entre um cidadão e o seu Advogado – confiança essa absolutamente necessária ao estabelecimento do mandato e ao efectivo exercício do patrocínio forense – à confiança que um consumidor deposita nos estabelecimentos comerciais do seu bairro.

São tão antigas as tentativas de desqualificar a Advocacia quão antigas são as tentações de domesticar os Advogados – umas e outras, felizmente, sempre foram e continuarão a ser votadas ao fracasso.

Exmo. Senhor Presidente da República
Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República
Exmo. Senhor Primeiro Ministro

Uma última palavra apenas para sublinhar, mais uma vez, a necessidade urgente de se rever o actual regime de custas processuais.

O Estado deve garantir o acesso à justiça a todos os cidadãos.

A ninguém mais é lícito fazer justiça senão ao estado, através de órgãos próprios que são os tribunais.

Por isso não pode o mesmo estado cobrar as elevadas quantias que cobra aos cidadãos e às empresas pela péssima justiça que lhes presta.

Infelizmente, as exorbitantes taxas de justiça exigidas nos nossos tribunais tornaram a justiça uma espécie de bem de luxo que, em bom rigor, o estado acaba por vender quase a preços de mercado.

É altura de pôr um fim a esta situação, tão escandalosa quanto é certo que em Espanha, aqui mesmo ao lado, a justiça é gratuita.

A gratuitidade da justiça é hoje uma exigência da cidadania republicana.

Os cidadãos e as empresas têm direito à justiça e não podem ser afastados dela apenas porque o estado, em vez de a prestar gratuitamente a todos optou por coloca-la ao alcance apenas de alguns.

E em ano de celebrações da República, esperemos que o Governo e a Assembleia da República estejam à altura das exigências republicanas em matéria de justiça.

Em nenhum país haverá democracia sem justiça e, em Portugal, não poderá haver justiça com um regime de custas processuais que impede tantas pessoas de ir a tribunal defender os seus direitos e interesses legítimos.

Muito obrigado.

António Marinho e Pinto
Bastonário da Ordem dos Advogado

2010-01-16

Parecer do CD sobre a alegada vigilância à Presidência da República


2010/JAN/13
O Conselho Deontológico do Sindicato dos jornalistas analisou as notícias publicadas pelo "Público" e pelo "Diário de Notícias", em Agosto e Setembro de 2009, sobre a alegada vigilância à Presidência da República, e concluiu que a actuação dos jornalistas do "Público" envolvidos neste caso é reprovável e que os jornalistas do "Diário de Notícias" merecem reparo por não terem observado de forma mais rigorosa a qualidade de uma notícia sobre um aspecto controverso.

É o seguinte o parecer, na íntegra, do CD:

Conselho Deontológico

Parecer 22/P/2009

Parecer do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas sobre a alegada vigilância à Presidência da República, análise suscitada após notícias publicadas pelo «Público» e pelo «Diário de Notícias», em Agosto e Setembro de 2009.

Explicação prévia

O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas lamenta o atraso com que emite este parecer, relativamente à data em que ocorreram os últimos factos. Apesar de o fazermos em final de mandato do Conselho Deontológico (CD), entendemos que a problemática que lhe está subjacente o justifica.

O caso suscita questões que são centrais e críticas na prática jornalística contemporânea. A primeira delas é a relação do jornalista com as fontes. A segunda refere-se ao recurso ao anonimato das fontes, que terá de assentar numa regra de transparência. A terceira ao papel e motivação das fontes organizadas, a quarta ao tipo e género de relato, a quinta às diferentes agendas que influenciam o média e a sexta à expectativa do leitor.

Após posição conjunta com a Direcção do Sindicato dos Jornalistas, tomada no dia 18 de Setembro de 2009, o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas decidiu proceder à análise do caso sobre a alegada vigilância à Presidência da República.

No início de Outubro solicitou depoimentos por carta a jornalistas dos jornais «Público» e «Diário de Notícias» e ao assessor do Presidente da República. Este foi quem primeiro respondeu, em carta recebida a 8 de Outubro. A resposta do «Diário de Notícias» foi recebida em 4 de Novembro. Os jornalistas do «Público» não responderam, mas em 17 de Dezembro o CD recebeu uma resposta dos membros eleitos do Conselho de Redacção do jornal.

Limitamos os factos entre a data do encontro entre Fernando Lima, assessor da Presidência da República, e Luciano Alvarez, editor do jornal «Público», ocorrido em 23 de Abril de 2008, e a comunicação oficial de Aníbal Cavaco Silva, Presidente da República, em 29 de Setembro de 2009.

A iniciativa de Fernando Lima ocorre poucos dias após a visita do Presidente da República à Madeira (entre 14 e 20 de Abril de 2008). Decorridos 17 meses, o «Público» publica duas manchetes — suportadas em informação de uma fonte não identificada de Belém — que aludem a outra suspeição de espionagem do gabinete do primeiro-ministro aos assessores do Presidente da República (suscitada por declarações de dirigentes do PS que criticaram a participação de assessores na elaboração do programa eleitoral do PSD).

O e-mail escrito em 23 de Abril de 2008 por Luciano Alvarez e dirigido ao jornalista e correspondente no Funchal do «Público», Tolentino de Nóbrega, fornece o contexto do caso. O texto trocado entre os dois jornalistas foi revelado em manchete do «Diário de Notícias», em 18 de Setembro de 2009.

Exposição do caso

23 de Abril de 2008

A iniciativa de Fernando Lima, assessor da Presidência da República, de contactar o jornalista do «Público» Luciano Alvarez está na origem deste caso. O encontro entre ambos ocorreu a 23 de Abril de 2008, num café da avenida de Roma, em Lisboa. E, como é afirmado no e-mail, Fernando Lima terá dito que o contacto decorria a pedido do Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva.

Fernando Lima conta o enredo da suspeita de espionagem à Presidência da República (por parte do gabinete do primeiro-ministro, na pessoa de Rui Paulo da Silva Figueiredo, adjunto jurídico de José Sócrates), apoiada em teoria da conspiração. Fornece um dossier sobre o adjunto do primeiro-ministro, sobre quem deveria recair a suspeição.

