Francisco Louçã
Público
22 de Julho de 2013
Vinte dias de crise e não voltámos à estaca zero. Estamos pior, nas vésperas do segundo resgate. Mas iluminou-se o que era obscuro: o governo é uma dissimulação irrevogável, o Presidente é fraco, o PS tudo promete o que pouco compromete, a Europa fecha-se, o descalabro social rompe pelas estatísticas. Precisamos por isso de um abanão.As três teses que apresento de seguida são propostas para essa insurreição da razão.
Primeira tese: a finança-sombra subjuga a economia que subjuga a democracia.
Há dois meses, o valor do mercado de derivados não regulados ultrapassou um quadrilião de dólares. Duplicou desde o início da recessão e é mais de 16 vezes o PIB mundial. É capital fictício,evidentemente, mas é capital – ou seja, o seu valor é garantido por salários,pensões e impostos, através do controlo implacável da dívida pública. Esvaziado, o Estado deixa de repartir bens públicos porque é uma agência da finança.
Na Europa, a dívida é a máquina que permite simultaneamente perpetuar a renda financeira futura e impor o novo regime social, por via da “corrosão de carácter” a que se refere Sennett: a maior transformação social desde a passagem da economia agrária para a industrial, a precarização absoluta do trabalho qualificado.
A essa economia corresponde uma política-sombra que reduz os súbditos, tirando-lhes tudo e não devolvendo nada.Assim, sem espaço para o centro, os regimes desfazem-se cruelmente. Primeira conclusão: sem vencer a finança-sombra, sobrará uma democracia cerimonial para gerir o empobrecimento radical.
Segunda tese: Na Europa, é preciso o primeiro governo de esquerda que comece a romper o círculo vicioso da subjugação à finança.
Se as chefias da UE e do BCE são instrumentos desta finança-sombra e se não desistimos da Europa, só temos um instrumento realista para começar a viragem: seja na Grécia seja em Portugal,conseguir o primeiro governo de esquerda que enfrente a pressão financeira. Uma nova aliança europeia tem de começar por um governo que esteja disposto a dirigir essa ruptura. O seu ponto fulcral é a tirania da dívida.
Para isso, é preciso constituir uma maioria com um forte campo popular contra a finança-sombra, que reestruture a dívida e devolva os salários e pensões. Depressa, porque a destruição social em curso é irreversível: reconstituir o SNS ou a Segurança Social é trabalho imenso.
Essa vitória é possível. Sem o vórtice do centro, a esquerda fica a única representante das políticas sociais que são a condição da democracia. Segunda conclusão: a esquerda é a única voz da democracia contra o confisco fiscal e para controlar a banca para usar os recursos necessários à criação de emprego.
Terceira tese: o governo de esquerda não se fará com os comprometidos da troika e exige um novo mapa político.
Da forma que se conhece, Seguro tornou claro esta semana que só trata com a direita e que, se não fosse o tumulto no seu partido, aceitaria adiar eleições a troco de alguma coisa. Mas a rebelião,chefiada por Mário Soares, também prova a sensibilidade de tanta gente do PS contra a austeridade.
A novidade decisiva, no entanto, foi a iniciativa do Bloco, que muitos esperavam, provando vontade para o governo de esquerda. Sem condições e com uma agenda clara: a reestruturação da dívida e o Estado Social. A partir de agora, não há mais nenhum obstáculo na esquerda para um entendimento de maioria, a não ser a devoção da direção do PS ao ritual dos acordos com a troika.
Chegamos por isso ao momento da verdade.Seguro ficou a saber que o que não assinou agora fica assinado depois: com a troika, prosseguirá sempre a austeridade castigadora que garante a renda financeira. Corrompido pelo hábito dos interesses, cheio de balofa “pose de Estado”, este centro já não faz política: faz-se de morto, à espera que a austeridade alivie como a trovoada que passou. Engana-se. Terceira conclusão: a austeridade será a nossa vida se desistirmos da vida.
O Renascimento da esquerda depende da força que quer esta viragem. Diziam os antigos que há um tempo da coruja e um tempo da águia, tempo de pensar e de fazer: agora é tempo da esquerda socialista, empenhada num governo que liberte Portugal das garras da finança-sombra.