Manuel Gusmão*
(Público 2007-12-30)
De há uns tempos para cá, vozes muito dissemelhantes parecem insinuar, se não explicitamente afirmar, que não há futuro para ninguém ou que vivemos tempos em que ninguém se arrisca a qualquer gesto de protensão ou actividade de prognose. Conheceríamos uma era em que teríamos já desistido ou teríamos de desistir de tentar imaginar ou desejar um rosto para o futuro. Esta situação dever-se-ia a um medo que inibe a própria imaginação e de que padeceríamos para além de todo e qualquer pessimismo individual ou grupal.
E contudo se não houver futuro, se não tivermos futuro, seremos como dizia o outro, “cadáveres adiados que procriam”. Porque aquele medo se torna uma patologia do desejo, uma tão brutal antecipação simbólica da morte que inibiria todo o imaginário, amputaria a capacidade de simbolização e tornaria toda a esperança uma ilusão ou um produto do sono da razão. Ora nós precisamos do futuro como do ar que respiramos.
A perda do desejo de futuro seria, segundo alguns, uma lição aprendida com a experiência social e histórica disponível. Pois não é verdade que todas as revoluções acabaram traídas pelos revolucionários? Pois não é verdade que a história do séc. XX é uma história de catástrofes e de massacres, é a história do fim das ideologias emancipatórias? Eis a “experiência histórica disponível” reduzida a essa pobre e desgraçada fórmula da resignação fatalista
- “sempre houve pobres e ricos e portanto sempre os há- de haver”. Respondamos perguntando o que significa “disponível”. Não seria melhor dizer “disponibilizada” pelos senhores da comunicação planetária?
E contudo não há experiência histórica, não há história sem a categoria do futuro, mesmo que essa categoria seja a de uma falta ou ausência, que se desloca e move no passado a reconstruir, e no presente que reencena o passado. Porque a história viva, ao reencenar o passado, só o pode articular através da disputa de determinados possíveis, uns que se concretizaram, outros que foram derrotados. Essa disputa interessa ao conflito entre os possíveis do presente em que o historiador ou o sujeito da experiência histórica se inclina sobre o passado, ao mesmo tempo que escrutina o seu presente. O que aconteceu podia não ter acontecido; mas de facto aconteceu.
Mas apagar a luta dos possíveis significa fixar, imobilizar ou paralisar o que aconteceu; a história desaparece na repetição do mesmo. Tal paralisia, desencadeando a repetição, tomando fatal todo o acontecido, torna a história uma narrativa profética, uma profecia dos vencedores: será sempre assim, porque sempre assim foi. Aliás, a tese sobre o “fim da história” começa por ser uma história mal contada e, mais do que um diagnóstico, representa unia tentativa de eternização de um presente reduzido e um bloqueamento do futuro por esgotamento dos possíveis. Nós, na “tradição dos oprimidos” (Walter Benjamin), aprendemos a não ceder aos desastres, aprendemos a trabalhar para este tempo contínuo das derrotas e a perscrutar os momentos em que algo de diferente foi possível, mesmo que por umas semanas ou meses ou décadas. O trabalho da esperança que magoa ensina-nos que o que foi possível, e logo derrotado, será possível (de outra forma) outra vez.
Para outros, a ausência de abertura ao futuro se ria resultado de uma limitação própria da acção humana orientada por fins gerais e últimos. O sujeito pós-moderno teria finalmente reconhecido que as acções humanas seriam no limite inconsequentes ou, no mínimo, de fraca consequência, quando não perversamente contraproducentes, uma vez que a evolução das sociedades seria um processo de tal forma multivectorial e complexo que seria de facto incomensurável para a inteligência, a consciência e acção humanas. As tentativas de orientar os processos sociais, para além de alguns ajustes e correcções com objectivos à vista, seriam uma tentação voluntarista, própria de um sujeito moderno, que implicaria de raiz uma violência destruidora, desencadeada sobre “o curso natural (= fatal) das coisas” e traria no seu cerne a ameaça do totalitarismo.
E contudo tudo se transforma. Transforma-se o mundo em nós e fora de nós. E da mudança dos tempos e das vontades, nós participamos. Não como animais caminhando para o abate, nem como demiurgos incondicionados. Mas como agentes procurando
o máximo de consciência possível, estendendo as mãos e tacteando os possíveis; fazendo de acordo com os tempos a vinda de um outro tempo. Não somos adivinhos, nem sabemos rigorosamente prever qual será o rosto do futuro, mas isso não nos impede de o desejar. O carácter profundamente transformador do trabalho humano, o facto de uma criança de dois anos ser capaz de produzir uma frase que nunca ouviu, o facto de a poesia reinventar a língua em que se escreve, o facto de as artes serem construções antropológicas e de os humanos se configurarem e reconfigurarem, segundo uma auto poiesis histórica, são fundamentos suficientes para que nos possamos, sem mais garantias, prometer um futuro, “uma terra sem amos”. Porque nós habitamos o mundo, e o mundo é a nossa tarefa.