Fernando Lima sugere, com a concordância de Luciano Alvarez, que a notícia saia do Funchal, para dissipar responsabilidades que apontassem à Presidência da República. E, por sugestão de Fernando Lima, indica a Tolentino de Nóbrega duas fontes a contactar (uma da chefia do gabinete do representante da República e outra do gabinete do presidente do Governo regional). À primeira fonte devem ser colocadas duas perguntas (uma das quais já é conhecida a resposta, «mas vamos fingir que não sabemos») e à segunda uma pergunta. As três perguntas visavam Rui Paulo Figueiredo e foram sugeridas por Fernando Lima. Luciano Alvarez coloca uma pergunta sem destinatário e de retórica.

Para o editor do «Público», a confirmação da hipótese (a qual «é verdade e facilmente confirmável»), e que sustentaria a tese da suspeição de espionagem e o envolvimento do adjunto jurídico, «já é um inicio da história». Luciano Alvarez pede discrição a Tolentino de Nóbrega, atendendo a que apenas quatro pessoas tinham conhecimento dela (o Presidente da República, Fernando Lima, José Manuel Fernandes e o próprio Luciano).

5 de Maio de 2008

Tolentino de Nóbrega faz a investigação pedida e transmite a Luciano Alvarez, segundo edição de 18 de Setembro de 2009 do «Diário de Notícias», «que tudo "não passa de paranóia do PR & Lima"» e «que a presença de Rui Paulo de Figueiredo estaria dentro das regras protocolares e com conhecimento da PR. Pelo que, considera, a história não tem pernas para andar.»

Na explicação ao Provedor do Leitor do «Público» [publicada na edição de 13 de Setembro de 2009] acrescenta que, um ano depois, dada a presença de Rui Paulo Figueiredo no Funchal «quando da visita do primeiro-ministro à Madeira (15/05/09), confrontei-o pessoalmente com a situação, na tentativa de validar ou não as informações anteriormente por mim colhidas. As respostas dadas nada acrescentaram ao que eu próprio apurara um ano antes e de que dera conhecimento ao editor Luciano Alvarez no início de Maio de 2008».

18 e 19 de Agosto de 2009

Joaquim Vieira, na crónica semanal do Provedor do Leitor, analisa em 13 de Setembro de 2009 as manchetes de 18 e 19 de Agosto de 2009 do «Público».

Na crónica «Subitamente neste Verão» (13/09/09), Joaquim Vieira escreve que «o curso habitual da política nacional foi perturbado no transacto 18 de Agosto com a manchete do “Público”: “Presidência suspeita estar a ser vigiada pelo Governo”.»

Assinada por São José Almeida, a notícia «citava um membro não identificado da Casa Civil do Presidente da República para informar que “o clima psicológico que se vive no Palácio de Belém é de consternação [,] e a dúvida que se instalou foi a de saber se os serviços da Presidência da República estão sob escuta e se os assessores de Cavaco Silva estão a ser vigiados”. Tudo isto para reagir a declarações de dirigentes socialistas criticando a participação de assessores presidenciais na elaboração do programa eleitoral do PSD (participação que aliás a fonte de Belém não desmentia).»

Joaquim Vieira alude também à manchete de 19 de Agosto de 2009. O «Público» titula que «José Sócrates fala de “disparates de Verão”, Belém não desmente existência de suspeitas» e em subtítulo escreve que «tudo começou com comportamento de adjunto de Sócrates na visita de Cavaco à Madeira», estabelecendo a ligação com a alegada espionagem de 2008.

Na manchete alega-se, escreve Joaquim Vieira, que «“a origem das suspeitas [da Presidência da República] remonta a uma viagem [presidencial] à Madeira, há um ano e meio, na qual um adjunto [do primeiro-ministro] teve comportamentos que levaram colaboradores de Cavaco Silva a apertar o circuito da informação para evitar fugas”.»

A autoria é de São José Almeida e do editor Luciano Alvarez. Segundo a notícia — afirma o provedor — o «adjunto de José Sócrates, Rui Paulo Figueiredo, teria sido incluído na comitiva presidencial “sem nenhuma explicação natural”, e os autores descreviam o seu comportamento no arquipélago como de um penetra, que abusivamente “ter-se-á sentado, sem ser convidado, na mesa de outros membros da comitiva, violando as regras protocolares”, e até “multiplicado os contactos e as trocas de informação com alguns jornalistas do continente que se deslocaram à Madeira”.»

Rui Paulo Figueiredo não foi ouvido para a redacção do texto. Afirmava-se na notícia que o «Público» «tentara “sem êxito” contactá-lo de véspera na Presidência do Conselho de Ministros.» Não foi sequer utilizada a informação apurada por Tolentino de Nóbrega nem o seu «desmentido», como recomendam as «mais elementares regras deontológicas de audição e publicação do contraditório», segundo afirma Rui Paulo Figueiredo na carta enviada ao Provedor do Leitor.

Joaquim Vieira alude à carta que recebeu após a segunda manchete. Nela Rui Paulo Figueiredo afirma que, abordado por Tolentino de Nóbrega (15/05/09), teve «oportunidade de negar completamente tudo aquilo com que fui confrontado. E de lhe referir que ele, como testemunha de toda a visita (...), poderia comprovar facilmente o que eu lhe estava a afirmar. Esclareci-o que estive oficialmente na visita e que o meu nome constava no livro oficial da visita elaborado pela Presidência da República» e que esteve «presente somente nos actos para os quais a minha presença estava prevista no referido programa.» Diz ainda ter ficado estupefacto por ter sido contactado para a Presidência do Conselho de Ministros. «Não só porque não tenho indicação nenhuma dessa nova tentativa de contacto como pelo facto de ter sido ignorado o contacto efectuado por Tolentino de Nóbrega. Já não falando no facto de o meu local de trabalho ser S. Bento e não a Presidência do Conselho de Ministros”.»

Joaquim Vieira escreve que, solicitados «a explicar por que razão os dados recolhidos há ano e meio por Tolentino de Nóbrega, e que de algum modo contrariavam a versão do assessor de Belém, não entraram na notícia sobre o “espião” de S. Bento, nem José Manuel Fernandes nem Luciano Alvarez responderam (São José Almeida disse que a parte sobre Rui Paulo Figueiredo não foi da sua responsabilidade, mas sim de Luciano Alvarez).»

Na explicação transmitida ao Provedor do Leitor, José Manuel Fernandes afirma que, em 2008, o «Público» recolheu «muitos elementos», «muito mais do que os noticiados até ao momento». Mas não os noticiaram. «Consideramos que não devemos utilizar fontes anónimas quando os visados desmentem em on as informações e não possuímos provas materiais.»

