2005-10-28

Bastas razões de vergonha

Miguel Sousa Tavares no Público de 2005-10-28
1. "Democraticamente" absolvida nas urnas, como era de esperar, a D.ª Fátima Felgueiras está agora em vias de se ver alijada dos seus problemas judiciais, como também era de esperar. A senhora merece que se lhe tire o chapéu: fez uma sábia gestão dos seus trunfos e dos seus timings e, entre a demissão cívica do seu povo e a demissão institucional da justiça, descobriu o caminho para a impunidade. "Dei uma lição ao país!", exclamou ela, triunfante, na noite de 9 de Outubro. E deu mesmo. A lição foi esta: o único crime que não se perdoa é o da falta de esperteza.
O Tribunal da Relação de Guimarães liquidou, de facto, o processo de Fátima Felgueiras, mandando refazer o essencial da instrução e, com isso, remetendo o julgamento para as calendas do ano vindouro. Os desembargadores de Guimarães entenderam que o Ministério Público e o juiz de instrução não fizeram senão asneiras na construção da acusação: as escutas telefónicas são ilegais porque o juiz não as foi validando dentro de "um prazo razoável", e os principais testemunhos acusatórios são nulos porque os depoentes foram ouvidos como testemunhas e não como arguidos, como o deveriam ter sido (e embora, posteriormente, ouvidos como arguidos, tenham confirmado o que haviam dito antes). Pouco importa, todavia, o conteúdo de umas e outras provas: para a justiça portuguesa, a fórmula é tudo, a substância é um estorvo.
Longe de mim - valha-me Deus! - contestar a lógica irrebatível dos argumentos dos senhores desembargadores de Guimarães. Limito-me a observar que uma magistratura passou aqui um atestado de incompetência à outra e que tudo se encaminha, uma vez mais, para que os formalismos processuais conduzam à denegação de justiça. Mas, juntas e unidas nas suas lamentações, ambas as magistraturas estão em greve contra o "desprestígio" que o Governo lança sobre elas.
Parece que a redução das férias de Verão dos magistrados de dois para um mês e a supressão do regime especial de saúde de que beneficiavam, em troca do regime geral, afectam gravemente as "condições de independência" da classe e indiciam mesmo uma tentativa de controlo político sobre a justiça. Ouvido pela TSF, o presidente do Sindicato dos Juízes, Baptista Coelho, esclareceu que, enquanto órgão de soberania, os magistrados se batem pela sua independência; e, enquanto "carreira profissional", estão em greve por condições privilegiadas de dependência do Estado. Fiquei esclarecido - como, aliás, fico sempre que o dr. Baptista Coelho e o dr. Cluny, do Sindicato do Ministério Público, expõem as suas razões. Talvez alguém com mais senso lhes devesse explicar que o país já não é assim tão estúpido quanto eles imaginam.
2. Preparada "durante um ano", ensaiada ao pormenor, de véspera e por mais de 60 pessoas envolvidas, a "mega-operação" de "flagra" sobre a banca cobriu-se de ridículo à nascença. Numa operação capaz de abalar todo o sistema bancário, onde tudo deveria ser tratado com pinças e total discrição, logo a abrir, as autoridades apresentaram-se no primeiro banco sem um mandado de busca em condições; depois, mandaram-no vir por fax para o próprio banco a rebuscar, esquecendo-se de apagar do cabeçalho o nome dos restantes alvos a surpreender e das suspeitas que sobre eles recaíam. Como é óbvio, meia hora depois, Lisboa inteira já sabia o que estava em curso, e, perante tão chocante incompetência dos seus serviços, o senhor procurador-geral da República não encontrou melhor maneira de disfarçar a vergonha do que mandar instaurar um processo por violação do segredo de justiça... aos jornalistas!
Digamo-lo tranquilamente: num país a sério, o senhor procurador-geral e a senhora procuradora adjunta que dirigiu a operação teriam apresentado a sua demissão ou estariam demitidos no dia seguinte. Aqui, estão em greve, pelo seu "prestígio" e, sobretudo, para que ninguém ouse beliscar esta santa impunidade funcional de que gozam e a que gostam de chamar "independência".
3. Nomeados pelo governo PSD, alguns administradores da CP e outros da Refer descobriram a fórmula genial de se porem ao abrigo das flutuações políticas e garantirem um emprego de futuro, muito para além dos três anos normais dos mandatos dos gestores públicos: os da CP foram nomeados para o quadro da Refer, com o cargo de directores e o lugar reservado até saírem da CP, e os da Refer fizeram o mesmo na CP.
Descoberta a esperteza, chamados a explicarem-se e instaurados os respectivos processos de averiguações, os senhores administradores mantiveram a bola baixa, a ver se a coisa passava. Mas, concluídas as averiguações e na iminência de um despedimento com mais do que justa causa, os da Refer convocaram uma conferência de imprensa para despejar o saco: o que fizeram tratava-se de "um processo normal", que, aliás, tinham tido o cuidado de validar previamente junto do Partido Socialista, então oposição, e da senhora que depois viria a ser a secretária de Estado da tutela, no governo PS. Em seu entender, estaríamos assim perante um "saneamento pessoal e político", inclusive confirmado por suspeitíssimas informações circulando entre a Refer, o governo PS e as suas autarquias - de que só agora lhes ocorrera suspeitar.À noite, e depois de grandes cerimónias, o ministro despediu-os de vez. Mas eu aposto, infelizmente, que, por irregularidades processuais ou qualquer outro pretexto espúrio, e devidamente escudados em "pareceres" dos mestres de Direito sempre disponíveis, as vítimas hão-de ver a razão ser-lhes reconhecida por algum tribunal e tudo isto há-de acabar na conta dos contribuintes. Salve-se, ao menos, o desabafo: que país sem vergonha!
4. ...

