em 5 de Abril de 2005, na Biblioteca-Museu da República e da Resistência, em Lisboa, foram apresentados depoimentos de amigos seus de que temos disponíveis e apresentamos em seguida os de Raimundo Narciso, de José Manuel Correia Pinto e de Mário Lino.
Intervenção de Raimundo Narciso:
Nesta homenagem a um amigo, permitam-me que evoque dois momentos, que me deixaram uma marca imperecível da grandeza de Barros Moura.
O primeiro foi quando nos conhecemos, na sede do Comité Central do PCP, em 1974. Regressava ele da Guiné-Bissau, oficial miliciano rodeado do prestígio que lhe advinha da coragem e inteligência posta na luta contra a ditadura e lhe valera a qualidade de membro da Coordenadora do Movimento dos Capitães que libertou Portugal, em 25 de Abril de 1974.
Esse primeiro encontro evidenciou a argúcia política e uma larga visão do momento revolucionário que empolgava o país, no homem que se batia intransigentemente por um futuro melhor para Portugal, pelo fim do colonialismo, pela superação dos estigmas obscurantistas da sociedade portuguesa de então.
O segundo momento que gostaria de evocar ocorreu uns dias antes da operação a que José Barros Moura se submeteu, dois meses antes de morrer.
Tínhamos ido à livraria Ler Devagar provar um vinho da lavra de Eurico de Figueiredo e que ele achou por bem apresentar, em vez de um livro, como é habitual e naquela fase do evento em que, já cumpridos os rituais obrigatórios, só nos resta participar na agitação das conversas com os amigos, o Zé propôs que deixássemos o bulício e fossemos dar uma volta por aí?
Saímos para o Bairro Alto, deambulávamos pelas ruas sossegadas em conversa amena, antes de irmos a um chá numa casa que expunha pintura, a gozar o momento – julgava eu - quando Barros Moura me diz no meio de outros assuntos
para a semana vou fazer uma cirurgia.
Ia a perguntar mas ele acrescentou que não tinha importância e mudou de assunto tão rapidamente que só uns dias depois meditei na informação. Resolvi então telefonar. Já tinha feito aquela operação que tornou insofismável a aproximação da morte.
O nosso relacionamento manteve-se ao longo dos anos mas estreitou-se no processo de reavaliação da experiência histórica do comunismo que iria conduzir à rotura com o PCP.
Nesse processo Barros Moura mostrou como a fidelidade aos ideais humanistas, a procura da utopia sem se desligar da realidade, deve implicar a rotura com o que ontem parecia justo mas a realidade desmentia.
As suas tomadas de posição públicas de grande frontalidade e seriedade política, a sua reflexão sobre as grandes transformações que o mundo vivia com o desmoronar do Muro de Berlim e o fim do comunismo, arrostando anátemas e incompreensões, revelou a sua têmpera de lutador inteligente e político íntegro.
Na sequência da rotura com o PCP em 1991 houve quem considerasse excessivo ter renunciado ao mandato de Deputado do Parlamento Europeu e devolvido o lugar ao partido, quando afinal na lista eleitoral o seu nome fora já uma bandeira. Mas Barros Moura não queria que, num país como o nosso, onde os políticos, com frequência injustamente, estão sob suspeita, restassem dúvidas de que era o dinheiro que o movia.
Acrescentou com esse gesto o respeito dos Portugueses e enobreceu a classe política.
Barros Moura um dos mais brilhantes deputados europeus e um especialista em Direito do Trabalho, revelou na sua trajectória política e na sua vida profissional qualidades que o tornaram uma figura de referência. Rigor, Competência, capacidade de trabalho, combatividade, fidelidade a princípios.
Barros Moura teve um papel central no efémero movimento do INES (Instituto Nacional de Estudos Sociais) criado em 1989/90 por ex-comunistas ou comunistas em processo de afastamento do PCP, socialistas e pessoas de várias tendências de esquerda que se reivindicavam do socialismo.
Nesse movimento que durou até ao início da desagregação da União Soviética, participaram pessoas ilustres como Piteira Santos, José Saramago, Vital Moreira, Veiga de Oliveira, José Manuel Correia Pinto, dirigentes da Intersindical como José Luís Judas, Manuel Lopes, Calidás Barreto, insignes juristas como o professor Orlando de Carvalho ou Joaquim Gomes Canotilho.