Em Agosto de 2009, «na véspera da saída da primeira notícia, um membro da Casa Civil do Presidente da República confirmou formalmente ao “Público” uma das várias informações de que há muito tínhamos conhecimento.» José Manuel Fernandes acrescenta que a opção só podia ser uma: «No dia em que uma fonte autorizada da Casa Civil do Presidente da República assume que no Palácio de Belém se suspeita de que o Governo montou um sistema para vigiar os movimentos do Presidente, essa informação tem uma tal importância e gravidade que só podia ter o destaque que teve.»

Joaquim Vieira diz, pelo que percebeu, que «só há uma fonte, que é sempre o mesmo colaborador presidencial que tomou a iniciativa de falar ao “Público” em 2008». Acrescenta que vale «a pena dizer que essa fonte falou não só das escutas como da história de adjunto de Sócrates na Madeira, na tentativa de corroborar a tal operação de espionagem.»

José Manuel Fernandes assume que «pessoalmente acompanhei este processo» e que se inteirou da «fiabilidade das fontes e dei luz verde à publicação da notícia.» Reconhece ter sido «cometido o erro de tentar encontrar Rui Paulo Figueiredo na Presidência do Conselho de Ministros e não directamente na residência oficial do primeiro-ministro.»

18 de Setembro de 2009

O «Diário de Notícias» fez manchete na sua edição de 18 de Setembro de 2009 com a história deste caso. Titulou que «Assessor de Cavaco Silva encomendou caso de escutas». A publicação do e-mail de Luciano Alvarez introduz outra perspectiva no relato dos acontecimentos.

Nas notícias publicadas nessa edição, da autoria de Catarina Guerreiro (editora), Graça Henriques (editora executiva-adjunta) e Nuno Saraiva (subdirector), o «caso das escutas» levantado pelo «Público» em Agosto de 2009 é cotejado com o processo descrito no e-mail de Luciano Alvarez, acrescida de outra informação complementar e publicada uma cronologia.

Os dados novos mais relevantes são a publicação da correspondência privada trocada entre jornalistas do «Público» (o e-mail de Luciano Alvarez) e a identificação de Fernando Lima como fonte do «Público».

Os jornalistas do «Diário de Notícias» afirmam, porém, que o e-mail transcrito na íntegra «é apenas um dos vários documentos a que o DN teve acesso, cujo conteúdo se refere a questões internas do jornal.» Numa nota, a direcção do jornal reforça a opção editorial. Afirma que o que contam «está evidenciado nesses documentos e a autenticidade daquele que é o mais relevante foi-nos confirmada por um dos destinatários.» João Marcelino justifica que «documentos que temos na nossa posse não nos permitem fazer de conta que não sabemos.»

Os três jornalistas do «Diário de Notícias» dizem ter contactado (17/09/09) o editor do «Público» e que este «nega a existência do mail. “É tudo forjado”, disse Luciano Alvarez. Já Tolentino de Nóbrega não quis comentar “assuntos internos do jornal”.»

Relevam também que «não houve qualquer desmentido da Presidência da República», desde que o «Público» divulgou o caso em Agosto de 2009. Como também não foi desmentido Francisco Louçã, líder do Bloco de Esquerda, que disse na reportagem da SIC "Como nunca os viu", em 9 de Setembro de 2009, que «a fonte das escutas é Fernando Lima».

Os jornalistas do «Diário de Notícias» escrevem que «Tolentino de Nóbrega respondeu ao mail de Alvarez a 5 de Maio de 2008. Nessa mensagem deita por terra as desconfianças de Belém: “Conforme disse em contacto telefónico, feito na semana passada, julgo que tudo isto não passa, como admitiste, de paranóia do PR & Lima”. O correspondente no Funchal descreve, depois, exaustivamente, os passos que deu para tentar confirmar a que título e como Rui Paulo de Figueiredo esteve presente nas cerimónias da visita do Presidente da República à região autónoma.»

Aludem ainda à manchete do «Publico» sobre as «alegadas escutas por parte do gabinete de Sócrates a Belém» e ao «artigo crítico do Provedor do Leitor do “Público”, Joaquim Vieira, no qual se ficou a saber, pela primeira vez, que Tolentino de Nóbrega tinha informado o editor do jornal que não conseguira confirmar qualquer das informações, inclusive num contacto pessoal com o assessor de Sócrates.»

Afirmam que «o DN tentou ontem [17/09/09], ao longo do dia, o contacto com o director do “Público”, José Manuel Fernandes, bem como com o assessor de imprensa do Presidente, Fernando Lima, mas nenhum respondeu aos nossos contactos.»

O «Diário de Notícias» edita, ainda em 18 de Setembro de 2009, uma notícia da jornalista Lília Bernardes, na qual se anuncia que o presidente do Governo Regional da Madeira solicitou a intervenção da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). Alberto João Jardim «considera “muito grave” usar a Madeira para forjar notícias».

Também neste dia Belmiro de Azevedo recomendou à equipa do diário «Público», do grupo Sonae, «que não se deixe assustar por opiniões um bocado desastradas de alguns governantes que querem mandar no “Público” sem pôr lá dinheiro nenhum», segundo noticiou a agência Lusa.

O empresário, presidente não executivo da Sonae, declarou não ter «nenhuma influência directa no “Público”» e só desejar que o jornal «passe a ganhar dinheiro e o faça sempre com a mesma linha editorial, isso é, com independência». E, «se respeitar os valores fundacionais, não pode fazer outra coisa que não seja respeitar a liberdade de informação, ser independente de um governo».

As suas palavras eram dirigidas ao ministro dos Assuntos Parlamentares, Augusto Santos Silva, a quem apodou de «ministro da propaganda». Belmiro de Azevedo disse ainda à Lusa desconhecer se é possível aos Serviços de Informação e Segurança (SIS) violar correspondência electrónica, como alegou o director do «Público», José Manuel Fernandes.

20 de Setembro de 2009

Joaquim Vieira, na segunda crónica sobre o caso, publicada na edição de 20 de Setembro de 2009, questiona se terá o «Público» «uma agenda política oculta?» Posição que fundamenta na «acumulação de graves erros jornalísticos praticados em todo este processo (entre eles, além dos já antes referidos, permitir que o guião da investigação do “Público” fosse ditado pela fonte de Belém)» e que «leva à questão mais preocupante, que não pode deixar de se colocar: haverá uma agenda política oculta na actuação deste jornal?»