2005-10-18

Estará o poder político refém do poder judicial?

Artigo de António Marinho e Pinto (advogado)
Público, 2005-10-18

"E se algumas destacadas figuras políticas tivessem sido demandadas criminalmente só para tornar o poder político refém dessa circunstância? A instauração desses processos não seria a melhor forma de a corporação judicial se preparar para o combate que se avizinhava, contra as inevitáveis reformas na justiça portuguesa? Poderá o poder político levar a cabo essas reformas, quando alguns políticos estão ou estiveram envolvidos em processos judiciais?
Num recente debate na RTP sobre a justiça em Portugal (Prós e Contras do dia 3 de Outubro), o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) afirmou que as medidas decretadas pela actual maioria política sobre a justiça eram uma retaliação contra o poder judicial por este ter demandado criminalmente algumas destacadas figuras do Partido Socialista.
O autor das insinuações ainda tentou recuar, perante a indignação que elas suscitaram no ministro da Justiça (presente no debate) e a estupefacção de muitos dos presentes, incluindo a própria moderadora do programa. Pretendeu, então, fazer crer que as insinuações não eram dele, mas sim da maioria dos magistrados, que ele, enquanto sindicalista, ali representava - ou seja, ele não era o autor daquela infame suspeita, mas sim muitos ou a maioria dos procuradores inscritos no SMMP. E ele só apresentara tal suspeita enquanto presidente do sindicato e não a título pessoal. Chegou a este ponto a conduta pública de alguns magistrados.
Analisemos o caso mais em pormenor.
1. Não é novo este tipo de atitudes. Atirar uma pedra e em seguida desculpar-se alegando que foram outros que mandaram ou de que foi em nome de outros é uma prática muito antiga e já bem caracterizada.
2. A experiência da vida e a história da humanidade já demonstraram suficientemente que, muitas vezes, as piores infâmias são sempre feitas sob a forma de suspeitas, sobretudo quando ampliadas por terceiros.
O próprio Código Penal previne, no seu art. 180º, nº 1, essas situações, estatuindo que comete o crime de difamação não só quem imputar a outra pessoa, "mesmo sob a forma de suspeita", um facto ofensivo ou formular sobre essa pessoa um juízo igualmente ofensivo, mas também quem "reproduzir uma tal imputação ou juízo". Não é crível que o magistrado em causa ignorasse essa disposição legal. Também não é crível que ignorasse o carácter altamente ofensivo das suas afirmações para a honra pessoal e funcional do ministro da Justiça e do primeiro-ministro, enquanto principais promotores das tais medidas "retaliadoras".
3. Não foi a primeira vez que o presidente do SMMP trouxe essa questão a público. Já antes, nas páginas deste mesmo jornal (ver edição de 13 de Julho de 2005, pag. 9), o mesmo magistrado fizera exactamente as mesmas insinuações. Num artigo intitulado Magistratura: Itália e Portugal, o magistrado insurgia-se contra a chamada "Lei Castelli", que o Governo de Silvio Berlusconi pretendia fazer publicar em Itália. Depois de concitar várias opiniões para evidenciar os malefícios