Barros Moura foi igualmente com a sua reflexão política uma referência central no movimento da Plataforma de Esquerda, de 1992 a 95. Movimento de busca de novos caminhos para os objectivos de sempre: um futuro melhor, mais livre e mais justo para os Portugueses, densificando os conceitos de Liberdade e Democracia, não deixando que os sonhos de utopia frustrassem os ensinamentos da modernidade.
Neste movimento em que se distinguiram, entre outros, José Luís Judas, Pina Moura, António Graça, José Ernesto Oliveira, Mário Lino, António Teodoro, Mário Vieira de Carvalho, Miguel Portas, Fernando Castro, Victor Neto, e muitos outros, Barros Moura foi sempre uma voz indispensável.
Este movimento dividiu-se nas vésperas das eleições autárquicas de 1994 indo uma parte aproximar-se e posteriormente aderir ao PS e outra parte constituir a Política XXI que hoje integra o Bloco de Esquerda.
Barros Moura foi figura central da relação da Plataforma de Esquerda com o PS nomeadamente no encontro com o seu Secretário Geral, Jorge Sampaio, num almoço em sua casa e algum tempo depois com António Guterres, que lhe sucedeu no cargo.
Em todas estas movimentações políticas pude testemunhar de perto as raras qualidades humanas e políticas de Barros Moura que levaram o PS a convidá-lo e a elegê-lo deputado do Parlamento Europeu nos anos de 1994 a 99 onde prestigiou Portugal e o PS com o seu empenhado e distinto labor.
Também aí e posteriormente, como deputado e vice-presidente da direcção do Grupo Parlamentar do PS, na Assembleia da República, na legislatura de 1999 a 2002, Barros Moura se revelou um parlamentar distinto.
Bem revelador do carácter de Barros Moura é a sua renúncia ao mandato de Presidente da Assembleia Municipal de Felgueiras, quando não lhe pareceram satisfatórias as respostas do executivo às acusações e suspeitas judiciais de que era alvo.
A sua atitude vertical foi tomada por alguns como falta de solidariedade partidária e veio-lhe a custar a sua participação na lista do seu partido, o PS, para as eleições legislativas de 2002, em lugar elegível.
A evolução dos acontecimentos veio dar-lhe razão mas a sua inesperada morte não permitiu a continuação de uma brilhante carreira política que, estou certo, voltaria a encontrar no PS novas e estimulantes oportunidades.
Barros Moura, ainda no auge das suas capacidades, com muito para dar à comunidade, soube enfrentar a chegada abrupta da morte com denodada coragem.
Desde o momento em que me inteirei do verdadeiro tipo de cirurgia que ele me anunciara, como se falasse de algo banal, fiquei com a sensação que enquanto eu julgava gozar em comunhão com ele aquela aprazível noite, no Bairro Alto, ele talvez estivesse já a fazer o balanço da sua vida e a começar a despedir-se dela.
Raimundo Narciso
Depoimento do Dr. José Manuel Correia Pinto:
Depois de 62, durante quase dez anos, Barros Moura é uma figura incontornável do movimento estudantil português na luta contra a ditadura. Quis o acaso que eu o tivesse conhecido no dia seguinte ao da minha chegada a Coimbra, em Outubro de 1962, tendo com ele mantido uma amizade muito intensa e uma relação de muita proximidade. Isso permite-me um conhecimento muito profundo da sua riquíssima personalidade, na qual sublinho como traços distintivos a grandeza de carácter, a coragem e a dedicação com que sempre se entregou à causa pública, quer como dirigente associativo, quer, mais tarde, como deputado.
Dois episódios que vou contar são seguramente mais reveladores da personalidade do Homem que hoje homenageamos do que qualquer análise que eu pudesse fazer da sua intervenção cívica.
Em Novembro de 1964 ganhámos as eleições, em Coimbra, para a Associação Académica. À tangente, mas ganhámos, contrariando assim as expectativas e o grande investimento que a direita tinha posto na vitória daquelas eleições. Logo após a vitória, abriu-se um conflito com o Reitor sobre o modo de composição da Direcção. Barros Moura estava no centro da polémica. Nós tínhamos uma interpretação dos estatutos, o Reitor tentava impor outra solução. Tentou-se a mediação do Ministro. Em vão. Disse-nos cinicamente que prezava muito a autonomia universitária e que, portanto, não interviria na contenda, aconselhando-nos todavia a acatar a posição do Reitor, a fim de se evitarem consequências desagradáveis. Logo se compreendeu que se Barros Moura e outros colegas tomassem posse, a Direcção não seria homologada e haveria castigos para quem desobedecesse. O Barros Moura não teve hesitações. Tomou posse juntamente com outros colegas. Foi imediatamente suspenso e depois expulso, por dois anos, de todas as universidades portuguesas.