Dá ainda conta de «um clima de nervosismo» que se instalou no «Público» e de uma «onda de nervosismo» que extravasou, após a edição de 18 de Setembro do «Diário de Notícias», para o «próprio mundo político».

Mas também se pronuncia sobre a conduta dos jornalistas do «Diário de Notícias». Salienta que «a fuga de informação envolvia correspondência trocada entre membros da equipa do jornal a propósito da crónica do provedor.» E acrescenta que «o provedor, porém, não denuncia fontes de informação confidenciais dos jornalistas – sendo aliás suposto ignorar quem elas são –, e acha muito estranho, inexplicável mesmo, que outros jornalistas o façam.»

29 de Setembro de 2009

O Presidente da República produziu uma declaração sobre as alegadas escutas à Presidência da República e sobre o caso expresso no e-mail com informação trocada entre jornalistas do «Público».

Quanto ao contexto, o PR afirma que as declarações produzidas por dirigentes do PS, em reacção ao conteúdo das manchetes de Agosto do jornal «Público», visou «alcançar dois objectivos»: «Puxar o Presidente para a luta político-partidária, encostando-o ao PSD» e «Desviar as atenções do debate eleitoral das questões que realmente preocupavam os cidadãos.»

Considerou também que a publicação do e-mail de Luciano Alvarez no «Diário de Notícias» consolidou a sua convicção sobre a intenção de «colar o Presidente ao PSD e desviar as atenções.»

Pronunciou-se sobre o assessor do gabinete do primeiro-ministro, afirmando que não o conhece, «não sei com quem falou, não sei o que viu ou ouviu durante a minha visita à Madeira e se disso fez ou não relatos a alguém.» Acrescentando que «sobre mim próprio teria pouco a relatar que não fosse de todos conhecido. E por isso não atribuí qualquer importância à sua presença quando soube que tinha acompanhado a minha visita à Madeira.»

Quanto ao e-mail, «velho de 17 meses», o PR afirmou que ligou imediatamente a sua publicação «aos objectivos visados pelas declarações produzidas em meados de Agosto.» Sem nomear o seu assessor, Fernando Lima, o Presidente da República não desmente nem as declarações de Agosto ao «Público» nem o caso relatado no e-mail. Desvaloriza o caso ou compreende a conduta.

No caso dos assessores (manchetes de Agosto), reforça a ideia dos «dois objectivos» e diz que não teve «conhecimento prévio» das «interrogações atribuídas a um membro da minha Casa Civil» e tem «algumas dúvidas quanto aos termos exactos em que possam ter sido produzidas.» E questiona: «Mas onde está o crime de alguém, a título pessoal, se interrogar sobre a razão das declarações políticas de outrem?»

No caso do e-mail, sustenta que, «pessoalmente, confesso que não consigo ver bem onde está o crime de um cidadão, mesmo que seja membro do staff da casa civil do Presidente, ter sentimentos de desconfiança ou de outra natureza em relação a atitudes de outras pessoas.»

No entanto, como «o e-mail publicado deixava a dúvida na opinião pública sobre se teria sido violada uma regra básica que vigora na Presidência da República», esclarece que «ninguém está autorizado a falar em nome do Presidente da República, a não ser os seus chefes da Casa Civil e da Casa Militar.» E, embora lhe tenham «garantido que tal não aconteceu, eu não podia deixar que a dúvida permanecesse.» Por isso, «procedi a alterações na minha Casa Civil.»

Sem fundamentar a preocupação — tanto mais que a acusação suscitada pelo director do «Público» de que o SIS teria entrado no sistema informático do jornal foi retirada pelo próprio José Manuel Fernandes —, o Presidente da República disse que a «publicação do referido e-mail» lhe suscitou uma segunda interrogação: «“será possível alguém do exterior entrar no meu computador e conhecer os meus e-mails? Estará a informação confidencial contida nos computadores da Presidência da República suficientemente protegida?”» Informou que, para esclarecer esta questão, ouviu hoje (29/09/09) «várias entidades com responsabilidades na área da segurança.» Segundo disse, «fiquei a saber que existem vulnerabilidades e pedi que se estudasse a forma de as reduzir.»

O método

A análise incide sobre questões de natureza ética e deontológica da profissão bem como é avaliado criticamente o cumprimento da função social dos meios de comunicação social e da responsabilidade social dos jornalistas.

A análise tem em conta as manchetes de 18 e 19 de Agosto de 2009 do jornal «Público», sobre a manchete de 18 de Setembro de 2009 do jornal «Diário de Notícias», incluindo o e-mail trocado em 2008 entre jornalistas do «Público» e as duas crónicas do Provedor do Leitor do «Público», publicadas nas edições do jornal de 13 e 20 de Setembro de 2009, incluindo documentação complementar: carta de Rui Paulo Figueiredo, adjunto jurídico do primeiro-ministro, e explicações dos jornalistas do «Público» Tolentino de Nóbrega, São José Almeida, Luciano Alvarez e José Manuel Fernandes.

O Conselho Deontológico solicitou a quatro jornalistas do «Público» [Luciano Alvarez (editor), São José Almeida (redactora principal), Tolentino de Nóbrega (correspondente no Funchal) e José Manuel Fernandes (director)], outros tantos do «Diário de Notícias» [Catarina Guerreiro (editora), Graça Henriques (editora executiva-adjunta), Nuno Saraiva (subdirector) e João Marcelino (director)], e ao assessor do Presidente da República [Fernando Lima], citado como fonte, que se pronunciassem sobre as questões que formula.

O e-mail do jornalista Luciano Alvarez fornece informação de contexto sobre o caso, identifica a fonte da Presidência da República, as suas sugestões para o tratamento noticioso do assunto e a abordagem por que optou o jornal.

O Conselho Deontológico tomou conhecimento da comunicação de 29 de Setembro de 2009 do Presidente da República sobre o assunto e das subsequentes reacções dos partidos políticos.

Em 1 de Outubro de 2009, o Conselho Deontológico deu conhecimento desta sua iniciativa à Direcção do Sindicato dos Jornalistas, aos conselhos de redacção do «Público» e do «Diário de Notícias» e ao Provedor do Leitor do jornal «Público».

Na mesma data, dirigiu cartas aos quatro jornalistas do «Público», informando-os da iniciativa tomada e solicitando a sua colaboração no esclarecimento do caso.

