2005-09-18

O CONTRATO

Opinião do "Capitão do 25 de Abril" actualmente coronel na reserva, David Martelo relativamente às razões subjacentes às movimentações das associações militares:

"No passado dia 22 de Junho, o sr. Ministro da Defesa Nacional (MDN), a propósito das medidas de austeridade que o novo governo se preparava para adoptar, declarou o seguinte:
«As Forças Armadas (FA) "não podem ficar à margem do esforço de ajustamento" que o país terá de fazer para resolver os "problemas complicados" do défice das contas públicas.»
Deve admitir-se que, no contexto em que foram produzidas, estas declarações podem considerar-se sensatas, justas e passíveis de grande aceitação. Todavia, pelas mesmas razões, numa época de maior abundância, também às FA e aos militares caberia o usufruto das melhorias operacionais e sociais concedidas à generalidade dos cidadãos. E é aqui, precisamente, que o MDN perde a razão toda. Se esta argumentação fosse séria, os militares teriam sido beneficiados durante a última "época de vacas gordas", quando a despesa pública aumentou em praticamente todos os sectores do Estado. Sabemos, melhor do que ninguém – e as estatísticas não deixam de o evidenciar –, que foi justamente na década de 90 que as restrições orçamentais se abateram, impiedosamente, sobre as Forças Armadas. Basta citar um exemplo:

em 1979, um coronel/capitão-de-mar-e-guerra tinha um vencimento-base de 22.700$00, exactamente o mesmo de um professor catedrático; em 1998, o militar passou para 422.000$00 e o professor para 682.100$00, estabelecendo uma diferença de mais de 61%.

Porquê? perguntar-se-á. Muito simplesmente porque os militares, não só não estavam habituados a reivindicar, como não tinham como o fazer, sem sair da legalidade.
Abandonados por uma hierarquia que, salvo honrosas excepções, nunca deixou de reconhecer que estava ali por nomeação da entidade com quem teria de negociar, a ocorrência da reforma do ministro Fernando Nogueira, em 1992, acabou por, inevitavelmente, lançar muitos militares para a luta pela legalização do associativismo militar – à semelhança, de resto, de grande parte dos seus camaradas europeus. A classe política, geralmente pouco conhecedora da realidade militar, apostou na subordinação e na disciplina dos militares como segurança para o desprezo absoluto que, desde então vem votando às FA. Parecia-lhe que tinha descoberto a fórmula ideal para ter militares baratos e mansos.
A reforma do ministro Fernando Nogueira implicou a perda de diversos "direitos adquiridos", incluindo, entre outros, o direito que os militares do QP tinham, até então, de, após a passagem à reserva, permanecerem nessa situação até perfazerem 70 anos de idade. Pela aplicação da nova lei, e, decorrido um período de transição, passou a ser de cinco anos o tempo máximo de permanência na reserva. Após esses cinco anos, o militar passou a ser reformado, compulsivamente, independentemente da idade. Esta alteração, iria provocar sérias perdas nas pensões de reforma, situação que o poder político pareceu considerar, prometendo criar um complemento de pensão para esses casos.
Volvidos oito anos – repito, oito anos –, a Assembleia da República aprovou, por unanimidade, a Lei 25/2000, de 23 de Agosto, que reconhecia o direito dos militares abrangidos ao devido complemento. Parecia o fim de um pesadelo, mas não foi, porque a lei logo foi parar a uma gaveta. Perante mais esta prova de desconsideração para com os militares, em 27 de Maio de 2004, as associações de militares entregaram na Assembleia da República (AR) uma petição, com 5.371 assinaturas de militares das diversas categorias, na sua esmagadora maioria na situação de activo, em que, entre outras coisas, se voltava a pedir o CUMPRIMENTO DA LEI 25/2000. Sim, é verdade, as associações de militares, não podendo recorrer à greve para fazer valer os seus direitos, entregaram, no órgão de soberania que produz leis, uma petição em que, muito simplesmente, punham a nu a ilegalidade da acção do governo. Estamos em 2005, passaram-se treze anos sobre a reforma do ministro Nogueira e a lei continua por aplicar.
Face a esta gritante ilegalidade, quando os militares, muito disciplinadamente, se atrevem a recorrer aos poucos meios que lhes restam para fazer valer os seus desprezados direitos, ainda tem o poder político a ousadia de os censurar e fazer apelos ao cumprimento das leis que é o primeiro a violar. Sim, porque o que está em jogo é muito simples: entre os militares e o poder político estabelece-se um CONTRATO, designado por CONDIÇÃO MILITAR, segundo o qual, para viabilizar o cumprimento de missões vitais para a Nação e de elevado risco pessoal para quem as desempenha, são retirados aos primeiros uma série de direitos – entre os quais os direitos dos trabalhadores. O poder político, em contrapartida, retribui essa perda com a concessão de «especiais direitos, compensações e regalias, designadamente nos campos da Segurança Social, assistência, remunerações, cobertura de riscos, carreiras e formação». É muito evidente, por conseguinte, que o CONTRATO da CONDIÇÃO MILITAR se encontra em vias de ruptura, por exclusiva responsabilidade dos sucessivos governos. Quando uma das partes de um contrato deixa de cumprir, não pode esperar da outra parte uma eterna complacência.
Há em todo este comportamento do poder político um pecado maior: sendo as FA um dos pilares do Estado, tudo o que se faça para destruir o moral dos seus servidores é autêntico crime de lesa-pátria. Dizia Napoleão Bonaparte que «na guerra, o moral está para o físico como três para um», querendo, com essas palavras, dar o relevo devido à componente anímica do potencial de combate. A forma arrogante, insensível e incompetente como o poder político vem tratando os militares é, por conseguinte, uma forma de corrupção do seu moral. Com uma agravante de tomo: falhadas todas as oportunidades de parecerem estar a tratar com os militares, usando de boa fé, retiraram aos chefes militares de todas as patentes qualquer tipo de argumentação capaz de conter a revolta que vai crescendo. Hoje em dia, o único argumento que um comandante pode utilizar para serenar os seus subordinados é a disciplina, mas SEM ESPERANÇA.
David Martelo

4 comentários:

Anónimo disse...