Não interessa discutir agora se se tratou ou não de uma acção demasiado vanguardista, como alguns, mais tarde, a caracterizaram. O que contou e o que conta, o que fica para a história e para exemplo dos demais foi a coragem de afrontar a ditadura. O que contou foi a acção – que a ele se lhe impôs como imperativo ético – de combate à prepotência, de luta pela liberdade, mesmo com as consequências que antecipadamente se tinham por certas.
Em Coimbra ele continuou, sempre na luta académica, até se licenciar, mantendo-se combativo e actuante em todos os domínios da vida associativa, sem esquecer o importantíssimo papel desempenhado na crise de 69, ocorrida em plena “primavera marcelista”.
Alguns anos mais tarde, em 1973, estava eu na Guiné, a cumprir o serviço militar na Marinha, bateram-me à porta ao fim da tarde. Era o Barros Moura. Foi uma surpresa e uma festa! “Tu também em Bissau!”, exclamei. “Em Bissau, mas de passagem para o mato”, respondeu ele. Não havia memória de um alferes miliciano, licenciado em direito, ser mobilizado para o mato. Normalmente ficavam em Bissau.Com a experiência que cerca de um ano de Guiné me dava sobre o perfil político-psicológico do Governador e Comandante-chefe da Guiné, General António de Spínola, aconselhei-o a pedir-lhe uma audiência. Era para mim quase certo que o General o colocaria em Bissau. Lembro-me de lhe ter dito: “Tens de ficar em Bissau. Esta guerra não é nossa. A nossa guerra é a paz, a descolonização. Nós estamos aqui para ajudar a acabar com a guerra. E nesta “guerra” tu é muito mais útil em Bissau do que no mato.” E, acrescentado: “Certamente que ele vai tentar seduzir-te, utilizar-te, porventura instrumentalizar-te. Mas contra isso tu não precisas de prevenções. Sabes muito bem o que tens a fazer”.
O Barros Moura hesitou, certamente terá falado com outras pessoas. Uns dias mais tarde comunicou-me que tinha tido uma entrevista com o Spínola e que tudo havia corrido conforme previsto. O General insurgiu-se contra aqueles que na Metrópole encaravam a defesa da Pátria como um castigo e terminou a entrevista com uma pergunta claramente ambígua, de modo a permitir ao Barros Moura – penso eu – manter a ambiguidade com uma resposta igualmente clara. “ A mim o que me interessa é saber se você é um patriota”, perguntou o General. “Claro que sou um patriota”, respondeu o Barros Moura”. Ainda a tinta do despacho que colocava o Barros Moura no Comando-chefe não tinha secado, já ele estava intensamente empenhado, como era seu hábito, na mobilização dos milicianos para uma acção de contestação ao Congresso dos Combatentes. Recolheu dezenas de assinaturas, num abaixo-assinado paralelo ao promovido pelos homens do Spínola, entre os oficiais do quadro permanente, e que foi, como se sabe, apresentado no Porto, ao Congresso, pelo então Major Fabião.
O nosso, apesar de enviado ao Congresso, não teve nele, como é óbvio, qualquer relevância, nem tão-pouco na comunicação social, porque a República, jornal para onde também foi remetido, à época muito empenhada em promover contra a ditadura a figura do general Spínola, estava mais interessada em fazer-se eco das posições do General do que das nossas.Estava, porém, dado o primeiro sinal. O Spínola, embora tendo tido conhecimento do que se havia passado, entendeu não agir, certamente por entender que o nosso movimento não contendia directamente com a sua acção, antes de certo modo a complementava. Mas não terá gostado. Por esta altura a luta militar estava ao rubro na Guiné. O PAIGC, na sequência do assassinato de Amílcar Cabral, atacava fortemente as nossas tropas a sul e a norte. No sul, num posto militar avançado, perto da fronteira com a Guiné Conacri, o Comandante encarregado da defesa do fortim de Guilege, perante a intensidade dos ataques, a dificuldade de abastecimento, a proximidade da época das chuvas e a situação de cerco eminente, resolveu retirar-se para um posto mais recuado (Gadamael), salvando assim os seus homens de uma mais que provável carnificina e o exército português de mais uma derrota humilhante. Como as ordens do General eram para aguentar firme, logo a situação foi por ele qualificada como um dos mais graves crimes previstos no Código de Justiça Militar. Em consequência, prendeu o Comandante, enviou-o sob custódia para Bissau e por lá ficou detido no quartel de Engenharia.