1. Colocou a Luciano Alvarez (editor do «Público») as seguintes questões:

— O caso que lhe foi exposto por Fernando Lima tinha inquestionável interesse jornalístico. Mas apresentava igualmente melindre e gravidade. Sabendo que as fontes não são desinteressadas, foi acertado acolher a proposta de investigação, as entidades a contactar e as perguntas sugeridas pela fonte?

— Há ou não na relação com a fonte uma excessiva confiança que pode ter conduzido à perda de autonomia da investigação por parte do jornalista?

— Independentemente da tentativa de confirmação da tese enunciada pela fonte profissional, seria recomendável que o jornal encetasse também uma investigação com abordagem própria junto de outros meios e fontes. Foi desencadeada outra linha de investigação?

— Esse excesso de confiança na fonte pode ter ou não conduzido à associação do caso Madeira com o da participação de assessores do Presidente da República na elaboração do programa eleitoral do PSD? A primeira história terá servido para atribuir crédito à outra?

— Assumiu na explicação ao Provedor do Leitor o erro na tentativa de contacto do adjunto do primeiro-ministro. Não terá sido um erro mais grosseiro ignorar a conclusão a que chegou o correspondente do «Público» no Funchal?

— Considera ou não que neste processo foram violados ou observados com pouco rigor os pontos 1 (“relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade”; comprovar os factos, “ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso”), 2 (considerar como “graves faltas profissionais” a acusação sem provas), 5 (“promover a pronta rectificação das informações que se revelem inexactas ou falsas”) e 10 do Código Deontológico (conduta susceptível de “comprometer o seu estatuto de independência e a sua integridade profissional”)?

2. Colocou a São José Almeida (redactora principal do «Público») as seguintes questões:

— É autora ou co-autora das duas manchetes de Agosto do «Público» sobre os casos das alegadas escutas e espionagem. Assume em resposta ao Provedor do Leitor que não teve intervenção na parte respeitante ao adjunto do primeiro-ministro. Mas tem ou não responsabilidade no caso, atendendo a que uma matéria contribuiu para o crédito da outra?

— Isto é, considera-se ou não solidária com as faltas profissionais em matérias em que co-participou?

— Na parte em que é co-autora foi observado o princípio da audição das «partes com interesses atendíveis no caso» (ponto 1 do Código Deontológico)?

3. Colocou a Tolentino de Nóbrega (correspondente no Funchal do «Público») as seguintes questões:

— Embora saiba da reserva que tem em falar em questões internas do jornal, coloco-lhe porém a questão de saber se considera que nas manchetes de Agosto do «Público» sobre os casos das alegadas escutas e espionagem foi observado o princípio da audição das «partes com interesses atendíveis no caso» (ponto 1 do Código Deontológico)?

— Esta questão é fulcral, atendendo a que deu curso à investigação pedida e que o seu desfecho nega o pressuposto que lhe esteve na origem. Esse erro devia ser ou não rectificado como estipula o ponto 5 do Código Deontológico?

4. Colocou a José Manuel Fernandes (director do «Público») as seguintes questões:

— Afirmou ao Provedor do Leitor que «na véspera da saída da primeira notícia, um membro da Casa Civil do Presidente da República confirmou formalmente ao “Público” uma das várias informações de que há muito tínhamos conhecimento.» Quando alude a confirmação formal quer significar que obteve «provas materiais», condição que considerou necessária para «utilizar fontes anónimas»?

— Joaquim Vieira diz, pelo que percebeu, que «só há uma fonte, que é sempre o mesmo colaborador presidencial que tomou a iniciativa de falar ao “Público” em 2008». Acrescenta que vale «a pena dizer que essa fonte falou não só das escutas como da história de adjunto de Sócrates na Madeira, na tentativa de corroborar a tal operação de espionagem.» Um caso de tal gravidade, como é reconhecido, não requeria ouvir mais do que uma fonte e esperar que fossem obtidas respostas fiáveis?

— A sua responsabilidade neste processo não resulta apenas do cargo que ocupa na direcção editorial e no conselho de administração executivo. Assumiu ao Provedor do Leitor que «pessoalmente acompanhei este processo e, como o Livro de Estilo prevê, (...) inteirei-me da fiabilidade das fontes e dei luz verde à publicação da notícia”.» É, pois, o principal responsável pelo tipo de abordagem ao assunto desde 2008 e pelo resultado do trabalho jornalístico editado?

— Considera ou não que neste processo foram violados ou observados com pouco rigor os pontos 1 (“relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade”; comprovar os factos, “ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso”), 2 (considerar como “graves faltas profissionais” a acusação sem provas), 5 (“promover a pronta rectificação das informações que se revelem inexactas ou falsas”) e 10 do Código Deontológico (conduta susceptível de “comprometer o seu estatuto de independência e a sua integridade profissional”)?

Na mesma data, o Conselho Deontológico dirigiu cartas aos quatro jornalistas do «Diário de Notícias», informando-os da iniciativa tomada e solicitando a sua colaboração no esclarecimento do caso.

5. Colocou a Catarina Guerreiro (editora), Graça Henriques (editora executiva-adjunta) e Nuno Saraiva (subdirector), todos do «Diário de Notícias», as seguintes questões:

— O jornal reconhece a gravidade do caso e o seu melindre. Como dizem que o e-mail de Luciano Alvarez é apenas um dos vários documentos a que o «D.N.» teve acesso, não considera que seria ponderado utilizar essas outras informações?

— O «Diário de Notícias» teve acesso aos documentos. Foi ponderado o interesse que motivou a fonte que os entregou e a hipótese do jornal seguir uma linha de investigação própria?

— Utilizando apenas fontes documentais, aquelas a que o jornal teve acesso, considera que ficou assegurado o princípio consagrado no ponto 1 do Código Deontológico (“Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso”)?

— É criticada a conduta do «Diário de Notícias» por ter divulgado a correspondência trocada entre jornalistas do «Público» e, em consequência, identificar a fonte desses jornalistas. Essa conduta violou ou não o ponto 9 do Código Deontológico (“deve respeitar a privacidade dos cidadãos excepto quando estiver em causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende”)?

