Artigo de Luís Campos e Cunha no Público de 2008-09-19:
“Os nossos líderes nacionais estão a enviar [os nossos filhos para o fraque] para uma tarefa que vem de Deus… é que há um plano e este plano é um plano deDeus.” Esta frase não é de Bin Laden. Um amigo chamou-me a atenção: está no New York Times, e foi proferida por Sarah Palin, candidata conservadora à vice-presidência dos Estados Unidos.
Para que fique claro: se não fosse português gostaria de ser americano, se não vivesse em Lisboa gostaria de estar em Nova Yorque. Não prefiro nem Londres, nem Paris, nem ser francês ou inglês. Não me move o menor sentimento anti-americano mas, tão-só, um sentimento anti-guerra no Iraque, uma repulsa por Guantânamo e, por consequência, um desprezo pelo presidente Bush filho. Penso que George W. Bush foi um presidente que deixou o Ocidente, e a democracia, num beco sem saída, à custa de centenas de milhares de vidas humanas e de princípios de liberdade e de civilização que todos defendemos e que pensávamos pacíficos e adquiridos por todos. Já o tinha dito mas vale a pena repetir.
Um dos problemas de implantação de um sistema democrático em qualquer país é que este tem de ser consequência de um desejo sincero do seu povo. Por isso, democracia no Iraque, ou em muitos países africanos, deixa sempre a sensação de um arremedo e de uma farsa, Quando a democracia é imposta por forças ou coacção externas nada parece. Nem será o mesmo.
Por outras palavras, o acto democrático de eleger um governo tem de partir de uma população cujo único compromisso seja para com a política. Se o compromisso é, antes de tudo, com o grupo étnico a que pertence, ou com o deus da religião que professa, então não pode haver votação politicamente válida nem governo verdadeiramente democrático. Se quem vota escolhe necessariamente o seu líder tribal ou o seu líder religioso, por oposição a outra etnia ou a outra religião, então não há liberdade na eleição. Se a fidelidade religiosa ou étnica se sobrepõe à escolha política, não há escolha democrática. Não está em causa que o religioso não tenha influência nos valores de cada cidadão e, como tal, tenha influência no voto. Outra coisa bem diversa é a opção religiosa ditar o sentido de voto sem que haja a possibilidade de uma escolha política do líder ou do partido em que votar.
Há exemplos vários deste desvio democrático. No Iraque, os xiitas votaram xiita, os curdos votaram nos líderes curdos e os sunitas nos seus líderes religiosos. As eleições não foram uma escolha política, mas apenas um senso estatístico de cariz étnico e religioso, nada mais.
Porque razão uma fidelidade acima da política põe em causa a democracia? A resposta é simples. Se há uma fidelidade religiosa que impõe uma única opção, então não há discussão política. Não há forma racional de convencer a senhora Sarah Palin de que a guerra do Iraque foi, pelo menos, um grave erro. A partir do momento em que ela considera a invasão do Iraque pelas tropas americanas como um plano de Deus, a discussão deixa de ser política e passa a ser uma discussão religiosa. Estar contra a invasão do Iraque é, para ela, estar contra o cristianismo: a discussão passa a ser entre a Bíblia e o Alcorão. Entramos, na melhor das hipóteses, numa discussão teológica; na pior, numa guerra religiosa, em que ninguém pode ter - razão, porque se deixou o domínio da discussão racional dos princípios para outra esfera.
Este mesmo raciocínio se aplica a Africa, onde a maioria das escolhas eleitorais são, antes demais, escolhas étnicas. O interessante é que Angola pode ser, em parte, uma excepção, por causa da guerra. As várias guerras civis fizeram deslocar populações inteiras causando urna mistura em volta das cidades que fez esbater as fronteiras étnicas. Pelo menos foi essa a percepção de quem seguiu o processo à distância. Os problemas das eleições angolanas, que os houve, foram de outra ordem, como sabemos.
Esta é também uma boa razão para não evoluirmos para um sistema uninominal nas eleições para a Assembleia da República. Corremos o risco, num sistema uninominal, de os cidadãos de Castelo Branco só votarem num albicastrense, o que implicaria uma fidelidade regional a sobrepor-se a uma opção partidária e até de escolha entre qualidades pessoais. Sei que há mais argumentos e este é, apenas, um perigo. Um dia falaremos do assunto, agora a minha questão é outra: opções de grupo que se sobrepõem a opções políticas e partidárias.
A posição de Sarah Palin vem no seguimento de outros políticos e de um reaccionarismo social (e político) impensável ainda há bem poucos anos. Já não bastava saber-se que a candidata só tem passaporte desde há um ano o que implica que não conhece o mundo mas travestir uma discussão da esfera política para a esfera do religioso é um precedente perigoso. Perigoso para o Ocidente e para a democracia, que não deve ser confundida com uma opção religiosa contra alguém. E que, numa discussão religiosa, há dificuldade em distinguir um fundamentalista islâmico de um fanático cristão, e nós, politicamente, nada temos a dizer sobre tais discussões. A
não ser que esta é mais uma boa razão para votar Barak Obama. Sem hesitações. Professor universitário.
