António Mendonça*
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Será que os portugueses padecem de algum mal genético que os impede de traduzir em acções a elevada capacidade de proceder a diagnósticos e análises e de convergir no domínio das soluções?
Em Portugal vem-se assistindo nos últimos anos a um fenómeno bastante curioso para não dizer paradoxal.
Por um lado verifica-se uma convergência muito significativa, entre especialistas, agentes económicos e agentes políticos, no que respeita ao diagnóstico da situação de crise económica que o país atravessa e aos bloqueios que importa ultrapassar no sentido de retomar a trajectória de crescimento e de convergência com os parceiros mais desenvolvidos.
Mas, por outro lado, a situação económica geral do país não cessa de se degradar, indiferente à convergência de opiniões e à sucessão de medidas e contramedidas que os diferentes responsáveis políticos têm tomado, alimentando um discurso cada vez mais pessimista sobre as capacidades domésticas de inflectir sustentadamente a situação.
Naturalmente que a questão que se coloca é a de saber porque é que isto acontece em Portugal. Será que os portugueses padecem de algum mal genético que os impede de traduzir em acções a elevada capacidade de proceder a diagnósticos e análises e de convergir no domínio das soluções? Ou será que os constrangimentos económicos internos e externos evoluíram de tal modo que tornaram absolutamente ineficaz qualquer veleidade doméstica de alterar o rumo dos acontecimentos? Será que poderemos buscar, ainda, explicações noutros factores idiossincráticos da economia e da sociedade portuguesa contemporânea?
A primeira tentação é a de invocar factores de natureza exógena que restringem, obviamente, os graus de liberdade dos decisores económicos e políticos e condicionam o comportamento da economia portuguesa. A mais elementar lógica de análise económica obriga a considerar as restrições decorrentes da participação na Zona Euro, da aplicação do Pacto de Estabilidade e Crescimento ou do mais recente alargamento a leste. A um nível mais geral também não se podem ignorar os efeitos de verdadeiro «buraco negro» que a China está a provocar sobre a economia mundial e sobre a economia portuguesa, muito em particular.
Todavia, não se podendo ignorar os efeitos e os constrangimentos da nossa integração, activa e passiva, nas dinâmicas da economia europeia e da economia global, é importante ter presente que o que nos distingue no momento presente, não é tanto a experiência de dificuldades económicas mais ou menos graves que, duma forma ou doutra, atingem a generalidade dos nossos parceiros europeus, mas o facto de essas dificuldades atingirem entre nós uma dimensão crítica e, sobretudo, uma persistência, que nos têm colocado na cauda das «performances» de crescimento e desenvolvimento dentro da União Europeia, praticamente desde o inicio desta década, contribuindo para a degradação da imagem externa do país e para a deterioração do clima de confiança interna relativamente às possibilidades de atacar a fundo os problemas. Nesta perspectiva, faz todo o sentido considerar que os factores de natureza interna, não só têm uma quota importante de responsabilidade na explicação da crise económica que o país atravessa como mostram tendência a auto-alimentar-se dos seus próprios efeitos, tornando cada vez mais difícil romper o ciclo de produção de dificuldades.
Assumindo claramente o risco de ir contra a corrente, diria que duas atitudes, que têm sido dominantes nos últimos anos, quer no plano das concepções teóricas quer no plano da acção política e governamental, contribuíram decisivamente para a perda de eficácia das políticas públicas e, por arrastamento, para o insucesso ou menores resultados das estratégias e das políticas empresariais.
A primeira atitude tem-se reflectido na progressiva desvalorização da dimensão nacional da economia. Ou seja, tem-se insistido numa óptica de abordagem dos problemas que privilegia a dimensão da integração europeia da economia portuguesa ou, então, no extremo oposto, o espaço competitivo das empresas, relegando-se para segundo plano, ou omitindo-se completamente, o vector de projecção estratégica que está associado à consideração da economia na sua dimensão nacional específica. Esta desvalorização tem conduzido à erosão progressiva dos factores de identidade e de articulação interna da economia portuguesa contribuindo, não apenas para a sua perda geral de atractividade como, também, para a redução substancial de uma importante base de produção de factores específicos de competitividade. Em particular, esta desvalorização da importância da dimensão nacional da economia tem-se manifestado em duas posturas típicas dos responsáveis políticos e das elites decisoras: uma aceitação passiva e progressiva da diluição ibérica do espaço económico nacional que se manifesta, entre outras coisas, na incapacidade de delinear e concretizar até ao momento uma estratégia coerente e de transportes e de infra-estruturas, e uma recusa sistemática em considerar o potencial económico da projecção atlântica do país e da sua inserção num espaço histórico e cultural de vocação global que é o espaço lusófono.
A segunda atitude traduz-se na desacreditação sistemática da administração pública e das funções do Estado em geral e na veiculação da ideia de que existe uma contradição essencial entre a intervenção económica do Estado e a eficácia na afectação de recursos conduzindo a situações permanentes de suboptimidade do bem-estar social.
É interessante notar, no entanto, que longe de ter contribuído para uma redução efectiva do peso do Estado na economia e no aumento da sua eficácia social esta atitude apenas contribuiu para a desorganização da máquina administrativa, para a duplicação de estruturas e sobreposição de competências, para a desresponsabilização dos quadros dirigentes e para a apropriação por parte dos mais diversos interesses privados e corporativos de múltiplos canais de definição estratégica e de centros de decisão política. E contraditoriamente, ou talvez não, é precisamente no período em que as ideias anti-Estado mais se afirmaram e que, grosso modo, coincide com as duas últimas décadas do século passado, que o aumento do peso do Estado mais se verificou, contrariando a ideia comum que associa gigantismo da máquina estatal a forte intervencionismo económico.
Como é fácil concluir das observações efectuadas, a dimensão e as particularidades da crise económica estrutural que o país atravessa exigem que se ponham de lado preconceitos e se recuperem como preocupações centrais da estratégia governativa a valorização da dimensão nacional da economia portuguesa, e a credibilização e modernização da intervenção económica do Estado, da administração pública e dos serviços públicos em geral. Ao contrário do que pretende fazer crer, a inserção nas dinâmicas de integração económica e da globalização não tiraram sentido à dimensão nacional das economias ou à intervenção económica dos Estados nacionais, mas antes impõem a sua reconsideração estratégica de modo a transformá-los em instrumentos de produção de factores dinâmicos de competitividade. Quanto mais tarde se reconhecer esta realidade mais longe estará o país de recuperar o tempo perdido.