5. Colocou a João Marcelino (director do «Diário de Notícias»), as seguintes questões:

— A Nota da Direcção, publicada na edição de 18 de Setembro de 2009, releva a gravidade do caso e sustenta a decisão de que os documentos na posse do «Diário de Notícias» «não nos permitem fazer de conta que não sabemos». Sem que a tome como provocação, não se pode deixar de colocar uma questão tão veemente como a que afirmaram: Quem encomendou ao «D.N.» a manchete de 18/09/09?

— Afirmou que o que contam está evidenciado nos documentos a que tiveram acesso e que a autenticidade daquele que é o mais relevante (presume-se que seja o e-mail de Luciano Alvarez) foi-vos confirmada por um dos destinatários (o único identificado no e-mail do editor do «Público» é Tolentino de Nóbrega). Todavia, não há evidência de que tenham explorado outras linhas de investigação. Também, no que se refere à comprovação dos factos, só há a alusão de que não foi possível contactar os visados. Considera que o «Diário de Notícias» fez tudo o que estava ao seu alcance para ouvir «as partes com interesses atendíveis no caso» (ponto 1 do Código Deontológico) e para comprovar os factos junto de outras fontes?

— Considera que dispunham das provas suficientes para formular a acusação que fazem, utilizando, sobretudo, o documento mais relevante do «Público», cuja história não se comprovou? Ou a história consiste em afirmar que o «Público» foi ou deixou-se instrumentalizar por uma fonte profissional da Presidência da República?

6. Colocou a Fernando Lima (assessor do Presidente da República), as seguintes questões:

— A acção que lhe é atribuída quer no caso da Madeira em 2008 quer no de Agosto passado não foi por si desmentida. Também não desmentiu Francisco Louçã, que lhe atribuiu essa autoria em 9 de Setembro passado. Depreende-se, pois, a sua autoria. Confirma-o?

— Foi movido por interesse pessoal e/ou partidário ou, pelo contrário, mantém que agiu em nome do Presidente da República?

— É evidente que não lhe compete velar pela qualidade e princípios do jornalismo. Todavia, não considera que todo este caso, o de forjar notícias a partir da Madeira, como a ele se referiu Alberto João Jardim, é, além do seu melindre e gravidade, um claro atentado à função social do jornalismo, incompatível com a função por si exercida e na qualidade em que se pronunciou?

Esclarecimentos prestados

I. Nenhum dos jornalistas do «Público» questionados respondeu à solicitação do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.

Todavia, os membros eleitos do Conselho de Redacção do «Público» (Sérgio Aníbal, Mariana Oliveira, José António Cerejo, Alexandra Prado Coelho, Aníbal Rodrigues e Álvaro Vieira) entenderam tomar a seguinte posição, em 17 de Dezembro de 2009, e que transmitiram ao Conselho Deontológico:

«1 – O assunto foi alvo de intenso debate fora e dentro do “Público”, incluindo nas crónicas do provedor dos seus leitores, e, embora se tenham verificado divergências na avaliação do caso, concluímos que ocorreram algumas falhas e deficiências de comunicação no decurso do processo de elaboração das notícias em apreço, que a própria direcção do jornal já admitiu.

«2 – Os factos registados foram encarados como um desafio a uma maior exigência e rigor, constituindo-se como uma oportunidade para reforçar os mecanismos internos que permitam minimizar a possibilidade de ocorrência das falhas e deficiências detectadas.»

II. O Conselho Deontológico recebeu do «Diário de Notícias» uma resposta conjunta, em nome do director do «Diário de Notícias», jornalista João Marcelino, dos jornalistas Nuno Saraiva, Catarina Guerreiro e Graça Henriques e do Conselho de Redacção, a qual foi dada pelo advogado Luís Barros de Figueiredo.

Esta resposta, que João Marcelino solicitou que fosse dada pelo advogado em nome de todos, apenas se refere às questões colocadas ao director.

Luís Barros de Figueiredo, da sociedade de advogados Luís Barros de Figueiredo, Sofia Louro & Associados, considera «absolutamente inadmissível» a primeira pergunta formulada a João Marcelino pelo que «a mesma sugere ou deixa intuído».

Sobre a mesma questão, que classifica como a «putativa encomenda de notícias», o advogado sustenta que «não é aceitável, de nenhum ponto de vista, que V. Exa. coloque a hipótese da matéria jornalística ou da manchete do jornal terem tido causa diversa de um trabalho de investigação jornalístico com inegável relevância pública e política.»

Acrescenta que «por razões de cortesia, não devolvo a V. Exa. uma legítima (e merecida) pergunta, sobre quem encomendou esta investida do Conselho Deontológico, e que interesses estarão por detrás da mesma.»

A segunda questão é classificada como «o trabalho jornalístico». A resposta integral do advogado é a seguinte:

«Os acontecimentos das semanas seguintes às notícias do “Diário de Notícias” dão resposta inequívoca à questão formulada: foi feito tudo o que era exigível para comprovar os factos e a prova de que assim aconteceu é que tudo o que foi publicado é verdadeiro e indisputável. O que comprova, aliás, a excelência do trabalho realizado pela redacção do “DN”.

«Não tendo o “Diário de Notícias” publicado qualquer inexactidão ou inverdade, não percebo como, nem porquê, é perguntado se o trabalho de investigação foi bem feito.

«Quanta à outra parte da questão colocada sobre se o “Diário de Notícias” fez tudo o que estava ao seu alcance para ouvir as partes com interesses atendíveis no caso, diria que, dada a relevância jornalística e política da notícia, as diligências realizadas para audição dos interessados foram muito significativas e intensas, sendo que não foi por falta de insistentes diligências do “Diário de Notícias” que a versão dos factos ou comentários da Presidência da República, do Senhor Dr. Fernando Lima, do Gabinete do Primeiro Ministro, da Direcção do “Público”, do seu Director e dos jornalistas envolvidos, não foram publicados.

«Matéria que enriqueceria as notícias publicadas e que era de interesse evidente publicar.»

À terceira questão, que classifica como «a questão do fundamento da acusação», a resposta integral é a seguinte:

«A pergunta formulada por V. Exa. contém uma afirmação que é inverídica: a de que a “história não se comprovou”.

«Parece-nos por demais evidente que o tempo decorrido, e todas as afirmações feitas posteriormente à notícia vieram, bem ao contrário do afirmado, demonstrar que a história se confirmou. Tal qual foi publicada.