Luís Campos e Cunha
Para que fique claro: se não fosse português gostaria de ser americano, se não vivesse em Lisboa gostaria de estar em Nova Yorque. Não prefiro nem Londres, nem Paris, nem ser francês ou inglês. Não me move o menor sentimento anti-americano mas, tão-só, um sentimento anti-guerra no Iraque, uma repulsa por Guantânamo e, por consequência, um desprezo pelo presidente Bush filho. Penso que George W. Bush foi um presidente que deixou o Ocidente, e a democracia, num beco sem saída, à custa de centenas de milhares de vidas humanas e de princípios de liberdade e de civilização que todos defendemos e que pensávamos pacíficos e adquiridos por todos. Já o tinha dito mas vale a pena repetir.
Um dos problemas de implantação de um sistema democrático em qualquer país é que este tem de ser consequência de um desejo sincero do seu povo. Por isso, democracia no Iraque, ou em muitos países africanos, deixa sempre a sensação de um arremedo e de uma farsa, Quando a democracia é imposta por forças ou coacção externas nada parece. Nem será o mesmo.
Por outras palavras, o acto democrático de eleger um governo tem de partir de uma população cujo único compromisso seja para com a política. Se o compromisso é, antes de tudo, com o grupo étnico a que pertence, ou com o deus da religião que professa, então não pode haver votação politicamente válida nem governo verdadeiramente democrático. Se quem vota escolhe necessariamente o seu líder tribal ou o seu líder religioso, por oposição a outra etnia ou a outra religião, então não há liberdade na eleição. Se a fidelidade religiosa ou étnica se sobrepõe à escolha política, não há escolha democrática. Não está em causa que o religioso não tenha influência nos valores de cada cidadão e, como tal, tenha influência no voto. Outra coisa bem diversa é a opção religiosa ditar o sentido de voto sem que haja a possibilidade de uma escolha política do líder ou do partido em que votar.
Há exemplos vários deste desvio democrático. No Iraque, os xiitas votaram xiita, os curdos votaram nos líderes curdos e os sunitas nos seus líderes religiosos. As eleições não foram uma escolha política, mas apenas um senso estatístico de cariz étnico e religioso, nada mais.
Porque razão uma fidelidade acima da política põe em causa a democracia? A resposta é simples. Se há uma fidelidade religiosa que impõe uma única opção, então não há discussão política. Não há forma racional de convencer a senhora Sarah Palin de que a guerra do Iraque foi, pelo menos, um grave erro. A partir do momento em que ela considera a invasão do Iraque pelas tropas americanas como um plano de Deus, a discussão deixa de ser política e passa a ser uma discussão religiosa. Estar contra a invasão do Iraque é, para ela, estar contra o cristianismo: a discussão passa a ser entre a Bíblia e o Alcorão. Entramos, na melhor das hipóteses, numa discussão teológica; na pior, numa guerra religiosa, em que ninguém pode ter - razão, porque se deixou o domínio da discussão racional dos princípios para outra esfera.
Este mesmo raciocínio se aplica a Africa, onde a maioria das escolhas eleitorais são, antes demais, escolhas étnicas. O interessante é que Angola pode ser, em parte, uma excepção, por causa da guerra. As várias guerras civis fizeram deslocar populações inteiras causando urna mistura em volta das cidades que fez esbater as fronteiras étnicas. Pelo menos foi essa a percepção de quem seguiu o processo à distância. Os problemas das eleições angolanas, que os houve, foram de outra ordem, como sabemos.
Esta é também uma boa razão para não evoluirmos para um sistema uninominal nas eleições para a Assembleia da República. Corremos o risco, num sistema uninominal, de os cidadãos de Castelo Branco só votarem num albicastrense, o que implicaria uma fidelidade regional a sobrepor-se a uma opção partidária e até de escolha entre qualidades pessoais. Sei que há mais argumentos e este é, apenas, um perigo. Um dia falaremos do assunto, agora a minha questão é outra: opções de grupo que se sobrepõem a opções políticas e partidárias.
A posição de Sarah Palin vem no seguimento de outros políticos e de um reaccionarismo social (e político) impensável ainda há bem poucos anos. Já não bastava saber-se que a candidata só tem passaporte desde há um ano o que implica que não conhece o mundo mas travestir uma discussão da esfera política para a esfera do religioso é um precedente perigoso. Perigoso para o Ocidente e para a democracia, que não deve ser confundida com uma opção religiosa contra alguém. E que, numa discussão religiosa, há dificuldade em distinguir um fundamentalista islâmico de um fanático cristão, e nós, politicamente, nada temos a dizer sobre tais discussões. A
não ser que esta é mais uma boa razão para votar Barak Obama. Sem hesitações. Professor universitário.
Luís Campos e Cunha