O Barros Moura, quando soube do sucedido, arranjou modo de entrar em contacto com o Comandante detido – Major Coutinho e Lima – e propôs-lhe assumir a sua defesa como advogado. Constitui uma equipa, composta pelo Sacadura Botte e por mim (eventualmente por outro colega), que de imediato desencadeou diversas diligências forenses tendentes à libertação do Major. O Spínola, mal teve conhecimento do que se estava a passar, com aquele espírito democrático que sempre caracterizou a sua actuação, ordenou que renunciássemos de imediato a procuração, pois não admitia que “um traidor e um cobarde” – palavras suas – fosse defendido por advogados oriundos das forças armadas. Quando muito, ser-lhe-ia designado um defensor oficioso. As ordens eram terminantes. Ponderámos as consequências – que para mim e para o Sacadura Botte seriam quase nulas, mas para o Barros Moura evidentes – mato e guerra. Mais uma vez o Barros Moura não teve hesitações. Não renunciou. Não renunciámos. Só que ele foi de imediato colocado numa região da Guiné habitada por uma etnia onde o exército português recrutava grande parte dos seus comandos africanos, conhecida pelas suas tendências antropofágicas, e por coleccionar, como troféus de guerra, as cabeças dos inimigos.Felizmente, o Barros Moura regressou inteiro… inteiro e íntegro, tendo sido com exemplos como estes que caminhou até ao fim da sua vida.
Bem hajas, Zé Barros Moura!
JMCPinto
Mensagem enviada à BMRR pelo Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, Eng. Mário Lino:
A minha convivência com o José Barros Moura foi relativamente curta, cobrindo apenas cerca de doze anos, mais precisamente o período de 1991 a 2003.
É certo que, antes disso, percorremos sempre caminhos muito próximos e do mesmo lado da barricada, seja no movimento estudantil, na luta contra o fascismo e a ditadura ou na militância no PCP.
No movimento estudantil, o facto de eu ter mais cinco anos de idade e de estudar engenharia em Lisboa enquanto ele estudava direito em Coimbra não proporcionou grandes contactos, embora tivéssemos ambos participado intensamente na crise académica de 1964-1965.
Depois do 25 de Abril, a nossa intervenção política e o nosso enquadramento no PCP decorreram em áreas bastante diferentes que também não proporcionaram grandes contactos. Mas já nesse período sempre recolhi as melhores referências sobre o seu carácter íntegro, as suas elevadas qualidades humanas e políticas, a sua inteligência acutilante, a sua grande frontalidade e combatividade na defesa de boas causas, valores e princípios, o seu espírito solidário.
Mas foi em 1991, quando nos envolvemos, juntamente com muitos outros militantes do PCP, no movimento de repulsa contra o golpe reaccionário contra Gorbachov, então apoiado pela Direcção do PCP, e de que resultou o nosso processo de expulsão daquele Partido, juntamente com o Raimundo Narciso e o José Luís Judas, que a nossa convivência e amizade se estreitaram.
Posteriormente, entre 1992 e 1995, estivemos intensamente envolvidos no aprofundamento da reflexão, já há algum tempo iniciada, sobre a experiência histórica do comunismo, e no lançamento e actividade da Plataforma de Esquerda, de que resultou a nossa aproximação ao PS, partido a que viemos a aderir em 1999, juntamente com muitos outros ex-membros do PCP.
Ao longo destes anos, e até ao seu falecimento em 2003, tive a grata oportunidade de privar mais intensamente com o José Barros Moura e de comprovar as suas grandes qualidades de homem íntegro, de cidadão consciente e empenhado e de político sério, esclarecido e determinado, que constituíam um exemplo e um poderoso estímulo para todos os que com ele tinham o privilégio de conviver.
Foi, por isso, com sentida consternação que acompanhei as últimas semanas da sua vida, disfarçada pelas sempre estimulantes e interessadas conversas que tínhamos quando o visitava no hospital onde estava internado, e em que passávamos em revista os factos e acontecimentos mais relevantes da situação política nacional e internacional.
É, por isso, com profunda saudade e admiração que continuo a recordar o José Barros Moura, inegavelmente um homem íntegro e honrado, um grande democrata, um político sempre consequente, e um bom amigo e companheiro.
Mário Lino