«O e-mail que foi publicado pelo “Diário de Notícias” é um documento existente e genuíno, tal como então o confirmámos e tal como um Administrador do “Publico” (o Senhor Dr. António Lobo Xavier) veio publicamente confirmar. Que o cessante Director do “Publico” o não tenha ainda reconhecido, muito embora tenha dado sucessivas versões sobre a genuinidade do mesmo é atitude que, talvez, apenas impressione esse Conselho Deontológico.

«Neste documento (verdadeiro) são os jornalistas do “Publico” que confirmaram o pedido de encontro, o encontro, e o fim do mesmo, tal como dele o Senhor Assessor de Sua Excelência o Presidente da República, Dr. Fernando Lima, foi protagonista. Incluindo as significativas informações de que estava ali a mando do Senhor Presidente, que se tratavam de suspeições de vigilância ilegítima (e não de factos concretos) que o Presidente pretendia que fosse publicado, e de que haveria conveniência de que o que viesse a ser divulgado pelo “Publico” deixasse a ideia de ter origem em fuga de informação do Governo Regional da Madeira.

«Quanto à pergunta sobre o que consiste o cerne da história, é questão que cabe aos leitores responder. O “Diário de Notícias” limitou-se a narrar factos de inegável interesse político e jornalístico, contribuindo (como é seu timbre) para a formação de uma opinião pública livre e esclarecida, a quem compete, a partir de tudo o que foi divulgado, fazer um juízo sobre se, como V. Exa. nos pergunta, “o ‘Público’ se deixou instrumentalizar por uma fonte profissional da Presidência da República”.»

III. O Conselho Deontológico recebeu do assessor do Presidente da República uma resposta, na qual se limita a comunicar que tem a carteira profissional de jornalista suspensa desde 27 de Março de 2006. Junta fotocópia da declaração da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, a qual comprova o depósito da carteira, de que Fernando Lima é titular, «por se encontrar a exercer actividade incompatível com a profissão de jornalista».

Em 30 de Outubro de 2009, o Conselho Deontológico voltou a endereçar uma carta ao assessor do Presidente da República. A incompatibilidade de funções era pública e conhecida. Não se pretendia ouvi-lo como jornalista, mas sim enquanto fonte, procedimento que seguimos em outros casos. Mas não respondeu.

Análise

Antes de proceder à análise dos factos e respostas obtidas, justifica-se um comentário.

A recusa de resposta do anterior director do «Público», José Manuel Fernandes, pode ser percepcionada como uma desconsideração a este órgão de auto-regulação dos jornalistas, em matéria de ética e de deontologia. Todavia, a sua atitude poderá consubstanciar a negação de uma das questões essenciais da profissão, a prestação de contas. Uma responsabilidade social devida aos leitores do jornal, aos profissionais da redacção e aos seus pares, os restantes jornalistas.

O Conselho Deontológico não faz um processo de intenção quanto ao significado da resposta dos jornalistas do «Diário de Notícias» ser dada por um advogado, presumivelmente da empresa. Mas foi João Marcelino que incumbiu Luís Barros de Figueiredo da tarefa. Ao fazê-lo limitou a possibilidade da expressão individual dos jornalistas questionados, assim como a possibilidade de expressão do Conselho de Redacção.

O cumprimento da ética e deontologia profissionais, bem como a prestação de contas perante os pares, não se delegam em escritórios de advogados. A deontologia não é uma disciplina do Direito, mas sim uma teoria do dever e do agir profissionais. A deontologia respeita à profissão, mas a ética é do foro individual.

Posta esta questão prévia, ficaram por responder todas as questões colocadas aos jornalistas do «Público» e do «Diário de Notícias», com excepção do director deste último jornal. No entanto, mesmo esta resposta, a do advogado, não trata a substância, nem responde ao que é perguntado.

A resposta refugia-se em falácias (a insinuação sobre as intenções do CD, por exemplo), sustenta a validade do que antes foi feito com o argumento dos resultados posteriores e demonstra que não tem conhecimento, o que é compreensível, do que seja investigação jornalística, verificação ou comprovação.

Luís Barros de Figueiredo recorre exclusiva e excessivamente ao e-mail trocado entre os jornalistas do «Público», deixando implícito ter sido essa a fonte do «Diário de Notícias» e atribuindo a terceiros (os que não prestaram declarações) a responsabilidade pela falta de fontes.

Quanto às questões que ficaram sem resposta alguma, no caso das perguntas aos jornalistas do «Público», referem-se à ausência de uma investigação jornalística própria, à falta de sustentação e de corroboração das matérias, assentes apenas numa fonte profissional, a que foi concedido anonimato, sem razão plausível. No caso em que houve verificação das pistas fornecidas pela fonte, os dados obtidos não foram utilizados.

Quanto às perguntas sem resposta, colocadas aos jornalistas do «Diário de Notícias», reportavam-se também à ausência de uma investigação própria que produzisse outro material de prova. A informação publicada resumiu-se a fontes documentais. Também não foi respondido se consideravam ou não violação de privacidade a utilização da correspondência trocada entre os jornalistas do «Público».

As perguntas a Fernando Lima só não ficaram sem resposta porque o Presidente da República as esclareceu na comunicação que fez em 29 de Setembro. Cavaco Silva não desmentiu a iniciativa do seu assessor e nem sequer a reprovou. Limitou-se a colocá-la no plano pessoal, já que disse não ter tido conhecimento prévio das «interrogações atribuídas a um membro da minha Casa Civil».

Respondeu também à terceira questão. Referindo-se ao e-mail, o Presidente da República afirmou que, «pessoalmente, confesso que não consigo ver bem onde está o crime de um cidadão, mesmo que seja membro do staff da casa civil do Presidente, ter sentimentos de desconfiança ou de outra natureza em relação a atitudes de outras pessoas.»

Fernando Lima, como é sabido, não se limitou a «ter sentimentos de desconfiança». Concebeu um guião, acolhido pelo então director do «Público», para produzir um texto jornalístico que confirmasse a tese da sua «desconfiança», o qual sairia da Madeira para desvanecer eventuais ligações à fonte da Presidência da República.

Todo este caso não se cinge apenas à ocorrência de «algumas falhas e deficiências de comunicação no decurso do processo de elaboração das notícias» do «Público» (como o reconheceram os membros eleitos do Conselho de Redacção) ou a «graves erros jornalísticos» (segundo o Provedor do Leitor do «Público»). Comprova, pelo contrário, a degradação dos deveres deontológicos do jornalismo e o declínio da qualidade do jornalismo que se pratica.

