Chegaram
as caravelas a Lagos (…) e no outro dia Lançarote (…) disse ao infante (…) ser
bom que de manhã os mandeis tirar das caravelas e levar aquele campo que está
além da porta da vila (fazendo) deles cinco partes (…), e seja vossa mercê
chegardes aí e escolher uma das partes qual mais vos prouver. [Escrito completo na parede do Núcleo
Museológico Mercado dos escravos em Lagos].
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Autor: Jorge Fonseca
Lagos, no Algarve, foi o principal ponto de entrada de escravos
africanos em Portugal nas primeiras décadas do tráfico negreiro, a partir dos
anos 40 do século XV. Isso deveu-se ao facto de o infante D. Henrique, depois
da conquista de Ceuta, ter eleito a vila como sede dos seus empreendimentos
marítimos, ainda antes de a mesma lhe ter sido doada, em 1453. Dela saiu
Lançarote, almoxarife do rei, com seis caravelas, para a costa de Arguim, na
primavera de 1443 ou 1444, regressando no começo de agosto com o primeiro
grande carregamento de cativos negros chegados ao país, 235. Gomes Eanes de
Zurara (1410-1474) evocou magistralmente, na Crónica
da Guiné, o dramatismo do desembarque na praia de Lagos dessa carga humana,
na presença do infante, que poderia ter servido de modelo a muitas outras
descrições de acontecimentos semelhantes, ao longo de séculos, se tivessem
existido, o que não voltou a acontecer da parte de portugueses, dada a
banalização em que o tráfico caiu:
“… qual seria o coração, por duro que ser pudesse, que não
fosse pungido de piedoso sentimento, vendo-se assim aquela companha? Que uns
tinham as caras baixas e os rostros lavados com lágrimas, olhando uns contra os
outros; outros estavam gemendo mui dolorosamente, esguardando a altura dos céus
(…) bradando altamente, como se pedissem acorro ao Padre da natureza; outros
feriam seu rostro com suas palmas, lançando-se tendidos no meio do chão; outros
faziam suas lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra …”.
Os escravos trazidos tinham sido capturados em assaltos a
aldeias da costa africana, mas na década seguinte já era aos mercados locais
que os Portugueses, por decisão de D. Henrique, recorriam para obter cativos e
não já à guerra. Disso deu conta o veneziano Alvise Cá da Mosto, no relato das
suas viagens. O comércio passou a ser muito mais fácil e lucrativo que a
pilhagem, recebendo o infante, como antes, a quinta parte do respetivo
produto.
Em Lagos funcionou inicialmente a feitoria dos Tratos da
Guiné e a mão-de-obra cativa continuou a chegar ao seu porto até ao fim do
século e mesmo depois. Em 1490 e em 1490-96 o almoxarifado da vila recebeu 739
peças de escravos.
Mas na década de 80, com o aumento do afluxo e a necessidade
de controlo fiscal por parte da coroa, Lisboa passou a ter a prioridade neste
comércio. E um alvará de D. Manuel I, de 24 de outubro de 1512, veio a
canalizar obrigatoriamente para a cidade do Tejo a entrada de escravos no
reino, exceto por razões de força maior, como intempéries que impedissem os
navios de aportar à mesma.
As descargas faziam-se no cais da Ribeira, junto aos muros da
vila, recuperado em 2008 por uma campanha arqueológica, que o pôs a descoberto
depois de ter estado soterrado desde a década de 1940, devido à construção da
avenida marginal da cidade. Próximo dele fazia-se a venda dos cativos. Um
edifício seiscentista, a Vedoria do Exército, adquiriu na tradição local a
designação de Mercado de escravos, provavelmente por ser junto a
ele que, antes e mesmo depois da sua construção, se processava essa atividade.
Em 2010 foi instalado nesse edifício o Núcleo Museológico do Mercado de
Escravos, albergando uma exposição sobre o tráfico negreiro.
Outro testemunho do papel de Lagos como porto ligado ao
comércio escravista foi descoberto em 2009, numa zona recentemente urbanizada
da cidade e durante as obras de abertura de um silo para estacionamento de
automóveis: uma vala usada para enterramento de cadáveres, em que as deposições
mais antigas datam de meados do século XV, apogeu da entrada de escravos na
vila. Na centena e meia de esqueletos encontrados, muitos foram atribuídos a
africanos devido às suas caraterísticas antropomórficas e a objetos de fabrico
africano associados a alguns deles. Poderá tratar-se de cativos chegados já
mortos nos navios de tráfico, ainda não cristianizados, pelo facto de terem
sido lançados de forma caótica num depósito comum, ao contrário do que
sucederia àqueles que, já integrados e convertidos ao Cristianismo, iriam ser sepultados
nas igrejas e respetivos adros. Alguns desses vestígios foram expostos no
Núcleo Museológico acima referido.
Bibliografia: ALBUQUERQUE,
Luís de (1971) “Lançarote”, Dicionário de História de Portugal (Dir.
Joel Serrão), v. II, Lisboa: Iniciativas Editoriais, pp. 655-656; CADAMOSTO,
Luís de (1988) Viagens de Luís de Cadamosto e de Pero de Sintra,
Lisboa: Academia Portuguesa de História; COSTA, João Paulo Oliveira e
(2013), Henrique, o Infante, Lisboa, Esfera dos Livros; COSTA, João
Paulo Oliveira e (Coord.) (2014) História da expansão e do império
português, Lisboa: Esfera dos Livros; GODINHO, Vitorino Magalhães
(1983) Os descobrimentos e a economia mundial, v. IV, Lisboa:
Presença; ZURARA, Gomes Eanes de (1973) Crónica de Guiné, Porto, Civilização.
Documento da Internet:
http://museudigitalafroportugues.wordpress.com/sobre/reino-do-algarve/o-cemiterio-de-escravos-de-lagos/.