HÁ, em filosofia, um princípio que se designa por princípio de caridade, que estabelece que se deve dar sempre o máximo de crédito ao nosso interlocutor, com a intenção de dar sentido ao que ele diz, por errado, absurdo ou contraditório que o seu discurso nos possa parecer à primeira vista.
Era com este princípio que aguardava a «rentrée» do ministro que mais brutais estragos causou à imagem do governo de D. Barroso, pela incompetência e inabilidade que exibiu em diversas, e quase sempre desvairadas, intervenções públicas.
Esperança vã! No que diz respeito à incompetência, a retoma de dossiê do serviço público de televisão tem sido feita com o atabalhoamento do costume, com Morais Sarmento a esconder-se cada vez mais atrás de grupos de trabalho, relatórios diversos e pareceres avulsos, que se acumulam sem conduzirem a qualquer estratégia reformadora e dinamizadora para o sector do audiovisual. No que diz respeito à inabilidade, as coisas não têm corrido melhor. Depois das sandices que proferiu sobre a paridade e o papel das mulheres na vida política, eis que apareceu em força no último fim-de-semana, com uma entrevista ao EXPRESSO logo seguida, no mesmo dia, de uma intervenção política em Lousada, fazendo em ambas as ocasiões declarações lastimáveis.
Quando se esperava uma actuação mais de acordo com o estatuto de um ministro da Presidência e mais responsável pelas tutelas que assumiu, o que aparece é um discurso meio rufia, sem um grão de densidade política, e que em vez de ladear D. Barroso com um consistente apoio estratégico, se comporta como um guarda-costas de circunstância, para quem a política se reduz a uma espécie de administração de correctivos.
Em Lousada agarrou-se à infeliz metáfora do «país de tanga» (imagem que, depois dos estragos que fez, todos querem esquecer), para dizer agora - edificante e pedagógico! - que nem a tal tanga encontra... No EXPRESSO, para lá de ficarmos a saber que o caso Portas/Moderna é meramente «incidental», enche uma página do jornal sem conseguir - como E. P. Coelho já sublinhou esta semana na divertida crónica «O Boxeur ao Espelho» - expor uma única ideia, a ponto de (a interpretação é, obviamente, minha) ter sido necessário recorrer a uma caixa com «mimos para a oposição» para justificar alguma atenção.
E que mimos! - ficando apenas pelo que me diz respeito, pois não é que M. Sarmento descobre agora que «Manuel Maria Carrilho nasceu para a cultura portuguesa em 1995. Não lhe conheço um único escrito, pensamento ou intervenção com preocupação cultural antes de 95. É um novo rico da cultura portuguesa, já havia o novo rico do volfrâmio da guerra».
São afirmações que, pelo tom de aparvalhada denúncia com que são ditas, me deixaram perplexo, a pensar no que, afinal, eu teria - ou não? - feito antes de 95. Sempre são afirmações de ministro, pensei, e fui elencar e confirmar artigos, conferências, livros, intervenções, ano por ano, desde meados dos anos setenta. Mas se lá estava tudo, porque obscura razão é que M. Sarmento diz que não? «Novo rico?» - mas onde terá ele andado «antes de 95»?
Procurando uma resposta, lembrava aquele seu olhar catatónico com que sempre se perfila no Parlamento, imaginava-o com aquele sorriso que só se abre quando anuncia o fecho de algum serviço público ou o despedimento de algumas centenas de pessoas, via-o naquela sua estranha rigidez argumentativa, como se a discussão e a reponderação de políticas se pudessem confundir com humilhantes «recaídas»...
...e aí está, pronto, aqui recordei-me das suas próprias palavras, em oportuna e pré-eleitoral confissão televisiva, é aí que podemos encontrar a explicação - e desde logo a antecipada desculpa - dos despautérios de Morais Sarmento, então certamente mais tentado pela assídua frequência do Casal Ventoso do que pela visita a boas livrarias, umas horas de biblioteca ou até, se calhar, pela simples leitura de jornais.
São opções, pensei, ainda bem que o Governo do PS alicerçou a sua inovadora política no domínio da toxicodependência na ideia - aceite pelo actual governo - que ela é uma doença, e que, como tal, tem causas e consequências: e mesmo quando não se conhecem as causas, as consequências, às vezes, ficam bem à vista.
E assim voltei, de novo, ao sábio princípio de caridade.