É um episódio infeliz para o jornalismo e os jornalistas. Mas interpela também o relacionamento entre alguns jornalistas e as instituições, que convergem em agendas com objectivos específicos e com acções destinadas a produzir efeitos cumulativos, que se vão auto-legitimando.

Na Primavera de 1999, na II Watchdog Journalism Conference, realizada nos Estados Unidos da América, o jornalista Bill Kovach mostrou-se preocupado com as possíveis consequências da mudança de relacionamento entre fontes e jornalistas.

Considerou que, com o caso Clinton/Lewinsky, os jornalistas colocaram-se em posição de se deixarem manipular por aqueles que têm vital interesse na informação que passam. «Crescentemente, as fontes usurpam o papel de gatekeeping [selecção] do jornalista para ditar os termos da interacção, as condições sob as quais a informação será libertada, e a escolha do momento certo da publicação». Acrescentou ser «uma mudança de poder tão dramático que acredito que possa destruir a independência jornalística, e certamente mudará toda a noção de distância jornalística».

Além disso, as reflexões produzidas por jornalistas, em diversos países, apontam o uso e abuso do anonimato. Está ser concedido pelos jornalistas como ferramenta para a intervenção em campanhas eleitorais, para atacar opositores. São violados deveres básicos da deontologia, como o de que as opiniões devem ser atribuídas e nunca ficarem a coberto do anonimato.

As fontes anónimas são também usadas como factor de atractividade e sem quaisquer critérios ou justificação. A identificação das fontes é a regra e, quando não é possível, é recomendável que se justifique sempre na peça a razão por que se concede o anonimato.

As mudanças produzidas, designadamente pelo saber das fontes profissionais, são de tal forma que — como afirmou outro jornalista norte-americano, Tom Rosenstiel, em Janeiro de 2001, na Universidade de Harvard — o «relacionamento foi convertido de uma ferramenta, que se oferecia a fontes relutantes em fornecerem informação, para um dispositivo que as fontes usam para manipular o jornalista».

Neste mesmo seminário, realizado na universidade norte-americana, Bill Kovach distinguiu três tipos de jornalismo considerado de investigação. O que considerou mais óbvio «não é jornalismo de investigação, é quanto muito jornalismo sobre investigação». É quando o jornalista fala com um funcionário governamental, que está a fazer uma investigação, e este lhe faculta informação por ser do seu interesse preparar «uma conclusão bem sucedida».

O segundo tipo é o chamado jornalismo de investigação interpretativo, que na verdade se refere apenas a análise e interpretação. Consiste em obter uma cópia de uma investigação feita pelo governo ou por outra entidade, fazer a análise e revelar o processo de tomada de decisão.

O terceiro tipo é o verdadeiro jornalismo de investigação. Requer que o jornalista domine o assunto, conheça o contexto e que investigue no terreno. Pressupõe múltiplos contactos, a obtenção de declarações de várias e diversificadas fontes de informação, de preferência todas identificadas, e que todos os materiais e citações obtidas sejam adequadamente verificados.

A falta de qualidade do jornalismo e o incumprimento dos deveres profissionais acabam sempre por defraudar as expectativas do público, neste caso os leitores. Os eventuais ganhos circunstanciais tornam-se, a prazo, em perda de credibilidade e em perda de independência. O que os jornalistas devem prestar é um serviço público, que seja pautado pelo interesse do público, o de uma sociedade plural e complexa.

Conclusões

Este parecer pretende dar um contributo para a reflexão sobre o jornalismo que fazemos, com que princípios e valores e com que finalidade. O caso tratado é desastrado a todos os títulos e não esclareceu as motivações dos seus protagonistas. Mas aponta para um episódio de luta pelo poder e de influência na esfera pública, a nível partidário e institucional

A actuação do Presidente da República quer na gestão do seu tempo quer na sua comunicação também merecem crítica e reparo. Independentemente das interrogações e dos «sentimentos de desconfiança» que tenham cada um dos membros da Casa Civil, é necessário também que tenham ética da responsabilidade e que se governem por uma regra de transparência. Precisamente porque prestam serviço na Presidência da República.

A actuação dos jornalistas do «Público» envolvidos neste caso é reprovável, sendo a do antigo director aquela que merece maior reparo e crítica.

O «Público» infringiu ou observou com pouco rigor os seguintes pontos do Código Deontológico:

1. («relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade»; comprovar os factos, «ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso»); 2. (considerar como «graves faltas profissionais» a acusação sem provas); 5. («assumir a responsabilidade por todos os seus trabalhos e actos profissionais» e também «promover a pronta rectificação das informações que se revelem inexactas ou falsas»; 10. (evitar conduta susceptível de «comprometer o seu estatuto de independência e a sua integridade profissional»).

Os jornalistas do «Diário de Notícias», particularmente o seu director, merecem reparo por não terem observado de forma mais rigorosa a qualidade de uma notícia sobre um aspecto controverso, quer na sua matéria quer na origem dos factos. A urgência da publicação não pode derrogar o cumprimento dos diferentes requisitos profissionais, nomeadamente os que se referem às fontes.

Relator Orlando César

Lisboa, 31 de Dezembro de 2009

Aprovado com os votos favoráveis de António Melo, Carlos Camponez e Orlando César e contra de Otília Leitão com a seguinte

Declaração de voto

Voto contra por considerar redutora a análise sobre o procedimento do jornal Diário de Notícias cuja conduta foi, também, ética e deontologicamente reprovável ao publicar um email privado entre repórteres do jornal Público, sabendo que podia tratar da substância do mesmo, através de uma investigação rigorosa, sem colocar em causa e para o futuro a confiança da generalidade das fontes. (vid. doutrina do CD sobre reprovação de divulgação das cassetes, 2004).

Não é claro que se trata de um inquestionável interesse público e, se o fosse, seria a substância de um documento e não o próprio documento a matéria de interesse.

Aliás nesta denúncia, também não é isenta de interesses a fonte que deu o documento ao Diário de Notícias, nem inócuos os interesses do próprio jornal , que soube preservar a fonte que lhe entregou o documento, mas não cuidou de ouvir todas as partes com interesses atendíveis no conteúdo do mesmo, nomeadamente a Presidência ou o próprio Público.

Pelo Conselho Deontológico

do Sindicato dos Jornalistas

Orlando César

(Presidente)