*Ensaísta
De há uns tempos para cá, vozes muito dissemelhantes parecem insinuar, se não explicitamente afirmar, que não há futuro para ninguém ou que vivemos tempos em que ninguém se arrisca a qualquer gesto de protensão ou actividade de prognose. Conheceríamos uma era em que teríamos já desistido ou teríamos de desistir de tentar imaginar ou desejar um rosto para o futuro. Esta situação dever-se-ia a um medo que inibe a própria imaginação e de que padeceríamos para além de todo e qualquer pessimismo individual ou grupal.
E contudo se não houver futuro, se não tivermos futuro, seremos como dizia o outro, “cadáveres adiados que procriam”. Porque aquele medo se torna uma patologia do desejo, uma tão brutal antecipação simbólica da morte que inibiria todo o imaginário, amputaria a capacidade de simbolização e tornaria toda a esperança uma ilusão ou um produto do sono da razão. Ora nós precisamos do futuro como do ar que respiramos.
A perda do desejo de futuro seria, segundo alguns, uma lição aprendida com a experiência social e histórica disponível. Pois não é verdade que todas as revoluções acabaram traídas pelos revolucionários? Pois não é verdade que a história do séc. XX é uma história de catástrofes e de massacres, é a história do fim das ideologias emancipatórias? Eis a “experiência histórica disponível” reduzida a essa pobre e desgraçada fórmula da resignação fatalista
- “sempre houve pobres e ricos e portanto sempre os há- de haver”. Respondamos perguntando o que significa “disponível”. Não seria melhor dizer “disponibilizada” pelos senhores da comunicação planetária?
E contudo não há experiência histórica, não há história sem a categoria do futuro, mesmo que essa categoria seja a de uma falta ou ausência, que se desloca e move no passado a reconstruir, e no presente que reencena o passado. Porque a história viva, ao reencenar o passado, só o pode articular através da disputa de determinados possíveis, uns que se concretizaram, outros que foram derrotados. Essa disputa interessa ao conflito entre os possíveis do presente em que o historiador ou o sujeito da experiência histórica se inclina sobre o passado, ao mesmo tempo que escrutina o seu presente. O que aconteceu podia não ter acontecido; mas de facto aconteceu.
Mas apagar a luta dos possíveis significa fixar, imobilizar ou paralisar o que aconteceu; a história desaparece na repetição do mesmo. Tal paralisia, desencadeando a repetição, tomando fatal todo o acontecido, torna a história uma narrativa profética, uma profecia dos vencedores: será sempre assim, porque sempre assim foi. Aliás, a tese sobre o “fim da história” começa por ser uma história mal contada e, mais do que um diagnóstico, representa unia tentativa de eternização de um presente reduzido e um bloqueamento do futuro por esgotamento dos possíveis. Nós, na “tradição dos oprimidos” (Walter Benjamin), aprendemos a não ceder aos desastres, aprendemos a trabalhar para este tempo contínuo das derrotas e a perscrutar os momentos em que algo de diferente foi possível, mesmo que por umas semanas ou meses ou décadas. O trabalho da esperança que magoa ensina-nos que o que foi possível, e logo derrotado, será possível (de outra forma) outra vez.
Para outros, a ausência de abertura ao futuro se ria resultado de uma limitação própria da acção humana orientada por fins gerais e últimos. O sujeito pós-moderno teria finalmente reconhecido que as acções humanas seriam no limite inconsequentes ou, no mínimo, de fraca consequência, quando não perversamente contraproducentes, uma vez que a evolução das sociedades seria um processo de tal forma multivectorial e complexo que seria de facto incomensurável para a inteligência, a consciência e acção humanas. As tentativas de orientar os processos sociais, para além de alguns ajustes e correcções com objectivos à vista, seriam uma tentação voluntarista, própria de um sujeito moderno, que implicaria de raiz uma violência destruidora, desencadeada sobre “o curso natural (= fatal) das coisas” e traria no seu cerne a ameaça do totalitarismo.
E contudo tudo se transforma. Transforma-se o mundo em nós e fora de nós. E da mudança dos tempos e das vontades, nós participamos. Não como animais caminhando para o abate, nem como demiurgos incondicionados. Mas como agentes procurando
o máximo de consciência possível, estendendo as mãos e tacteando os possíveis; fazendo de acordo com os tempos a vinda de um outro tempo. Não somos adivinhos, nem sabemos rigorosamente prever qual será o rosto do futuro, mas isso não nos impede de o desejar. O carácter profundamente transformador do trabalho humano, o facto de uma criança de dois anos ser capaz de produzir uma frase que nunca ouviu, o facto de a poesia reinventar a língua em que se escreve, o facto de as artes serem construções antropológicas e de os humanos se configurarem e reconfigurarem, segundo uma auto poiesis histórica, são fundamentos suficientes para que nos possamos, sem mais garantias, prometer um futuro, “uma terra sem amos”. Porque nós habitamos o mundo, e o mundo é a nossa tarefa.
*Ensaísta