Percebo que ningúem gosta de perder regalias, nem que seja por uma boa causa: neste caso, o equilíbrio das contas públicas, mas também uma certa justiça relativa. Acho engraçado os militares falarem do "risco de vida": Questiono-me, agora? Como? Pode ser numa ou noutra situação, numa ou noutra função, mas para toda a gente? Depois o País não percebe para quê tanta gente que para o exterior pouco trabalha, pouco produz. Quando há funções civis, de investigação, por exemplo levantamento dos recursos marítimos que bem podiam ser um trabalho com grande impacto nacional. Porque não há acordos com LNEC, INETI, etc
para os militares com essas valências poderem dar o seu precioso contributo. Ao fim e ao cabo temos pessoas qualificadas que muita falta fazem a este país... Agora estar a exigir regalias sem qualquer contrapartidas não podem ter o nosso apoio. Têm as armas, mas o país não precisa de armas a não ser para participar em crises internacionais. Não compreendo. Se me vierem dizer que há alguma arrogância do governo, posso conceder. Mas isso não pode explicar tudo. Ana Esteves

Raimundo Narciso disse...

Ana Esteves é de facto como diz. Há um enorme desperdício de competências e capacidades. Aliás muitos técnicos altamente qualificados o que fazem é chegados a meio da crreira, como os pilotos aviadores, cujos cursos saíram caríssimos ao OE saiem para a aviação civil para ganharam várias vezes mais em acumilação com reforma.
Ou os engenheiros que no activo mas mais vulgarmente na reserva aos 56, em reserva antecipada e mesmo no activo o que fazem é trabalhar em gabinetes privados de engenharia. Como os médicos ou de administração militar e por aí fora.

Anónimo disse...

Tenho que concordar que há muita verdade naquilo que dizem. Não se nota de facto o papel dos militares na sociedade portuguesa actual... O porquê não sei bem... nem sei se o estado de coisas interessará a alguém...

Mas conhecendo a realidade posso assegurar que muito se produz e se mais não é feito é devido a limitações impostas ao campo de actuação das forças armadas.
Resumidamente: mais não se faz porque alguém não deixa ou não quer, ou pura e simplesmente impede.
Aponto o dedo: Políticos e os seus interesses.

Citando alguns exemplos da Força Aérea,

Incêndios 2005:
http://www.emfa.pt/www/destaques/incendios/index.php?lang=pt

ou

Evacuações:
http://www.emfa.pt/www/destaques/sar.php?lang=pt&

Já para não falar do transporte urgente de órgãos humanos para transplante com prioridade máxima...

Este ano, à semelhança de anteriores, o corpo de engenheiros do Exército utilizou as suas máquinas, abrindo dezenas de quilómetros para que os bombeiros pudessem ter melhores acessos por entre a 'selva' que são as nossas florestas...

Apenas lamento que décadas de (conveniente?) 'esquecimento' por parte daqueles que todos nós elegemos tenham empurrado os militares deste país para um papel marginal aos olhos da sociedade.

O que se tem passado é um espelho da insatisfação acumulada ao longo de muitos anos e muitos governos.
Temo que algumas atitudes mais extremadas de alguns elementos possam ter contribuido para desgastar ainda mais a imagem dos militares.
Estas medidas até teem alguma razão de ser mas devem ser analisadas de forma racional e aberta. Há muitas instituições em Portugal que precisam de reformas e a instituição militar não é excepção.
Uma diferença importante poderá ser o facto de à medida que os governo passam, remodelam sectores inteiros da função pública (que teem quem os defenda abertamente) ao passo que a instituição militar, pela sua natureza, não pode sofrer o mesmo tipo de mudanças radicais. E "..os militares não podem convocar manifestações..."

Militar cansadodelerjornaisevertelevisaoduranteasultimassemanas

Anónimo disse...

As pessoas que assim pensam parece que têm medo de dizer aquilo que transparece nas suas palavras, isto é, que NÃO PRECISAMOS DE FORÇAS ARMADAS. Se é essa a opção, então tudo o resto deixa de ter razão para ser discutido. O que essas pessoas andam a tentar vender é a ideia de que, em vez de Forças Armadas, devíamos ter uma espécie de Serviço Cívico do tipo BOMBEIROS PARA TODO O SERVIÇO. Só que, para tal, não vejo que houvesse necessidade de retirar direitos aos seus membros, nomeadamente o direito à sindicalização e à participação na vida política. A única razão que justifica o corte desses direitos é a detenção de armas. Se elas (as armas) não são necessárias, acabe-se com a Forças Armadas, mas deixe-se de criticar uma Instituição que só existe porque os Portugueses constitucionalmente querem que exista.