da referida lei, o articulista sugeria que tal iniciativa mais não era do que um puro acto de vingança contra as magistraturas italianas por causa dos processos judiciais em que tem estado envolvido o primeiro-ministro Silvio Berlusconi. E o magistrado/articulista concluía: "Em Portugal, nada de semelhante se poderia passar (...), porque entre nós governa um partido de esquerda, que, por o ser, nunca pensaria em vingar-se das magistraturas em geral, por causa de concretos processos que tivessem afligido militantes seus [sic]."
A comparação não podia ser mais grossa. Só faltou mesmo dizer os nomes dos militantes socialistas e os processos em causa. Mas também não era necessário, porque uns e outros continuam periódica e sintomaticamente a ser lembrados em alguns órgãos de comunicação social.
4. Pior do que as insinuações públicas do presidente do SMMP (e a atabalhoada desresponsabilização que tentou fazer de si próprio no referido programa da RTP) só o silêncio dos magistrados. Tal só pode significar concordância com o dirigente sindical, ou seja, que os magistrados do MP inscritos no respectivo sindicato concordam que as medidas legislativas sobre a justiça constituem uma retaliação do Governo pelo facto de o poder judicial ter perseguido criminalmente alguns dirigentes socialistas. O silêncio dos magistrados coonesta, assim, a conduta do seu dirigente sindical. É bom saber o que pensam os magistrados para melhor compreender como agem.
5. A presteza com que a insinuação foi arremessada publicamente, mal surgiram as primeiras medidas da actual maioria política, levanta ela própria uma outra suspeita. E se algumas destacadas figuras políticas portuguesas tivessem sido demandadas criminalmente unicamente para tornar o poder político refém dessa circunstância? Ou seja, a instauração de processos judiciais contra importantes dirigentes partidários não seria a melhor forma de a corporação judicial se preparar para o combate que já se avizinhava, contra as inevitáveis reformas na justiça portuguesa? Poderá o poder político levar a cabo verdadeiras reformas na justiça, quando alguns políticos estão ou estiveram envolvidos em processos judiciais? E se nos recordarmos de como surgiram alguns desses processos, da forma como os arguidos foram tratados, da leviandade com que cidadãos foram transformados em suspeitos e logo incriminados publicamente (até cartas anónimas tentando envolver o Presidente da República, entre outras figuras do Estado, foram acolhidas no processo); se nos recordarmos das indiscriminadas escutas telefónicas, sobretudo a membros de órgãos de soberania, da negação dos direitos mais elementares aos arguidos e do verdadeiro linchamento de carácter a que alguns foram sujeitos; se nos lembrarmos do comportamento de alguns magistrados, não só dos que nunca deram a cara, mas sobretudo daqueles cujas conversas com jornalistas ficaram gravadas em memoráveis documentos históricos; se nos lembrarmos de tudo isso, então teremos muitas razões para crer (e temer) que a segunda hipótese é bem mais credível do que a que foi arremessada pelo o presidente do SMMP."